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Guerra entre os EUA e a China é apenas questão de tempo, diz o economista Nouriel Roubini, o ‘Dr. Catástrofe’

Guerra entre os EUA e a China é apenas questão de tempo, diz o economista Nouriel Roubini, o ‘Dr. Catástrofe’

Em seu livro “Mega-ameaças”, autor enumera dilemas que o planeta precisa enfrentar antes de uma confluência de calamidades.

O apelido de “Dr. Catástrofe” deixou de ser um fardo e se tornou um ativo para o economista ítalo-iraniano-americano Nouriel Roubini, professor emérito da Stern School of Business da Universidade de Nova York. Há 20 anos, quando alertava para o risco de uma grande crise financeira nos EUA, ele era recebido com escárnio. Poucos anos depois, a crise veio. Hoje, os tempos de Cassandra ficaram para trás. Ao lançar “Mega-ameaças: Dez perigosas tendências que ameaçam nosso futuro e como sobreviver a elas” (tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto, Planeta, 352 págs., R$ 94,90), embora adote tom ainda mais pessimista, seus avisos são recebidos com naturalidade.

“O mundo está receptivo a esses temas. Inclusive porque não estou falando de ameaças de ficção científica, como alienígenas que atacam o planeta. Todas essas coisas são bem conhecidas”, diz Roubini. “É claro que as pessoas podem discordar de mim em alguns pontos. Podem estar menos otimistas sobre as soluções de algumas dessas ameaças. Mas ninguém diz que estou falando de problemas que não existem.”

A obra elenca dez perigos econômicos, financeiros, geopolíticos, demográficos, tecnológicos, militares e sanitários que, interconectados, podem levar a humanidade à catástrofe. Das dívidas públicas e privadas à guerra não convencional, são riscos concretos capazes de formar uma bola de neve que comprometeria o mundo como o conhecemos. As mega-ameaças se somam a termos como “policrise”, “permacrise” e “confluência de calamidades”, que se tornaram habituais na imprensa global.

Valor: Nos EUA, a alta dos juros tem sido pouco eficaz em baixar a inflação e aumentar o desemprego. Essa ineficácia é reflexo do cenário descrito no livro?

Nouriel Roubini: Tem havido um debate interminável sobre se as taxas de juros serão capazes de reduzir a inflação sem causar recessão. Podemos pensar em três cenários, não só para os Estados Unidos, mas para o mundo. Um é o pouso forçado, com uma recessão grave e uma crise financeira. Outro é o pouso acidentado, com recessão superficial. E tem o pouso suave. Globalmente, há uma mistura grande desses cenários. A zona do euro já tem recessão e inflação acima da meta. O mesmo no Reino Unido. Na China não tem inflação, mas forte desaceleração do crescimento, o que constitui um pouso acidentado. Hoje, a exceção parcial são os EUA, onde até agora o crescimento está ligeiramente acima do potencial, e a inflação cai. Resta ver se conseguirão o pouso suave.

Valor: A expectativa é de mais alta dos juros americanos?

Roubini: Sim, porque paradoxalmente o mercado de trabalho ainda está forte. A inflação não vai cair tanto. O Fed não terminou a alta, só saltou um mês. Vão declarar que, embora não tenham aumentado agora, devem aumentar de novo neste ano, dependendo dos dados. A política monetária tem defasagens longas e variáveis. Parte do aperto levará tempo até afetar o consumo e o setor imobiliário. Mas já há sinais de enfraquecimento do mercado de trabalho. A economia esfria, embora menos do que o Fed deseja. São necessários vários trimestres de crescimento baixo para levar a inflação a 2%. Mas a política monetária por si só não é suficiente. E hoje a política fiscal nos EUA e na Europa vai na direção oposta. Os EUA criaram variedade de estímulos, incluindo a Lei de Redução da Inflação, a Lei de Infraestrutura e a Lei de Chips. A mesma coisa na Europa. A política fiscal e a monetária têm propósitos cruzados.

Valor: Os gargalos de suprimentos vão continuar sendo um problema?

Roubini: Sem dúvida. O aumento do custo de produção é fruto de uma série de gargalos. Há muitos choques negativos de oferta agregada de médio e longo prazo que podem reduzir o crescimento e aumentar o custo de produção. O mundo continua turbulento. A boa notícia é que não teremos uma crise financeira. A má é que o pouso não vai ser suave, inclusive nos EUA.

Valor: Os juros poderão reforçar mega-ameaças como o endividamento e a onda de falências?

Roubini: Os estoques de dívida pública e privada explodiram nas últimas décadas. Só no ano passado houve aumento de US$ 10 bilhões em nível mundial. É uma bomba-relógio. Até a pandemia, a razão dívida/PIB no mundo era elevada, mas o serviço das dívidas era barato, porque as taxas básicas estavam em zero e havia afrouxamento monetário. Isso acabou. Os bancos centrais, tanto nas economias avançadas como nas emergentes, tiveram de aumentar as taxas de juro para combater a inflação. O custo da dívida vai aumentar. Mas depende do país, claro, e do setor: se quem está mais endividado são famílias, empresas, bancos ou o governo. Onde houver grande endividamento, haverá risco de inadimplência ou reestruturação. O Banco Mundial salientou que em pelo menos 60 países em desenvolvimento a dívida já é insustentável. Em um mundo de inflação crescente e de política monetária restritiva, algumas mega-ameaças são mais graves, como o risco de uma crise da dívida. E os bancos centrais não têm só o dilema de manter o crescimento positivo enquanto combatem a inflação. Agora há um trilema. Queremos estabilidade de preços, crescimento positivo e estabilidade financeira. Quanto mais sobem os juros para combater a inflação, maior o risco de pouso forçado e estresse financeiro. E se não apertar os juros o suficiente, para evitar a recessão ou a crise financeira, o risco é desancorar a inflação, como acontece no Reino Unido.

