Baixo engajamento do governo federal, excesso de ideologia e de ações ostensivas emperram evolução do setor, dizem especialistas.
A segurança pública, no Brasil, está atrasada em mais de 50 anos por ignorar insistentemente evidências científicas que já ajudaram cidades ao redor do mundo a controlar suas epidemias de violência. Segundo especialistas ouvidos pelo Valor, diferentemente da saúde, em que a prática de experimentos e acompanhamentos de resultados levou a avanços significativos em vacinas e aumento da expectativa de vida, na área de segurança a visão científica enfrenta resistências por causa de ideologias, crenças baseadas em “achismos” e falta de capacidade dos gestores públicos em apresentar soluções técnicas.
“No Brasil, a ciência ainda tem muita dificuldade para entrar na bolha da segurança pública”, afirma o doutor em políticas públicas e mestre em ciências criminais Alberto Kopittke, assessor especial do Ministério da Justiça entre 2007 e 2008 e secretário da área em Canoas (RS) de 2010 a 2016. “Ficamos muito ultrapassados nos embates que são ainda da época da ditadura militar [1964-1985]. De um lado, a visão sobre o uso da força desregrada sob ideologia de guerra e, do outro lado, a defesa dos princípios da Constituição e da democracia, que é muito generalista e falha em propor técnicas efetivas.”
No livro “Manual de segurança pública baseada em evidências”, lançado recentemente, Kopittke apresenta em mais de 800 páginas análises detalhadas sobre políticas públicas que funcionaram e que não funcionaram no mundo. Ele indica que o Brasil já tem alguns poucos bons exemplos em ações que ajudaram cidades como Pelotas (RS) e Niterói (RJ) a reduzir roubos e violência, mas lamenta que esses casos ainda sejam raros.
“Nos países desenvolvidos, houve um grande salto sobre como lidar com a violência. Muitos experimentos, políticas públicas testadas e análises sobre o que funciona e o que não funciona”, diz. “Mas aqui no Brasil ainda existe um desconhecimento sobre todo esse conhecimento já acumulado. Há pouco diálogo entre a academia policial e a universitária devido a barreiras ideológicas que já demoraram demais a serem rompidas”.
De acordo com Kopittke, ainda prevalece no imaginário de grande parte da sociedade a percepção equivocada de que a repressão herdada da ditadura é o melhor método para combater a criminalidade. Contudo, essa impressão ignora que a violência urbana cresceu no Brasil justamente nas décadas de 1970 e 1980, mesmo período em que os índices de criminalidade estouraram no mundo todo.
“Houve um negacionismo da epidemia da violência durante a ditadura militar no Brasil. Não tinha liberdade de imprensa, então a sociedade não sabia dessa epidemia. Quando volta a democracia, parece que a violência explodiu, mas não foi isso. O que aconteceu é que os veículos puderam começar a cobrir”, explica, comentando que o Rio de Janeiro, por exemplo, tinha um índice de homicídios por habitante cinco vezes maior no fim da ditadura do que possui hoje.
Nesse contexto, ele acredita que a manutenção da simpatia de parte da sociedade por ações meramente repressivas se deve ao fato de que as forças democráticas, sejam as que se apresentam como esquerda, sejam as de direita, até hoje tampouco foram capazes de reverter essa visão “inoculada durante 25 anos de trabalho ideológico” dos governos militares. “Temos um atraso institucional de 50 anos nessa agenda”, diz Kopittke, ressaltando que ações ostensivas de uma polícia militar e eventuais mortes de bandidos em confrontos são naturais e fazem parte de uma estratégia.
O problema, segundo Kopittke, é que na maioria das vezes a política de segurança pública como um todo se resume somente à repressão ao crime e ignora iniciativas de prevenção como programas sociais desde a primeira infância (crianças de zero a seis anos), visitação de agentes públicos a famílias vulneráveis, além de iniciativas de estímulos socioemocionais, comportamentais e de esportes. O especialista elogia ainda ações ao redor do mundo que promoveram melhorias urbanísticas em lugares com altas incidências de crimes ou que inibem o uso descontrolado de álcool nas ruas – segundo ele, essas iniciativas têm resultados efetivos na redução de pequenas ocorrências de violência nas cidades.
“Estamos acessando muito pouco esse conhecimento no Brasil. É como se na área da saúde pública estivéssemos vivendo cem anos atrás quando ainda não tinha prevenção, vacinas em massa, e uso de evidências científicas para saber o que fazer e o que não fazer”, diz Kopittke, defendendo que os gestores de segurança pública se modernizem e passem a usar métodos de experimentos científicos para aplicar nas estratégias tanto a curto como a médio e longo prazos.
“Não existem fórmulas únicas porque cada cidade sofre com alguma peculiaridade própria em relação à violência, mas algumas iniciativas costumam ser fundamentais. Além desses programas que previnem que os jovens comecem a cometer delitos, fortalecer a polícia civil e a capacidade de perícia para resolver os crimes, por exemplo.” Segundo ele, polícias com maior potencial de inteligência também tendem a mapear melhor as ocorrências de crimes em um território, identificar os locais onde a ostensividade precisa ser mais forte e obter resultados práticos.
