Dirigida por mulheres, empresa investiu R$ 150 milhões para desenvolver veículo 100% nacional.
Uma fábrica de ônibus elétrico em São Bernardo do Campo que garante montar os veículos com componentes 100% nacionais e é comandada por duas mulheres, mãe e filha, desponta como o símbolo mais visível da principal expressão propagandística adotada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato: aquilo que ele e alguns de seus ministros vêm chamando de neoindustrialização.
Além do próprio Lula, o termo já foi usado em discursos ou entrevistas pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, que acumula o cargo de ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, por Luiz Marinho, que comanda a pasta do Trabalho, em posts de contas do governo nas redes sociais e pelo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante.
O mote ganhou ares de slogan oficial no fim de maio quando Lula e Alckmin assinaram juntos o artigo “Neoindustrialização para o Brasil que queremos”, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”. Após lamentarem a perda de competitividade do país e a queda de participação da indústria no PIB nas últimas décadas, eles defenderam “uma política industrial inteligente”, que sirva à “construção de cadeias produtivas mais resilientes a choques” e atenda ao “imperativo da mudança climática, a corrida espacial do nosso tempo”.
O texto foi veiculado no mesmo dia do anúncio de uma isenção temporária de tributos às montadoras para baixar o preço final de algumas categorias de automóveis de passeio. Mas nem no governo houve quem associasse isso à inauguração de uma nova política industrial.
Uma semana depois, no fim da manhã de uma sexta-feira, a história foi diferente. Lula, Alckmin e outros oito ministros – um quarto da Esplanada – apareceram juntos em São Bernardo para prestigiar a inauguração da nova fábrica da Eletra – Tecnologia de Tração Elétrica, com investimento anunciado de R$ 150 milhões. Segundo o material de divulgação distribuído pelo próprio governo, a planta de 27 mil metros quadrados terá capacidade para produzir até 1,8 mil ônibus elétricos por ano. Todos com componentes 100% nacionais.
“Aqui está a neoindustrialização”, discursou Alckmin, exaltando que os veículos ali montados são inteiramente feitos com peças brasileiras: motor e bateria da WEG, fabricados em Jaraguá do Sul (SC); chassi da Scania ou da Mercedes-Benz, ambas vizinhas da Eletra na via Anchieta; e carroceria da Caio, com sedes em Botucatu e Barra Bonita, interior paulista. “Inovação. Pesquisa. Desenvolvimento. Engenharia nacional”, completou o vice, pontuando bem cada palavra.
Na sua vez de falar, Lula foi ainda mais explícito no entusiasmo. “Cabe ao Estado brasileiro garantir a sobrevivência da indústria brasileira para que a gente possa um dia ser competitivo com o mundo exterior”, disse. “Então se nós temos que comprar alguma coisa, nós temos que valorizar o produto brasileiro, que gera emprego no Brasil, que gera renda no Brasil e que melhora a qualidade de vida das pessoas.”
O presidente prometeu se engajar pessoalmente pelas vendas da Eletra. Depois de citar o programa Caminho da Escola, criado em 2007 pelo Ministério da Educação, ele escalou o atual titular da pasta, Camilo Santana, para tratar da compra de veículos para transporte escolar. “Nós sabemos que nossa frota de ônibus já está muito velha. E nós estamos aqui com o Camilo Santana, ministro da Educação, que vai ter que conversar com a dona da Eletra para discutir a renovação da frota de ônibus escolar”, ordenou.
Em outro trecho, Lula anunciou uma segunda frente de negócios. “Vamos ter de fazer campanha com os prefeitos: ‘Compre ônibus elétrico, de preferência da Eletra’”, disse. E se comprometeu ainda em fazer propaganda da empresa até na Conferência de Mudanças Climáticas (COP) da ONU, no fim de novembro. “Eu vou para a COP 28 nos Emirados Árabes e eu quero levar um folder da Eletra para mostrar que no Brasil a gente já está produzindo ônibus elétrico”, disse.
Dez dias depois, numa reunião com a diretoria da Fiesp para tratar do fortalecimento de linhas de financiamento para pequenas empresas, foi a vez de Mercadante fazer acenos ao setor.
