O que queria Francisco Wanderley Luiz, o homem que detonou ontem à noite explosivos na Praça dos Três Poderes e que parece ter feito do suicídio, depois de frustrado, um atentado terrorista ao tribunal, seu derradeiro ato político?
OS FATOS
Qualquer um, também você que me lê, é um observador ou observadora da realidade. A imprensa ajuda a compor a “narrativa” no sentido em que a palavra aparece no dicionário: a exposição dos acontecimentos. O vocábulo passou a ser espancado pela extrema-direita fascistoide, de sorte que “narrativa” virou sinônimo da “versão do inimigo”. Se a história não serve a seus desígnios políticos ou contraria as suas convicções, os sociopatas a substituem pela mentira, pela invencionice, pela farsa. Tratam os fatos como mera “construção de uma narrativa”, e seus delírios como a verdade factual. Em quantas entrevistas, por exemplo, o “articulista e pensador” Jair Bolsonaro repetiu que o ataque aos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, foi “uma armadilha da esquerda”? Ele convida os seus seguidores a substituir a realidade pela crença, pela convicção ideológica e pela “verdade” militante.
Já conhecemos parte considerável dos fatos que dizem respeito a Francisco Wanderley. Não há dúvida de que planejou um ato que pretendia contundente, antecipando o “grande acontecimento” nas redes sociais. Desafiou a Polícia Federal a desarmar a bomba que estaria “na casa dos comunistas de merda”. Também se sabe que foi candidato a vereador pelo PL. Se familiares e amigos forem ouvidos, é provável que deem notícia de um sujeito boa-praça.
“Tiü Luiz”, como se identificava em sua campanha malsucedida para vereador em Rio do Sul (SC), tinha o seguinte lema de campanha: “Ame tua casa, ame teu país, seja patriota. Prometo dar o melhor de mim pra um bem geral das pessoas de nossa cidade. Paz, amor, generosidade, sinceridade, perdão e humildade”. Na foto, aparece segurando uma bandeira do Brasil. Também divulgou imagens em que aparece no interior no Supremo. Segundo Celina Leão, vice-governadora do DF, ele tentou entrar ontem no tribunal. Felizmente não conseguiu.
Pronto. Alguns fatos estão aí, descarnados de qualquer juízo de valor. Foi o que fez Francisco Wanderley. Não contei nenhuma novidade aos leitores “observadores da realidade”. Quero me dirigir agora aos “leitores analistas”. E a análise supõe que a gente separe o conjunto, o todo, descompondo-o segundo seus elementos componentes.
LEITORES ANALISTAS
Se você partir do pressuposto de que o “Tiü” era apenas um maluco, um esquisitão que não batia bem dos miolos, tenho de dizer estará cometendo, obviamente, um grande erro. Exceção feita a alienados realmente clínicos — que vivem imersos numa realidade particular em que até a gramática é idiossincrática –, nenhum homem é uma ilha. Francisco Wanderley vivia num país determinado, tinha plasmada uma visão de mundo, compartilhava determinados valores e se sentiu compelido — por qual conjunto de estímulos? — a “tomar alguma providência”, a fazer justiça ou história com as próprias mãos.
Continuemos a decompor os elementos constituintes da realidade. O ataque às respectivas sedes dos Três Poderes tem um ano e dez meses. As mesmas lideranças políticas que demonizaram o STF por longos quatro anos, entre 2019 e 2022 — o que resultou, depois da eleição de Lula, nos atos grotescos de 8 de janeiro de 2023 — seguem por aí, a vomitar impropérios contra ministros da Corte. Pior: parte da imprensa passou a normalizar o discurso fascistoide, tratando-o como uma das ofertas do cardápio ideológico, de modo que seria tão legítimo escolher golpe ou democracia como é legítimo pedir carne ou massa num restaurante, segundo o gosto de cada um.
RESPONSABILIDADE POLÍTICA
Não estou aqui à caça de culpados adicionais pelos atos do tal Francisco Wanderley. Deixo a investigação para a polícia e a responsabilização criminal, se houver, para o sistema de Justiça: Ministério Público e Judiciário. Eu me interesso sempre é pela responsabilidade política. Nesse processo de tentar entender direito os elementos componentes da realidade, indago: qual é a mentalidade, qual é a metafísica influente, quais são as prédicas que estimularam um Francisco Wanderley a buscar justiça com as próprias bombas — e jamais saberemos se o que parece ser um suicídio era desde sempre a opção. Tudo indica que a intenção não era morrer sozinho.