Kopittke é um especialista da área oriundo de universidades, mas a sua visão é compartilhada por Araújo Gomes, ex-comandante da Polícia Militar de Santa Catarina. Gomes hoje é secretário de Segurança Pública de Florianópolis. “De modo geral, as estratégias realmente se baseiam em modelos pré-prontos sobre os quais não há nenhuma evidência de impacto positivo. É quase uma obsessão”, critica.
Para Gomes, que iniciou sua carreira como policial em 1985, as políticas de segurança pública no Brasil ainda tendem a se preocupar mais com afinidades ideológicas do que com a avaliação de resultados. “Quando estudamos evidências científicas já compiladas, alguns preconceitos caem por terra. Há momentos em que estratégias de repressão qualificada, ostensividade e patrulhamento em pontos quentes são efetivas. E há casos em que é preciso atacar as causas raízes da criminalidade com programas de parentalidade responsável, prevenção de gravidez precoce e uma série de ações que não têm envolvimento policial, mas que fazem parte de um plano de segurança pública”, observa.
Tanto Gomes quanto Kopittke citam o caso de Nova York, que sofreu uma epidemia de violência nas décadas de 1980 e 90 e desenvolveu uma política ampla de segurança pública que combinou o reforço da inteligência na polícia local, incluindo o fortalecimento do departamento de estatísticas criminais (CompStat), junto a programas de apoio a jovens e suas famílias em bairros socialmente vulneráveis. Segundo eles, embora prevaleça no imaginário de muita gente a ideia de que a ostensividade e a “tolerância zero” reduziram o crime na cidade, o estudo mais aprofundado do caso aponta que foi a combinação de todos esses elementos que gerou os resultados positivos.
Em um país polarizado como é o Brasil atualmente e onde as academias universitária e policial costumam não dialogar, também persiste a dificuldade de conexão entre os gestores da segurança com os demais agentes públicos. “As políticas no Brasil são muito fragmentadas, desde o orçamento e o arcabouço jurídico até a execução na ponta. Veja que até mesmo em saúde e educação, que têm políticas públicas mais consolidadas, a interação entre as áreas é mínima”, diz o secretário de Segurança de Florianópolis. “Quando um gestor de segurança pública tenta dizer que precisa de um programa de acesso a esportes para jovens em situações de risco, surgem dificuldades para conseguir entrar nessa seara”, lamenta.
Segundo Gomes, a convicção de políticos e da própria sociedade, não baseadas em evidências científicas, de que a polícia é a solução para todos os problemas que envolvem a segurança pública é um obstáculo que atrapalha bastante. “Eu vivi isso. Quando a polícia vem ao debate para dizer que um determinado bairro que está praticamente ocupado militarmente sofre com falta de educação, saneamento básico e saúde, a iniciativa é vista como evasiva, como se estivesse se eximindo de responsabilidade”, comenta, ressaltando que estratégias de segurança pública vão além do patrulhamento de uma área.
Uma das reivindicações para mudar essa cultura de “bolha da segurança pública” é que o governo federal assuma um papel mais ativo como coordenador de políticas para essa área, a exemplo do que faz com a saúde e a educação. A criação de um ministério específico e uma injeção de recursos para aumentar os repasses federais aos Estados e municípios são consideradas como bem-vindas em um “necessário” plano de política nacional, segundo o secretário de Florianópolis.
Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, a postura histórica de pouco engajamento do governo federal com o assunto contribui para que a grande maioria das autoridades estaduais e municipais aja com base em achismos ideológicos. “Passamos por inúmeros governos, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula I, Lula II, Dilma, Temer, Bolsonaro E o que a gente vê, com algumas exceções, é um certo alheamento do governo federal da agenda de segurança pública. É preciso, sim, fortalecer os investimentos.”
De acordo com Carolina, a ideia de que a segurança pública é só crise e urgência acaba ocupando o espaço do planejamento, o que também é responsabilidade do governo federal. “Há medidas pontuais sendo feitas, mas no meu ponto de vista são tardias e ainda pouco organizadas. Falta uma visão de futuro de médio prazo para a segurança pública [no Brasil]”, complementa. “É tudo muito assim: vamos agora enfrentar um grupo organizado tal, vamos lidar com o crime em determinada região. Mas qual é a visão a médio prazo para isso?”, critica.
Na avaliação de Kopittke, presidentes da República e mesmo muitos governadores e prefeitos relutam em assumir a agenda porque não entendem como conduzi-la de maneira científica.
“Os líderes políticos e das instituições desconhecem essa visão nova do que funciona e acabam tendo medo de entrar em um atoleiro político. Mas quando se consegue explicar tecnicamente os caminhos que já funcionaram, a liderança política consegue, sim, transformar a visão e vê que na verdade é uma oportunidade assumir essa agenda. O líder que consegue reduzir a violência se torna muito respeitado. Não com populismo, mas com métodos pragmáticos”, diz Kopittke. “Ignorar o tema é um erro, pois contornar crises de segurança pública depois é sempre mais difícil.”
FONTE: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/10/25/brasil-ignora-evidencia-cientifica-e-atrasa-agenda-de-seguranca.ghtml