O presidente do BNDES falou dos incentivos que o governo dos Estados Unidos oferece à produção de carros elétricos no país e reclamou que o Brasil mantém imposto zero para importação nesse ramo. “Vamos desonerar a produção do automóvel produzido no país, o elétrico”, conclamou, sob aplausos dos presentes.
Mercadante informou que o governo precisará comprar 11 mil ônibus para renovar a frota do Caminho da Escola, defendeu que parte disso seja com modelos elétricos e falou da necessidade de ajudar prefeitos em todo o país para aquisições desse tipo.
No mesmo período, ele recebeu o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP) e o estadual paulista Emídio de Souza (PT), que o procuraram para tratar da criação de linhas de financiamento para aquisição de ônibus elétricos pelos municípios.
Ao Valor, Boulos disse que esteve recentemente em Santiago e, numa conversa com a prefeita local, ficou bem impressionado com o funcionamento do sistema de transporte elétrico da capital chilena, cidade com a maior proporção da frota eletrificada fora da China, segundo ele. “Como o custo do consumo de energia do ônibus elétrico é bem mais barato que o do ônibus a diesel, isso abre a possibilidade de uma conversa séria sobre tarifa zero em São Paulo”, disse ele, pré-candidato a prefeito em 2024.
Um representante do BNDES confirmou à reportagem que técnicos do banco estão “fechando o desenho” de um programa de financiamento público para eletrificação de frotas. A reportagem pediu entrevista com algum representante da instituição para falar sobre o assunto, mas a assessoria de imprensa informou que entrará em contato quando o tema estiver mais avançado.
Um ônibus elétrico convencional da Eletra, com 12,8 metros de comprimento, custa cerca de R$ 2,6 milhões, mais que o tripo dos R$ 700 mil de um modelo a diesel. Mas, segundo os entusiastas, as vantagens começam já na primeira viagem. Rodando, o custo de recarga das baterias é 75% menor que o de abastecimento com o combustível fóssil. Além disso, não emite fumaça, é silencioso e sofre menor desgaste de peças. A depreciação do patrimônio acaba sendo bem mais lenta.
A escolha da Eletra como símbolo da neoindustrialização propagandeada por Lula e Alckmin não ocorre só pelo aparente bom potencial de negócios da companhia, cujo apelo de combate à concorrência chinesa e europeia é desenvolver ônibus adequados às características topográficas e urbanas das cidades latino-americanas. A empresa parece favorecida por uma confluência de símbolos que dialoga com o tipo de política exercido por Lula. A começar por sua localização.
A fábrica fica em São Bernardo do Campo, domicílio eleitoral do presidente, região penalizada nas últimas décadas pela desindustrialização e berço do sindicalismo vinculado ao PT. É familiar, com capital 100% nacional, e garante trabalhar só com componentes brasileiros, o que reforça o discurso por geração de emprego e renda no país. Produz item tecnológico com cadeia produtiva longa e conectado com os atuais apelos por sustentabilidade. Além disso, é comandada por mulheres, o que agrega ainda mais valor ao discurso político caro a Lula e ao PT.
Embora a tecnologia e o portfólio de veículos pareçam novos, a família controladora da Eletra é uma velha conhecida de Lula e dos petistas do ABC Paulista.
Criada em 1999 para desenvolver inicialmente veículos híbridos e trólebus, a empresa pertence à família Setti Braga, grupo com atuação no transporte público em São Bernardo e região há mais de 100 anos.
Na inauguração da nova fábrica no início de junho, cujo foco passa a ser ônibus movidos exclusivamente a baterias, a atual matriarca do grupo, Maria Beatriz Setti Braga, de 70 anos, fez uma síntese curiosa para demonstrar como a família de origem italiana, hoje na sétima geração na cidade, atravessou a era do petróleo e voltou ao transporte limpo.
“Meu avô começou com um tilbury [carruagem leve de duas rodas], trabalhando com 11 anos de idade, carregando os passageiros com cavalos. E hoje, 100 anos depois, estamos no transporte elétrico limpo [novamente]. Os cavalos não eram poluentes em 1910”, ressaltou.