De uns tempos para cá, não é raro que o Supremo apanhe na imprensa mais do que os golpistas, que, na verdade, passaram a ser vistos com certa deferência. Alguns prosélitos mostram-se irresistivelmente atraídos pela truculência redentora, seja aqui, seja nos EUA. Encostem o ouvido ao peito de alguns valentes, e perceberão com que determinação batem nos progressistas daqui e de lá. Uns porque tragados pelas supostas velharias do PT; os outros porque engolfados pela “cultura woke”. Em qualquer caso, soltam-se foguetórios comemorando a derrota do progressismo. Uma questão: derrota para quem?
Sim, caro leitor, pessoas fazem coisas insanas todos os dias no mundo inteiro. Na maioria das vezes, os fatores antecedentes que explicam as ações tresloucadas devem ser buscados em sua vida privada. Um ato criminoso, no entanto, que põe os outros em risco, requer sempre um pouco mais de ponderação. Tome-se o feminicídio como exemplo. Ele não traduz apenas uma resposta violenta a um caso de amor ferido, não correspondido, traído… Se não levarmos em conta a cultura machista que enlaça o assassino e a vítima, não se compreenderá a mentalidade em que se deu o evento. E a resposta, que não pode se limitar à punição do culpado, será necessariamente errada.
Eu quero entender também “o é da coisa” do ato que Francisco Wanderley tentou praticar. Se não examinarmos também as circunstâncias políticas em que ele atuou e a linguagem que escolheu para se expressar, além de suas afinidades eletivas, daremos, como sociedade, uma resposta necessariamente errada.
PALANQUES GOLPISTAS
Quando autoridades constituídas, como governadores de Estado, pessoas públicas e parlamentares sobem num palanque com o fito declarado de anistiar criminosos que tentaram destruir as respectivas sedes dos Três Poderes há menos de dois anos; quando essas vozes que representam correntes de opinião se arvoram em juízes dos juízes aplicaram a lei contra os que buscaram fraudar a democracia; quando essa gente toda — como fez, por exemplo, Tarcísio de Freitas — vai compor o coro dos que pedem o impeachment de Alexandre de Moraes, é preciso que nos perguntemos como os Franciscos Wanderleys, incitados a se mobilizar contra a ordem constituída, entendem esse chamamento.
Se figuras que consideram respeitáveis, dotadas de poderes que lhes conferem as esferas do Estado, resolvem elas próprias depredar as instituições, é evidente que se está diante do risco de que isso sirva de um convite para a ação direta. Sim, pessoas diferentes respondem de modos distintos aos mesmos estímulos. Como é impossível administrar as reações de cada indivíduo ou antever que gatilhos internos serão acionados, a responsabilidade, a decência e o bom senso hão de recomendar a esses representantes de correntes de opinião que não incitem a massa contra a ordem democrática.
O caso do homem que, tudo indica, se matou no curso da execução malsucedida de um atentado é muito mais grave do que parece e do que muitos gostariam. E assim é justamente porque, ao que parece, ele não pertencia a uma organização ou a algum grupo. Tratava-se de um qualquer, imantado pelo ódio, certo de que os comunistas — e ele ouvia essa acusação todos os dias, não é? — estão por aí, tentando dominar o mundo e perseguindo as pessoas que ele considerava justas. Quantos outros há? Qual é a melhor medida preventiva contra os guerreiros solitários?
Certamente Bolsonaro e sua tropa convocarão novas manifestações contra o STF. Fiquemos atentos às personagens que estarão nos palanques. Tarcísio vai de novo? Nas redes sociais, os propagadores do ódio ao tribunal continuarão a mandar sinais aos Franciscos Wanderleys, que julgam interpretar o apito de cachorro. No Congresso, é evidente que os bolsonaristas da CCJ da Câmara prosseguirão com a sua sanha “supremicida”. E é possível que setores da imprensa que passaram a entender que é tão legítimo ser golpista como defender a democracia se afundem no equívoco ainda mais.
CONCLUO
Francisco Wanderley, felizmente malsucedido no seu intento, tem, em muitos aspectos, mais a cara da vítima do que a do algoz. Quando a narrativa, naquele sentido do dicionário, é posta no contexto e quando analisamos as circunstâncias, só uma síntese — que é a reunião de elementos distintos num todo coerente — é possível: os responsáveis políticos pelos episódios de ontem são todos aqueles, nas mais variadas esferas, que transformaram em vilões os que ousaram enfrentar os golpistas. Vencemos o golpe, mas o golpismo subsiste. E não é raro que tente se fantasiar de paladino da liberdade.
A luta continua.
Foto: Reprodução/YouTube
FONTE: https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2024/11/14/e-preciso-apontar-os-responsaveis-politicos-pelo-quase-atentado-em-brasilia.htm