Somando as concessões de linhas municipais, intermunicipais e uma frota para transporte escolar contratada pela prefeitura, a família Setti Braga, que não divulga o faturamento, tem hoje cerca de 1,2 mil ônibus em operação, além da Eletra e de uma empresa de bilhetagem. Na região, Maria Beatriz, a Bia, é conhecida como a “rainha da catraca”.
Com tantos anos de estrada, a família também já esteve envolvida com o PT em momentos menos gloriosos. Em 2002, o empresário João Antônio Setti Braga, irmão de Maria Beatriz, afirmou numa CPI realizada na Câmara Municipal de Santo André ter entregado R$ 2,5 milhões “a pessoas da prefeitura” local, entre o fim de 1997 e início de 2000, “como um custo político para poder operar as linhas com tranquilidade na cidade”. No mesmo depoimento, disse acreditar que o ex-prefeito petista Celso Daniel havia sido assassinado no ano anterior justamente por ter descoberto indícios de corrupção na prefeitura que comandava.
Com plano embrionário de abrir capital, a Eletra pode ser considerada a iniciativa mais complexa e audaciosa dos Setti Braga em mais de um século de atuação no ramo do transporte. Mas não é a mais robusta em termos estritamente econômicos.
Em março de 2021, a partir de dois decretos publicados pelo então governador de São Paulo, João Doria (ex-PSDB, hoje sem partido), uma outra empresa da família, a Next Mobilidade, conquistou um pacote de permissões para operar no transporte intermunicipal válido por 25 anos ao custo de R$ 23 bilhões.
Isso ocorreu após uma decisão política ousada de Doria, que, contrariando promessa de campanha e opiniões técnicas divergentes, cancelou o projeto de construção da linha 18-Bronze de metrô/monotrilho ligando São Paulo a São Bernardo para colocar em seu lugar um corredor de ônibus, conhecido pela sigla BRT (Bus Rapid Transit).
Sem se submeter a uma licitação, a Next Mobilidade, que tinha 12 linhas no emaranhado entre São Paulo e São Bernardo, foi contemplada com a construção do canal BRT e com a ampliação de seu escopo de operações para 97 linhas na região, 700% a mais que o seu lote original.
Pelo porte bilionário da operação feita sem concorrência, a legalidade dos decretos de Doria foi questionada na Justiça e hoje aguarda-se conclusão do julgamento por parte do Supremo Tribunal Federal (STF). Até agora, três ministros se manifestaram. Cármen Lúcia e Edson Fachin votaram contra o contrato e, portanto, contra o interesse da Next. Gilmar Mendes votou pela legalidade. Na sequência, Alexandre de Moraes pediu vistas.
Confirmada a legalidade da operação, a Next, presidida por Bia, a mãe, tem tudo para ser uma das principais clientes da Eletra, que é comandada pela administradora Milena Braga Romano, de 46 anos, a filha.
Frequentadora das garagens da família desde o berço, Milena chamou a atenção no evento com Lula ao assumir o volante de um ônibus posicionado para demonstração e dirigir o veículo com o presidente da República e outras autoridades embarcadas.
Por coincidência ou conveniência, ela participou da cerimônia inteiramente vestida de vermelho. Na sua vez de falar, reforçou o vínculo com discurso adotado pelo presidente.
“Há poucos dias o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin assinaram um artigo na imprensa defendendo a neoindustrialização do Brasil. E acreditem, senhores, um bom exemplo dessa nova indústria que está nascendo em nosso país somos nós. Uma indústria focada no transporte limpo e sustentável, na descarbonização da economia e na melhoria da qualidade de vida das cidades brasileiras. Uma indústria 100% brasileira, com tecnologia nacional desenvolvida aqui por engenheiros e técnicos brasileiros”, afirmou.
FONTE:
https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/07/03/fabrica-de-onibus-eletrico-no-abc-vira-simbolo-da-neoindustrializacao-de-lula.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-page-widget