Valor: Há horizonte em que esse endividamento leve a uma nova grande crise?

Roubini: Não creio que teremos crise generalizada da dívida em todo o mundo ao mesmo tempo. No caso dos países em desenvolvimento, o FMI e o Banco Mundial tentam organizar a reestruturação das dívidas. Mas é lento. Já o setor privado não quer participar tanto nessa reestruturação. A China também não quer entrar no jogo. No caso da grande crise financeira, nos EUA, o problema estava na dívida das famílias e dos bancos. Hoje, o problema é a dívida corporativa. Na Europa, muitos países ainda têm dívida pública elevada. Além da dívida pública oficial, que ultrapassa 100% do PIB, há outras implícitas, provenientes do envelhecimento da população e dos sistemas de proteção social. Com cada vez mais idosos e menos jovens, essas dívidas são bombas-relógio.

Valor: O sr. discute o fim da hegemonia do dólar. Quão perto estamos dela?

Roubini: Mudanças como essa não ocorrem da noite para o dia. Levam décadas e dependem do ritmo em que o poder hegemônico enfraquece. Gradualmente, o papel do dólar como moeda de reserva global será reduzido. Pensamos, por algum tempo, que a moeda chinesa poderia ser a alternativa ao dólar. Mas a China está desacelerando rápido, com problemas domésticos e financeiros. Os controles de capital e a ausência de câmbio flexível também tornam improvável que a China convença os Brics, e muito menos os outros países, a adotar o renminbi como moeda de reserva. É claro que os Brics e outros países cogitam comércio bilateral que contorne o dólar. Isso pode ocorrer, mas lentamente. A longo prazo, depende de quão forte será a economia dos EUA em comparação com a chinesa.

Valor: A China tem sido o motor do crescimento global. Quão preocupante é a desaceleração do país?

Roubini: Os problemas da China são estruturais. A população envelhece rapidamente. Há grandes dívidas privadas e públicas. Há crise no setor imobiliário. O setor privado está de mau humor devido às medidas repressivas contra investidores. As pessoas estão inseguras, então tendem a gastar menos e economizar mais. E a taxa de consumo é baixa. Para que ela aumente e a taxa de poupança diminua, será necessária uma maior rede de segurança social. Os chineses têm que poupar para a velhice, para quando adoecem, quando perdem o emprego, para as incertezas econômicas. Um trabalhador migrante nem sequer tem acesso aos serviços públicos na cidade onde trabalha. A menos que se alargue a rede de segurança social, algo que o governo chinês não quer fazer, as pessoas terão de poupar mais e gastar menos. No passado, o crescimento da China era conduzido pelas exportações, mas agora, por causa da geopolítica, da desglobalização, do comércio seguro, a capacidade da China de atrair investimento e de exportar será limitada. O crescimento potencial da China foi de 10% por 3 décadas. Depois caiu para 5%. Hoje, há uma aposta se são 3 ou 4. E essa redução do crescimento chinês enfraquece as economias da Ásia que estão nas suas cadeias de abastecimento, bem como os produtores de matérias-primas que exportam para lá e as empresas europeias que investem lá. A repercussão é global.

Valor: Há um subtexto de governança global no livro. Podemos criar uma arquitetura que alivie as tensões geopolíticas?

Roubini: Não creio que seja fácil. O problema não está nas instituições. O problema são as rivalidades geopolíticas: os EUA e o Ocidente, de um lado, e os aliados da China, do outro. Não concordam sobre mudança climática, sobre como lidar com pandemias, como manter a estabilidade econômica e financeira, o livre comércio, a mobilidade de capitais ou a segurança global. Esses são os problemas fundamentais. Não que não precisemos reformar o FMI ou o G20. Mas, nesse mundo de divisões, os grupos têm diferentes interesses econômicos, sociais, políticos, ambientais, geopolíticos e de segurança. E não se trata apenas da divisão entre o Norte Global e o Sul Global, entre o G7 e os Brics.

Valor: Os Brics, por sinal, anunciaram uma expansão.

Roubini: Mesmo antes da expansão, os Brics eram uma mistura de países bem diferentes. Alguns são democracias. Outros são autocracias. Alguns são exportadores de commodities. Outros são importadores. Alguns têm tido crescimento fraco. Outros, como a Índia, crescem bastante. Alguns são rivais do Ocidente, outros são amigos ou estão em cima do muro. Nem mesmo os cinco originais concordam em qualquer coisa. A China quer dominar os Brics, enquanto a Índia é rival da China. Esses dois países têm disputa territorial que pode até levar à guerra. Imagine somando Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Turquia, Argentina. Pelo menos o G7 é coeso, com suas democracias liberais ocidentais. Sim, o Sul Global está ficando mais importante. Mas penso que cada um desses países vai projetar poder e influência por conta própria. A ideia de que vão enfrentar coletivamente o Ocidente, acho um pouco inverossímil.

Valor: O sr. diz que os ativos se tornarão instáveis e perigosos. E que o equilíbrio entre títulos e ações terá que mudar. Existem portos seguros para o investimento?

Roubini: Existem alguns. Não é como se tudo fosse perder valor. No mundo da inflação alta, não é boa ideia ter rendimentos fixos de longa duração, cujo valor vai cair à medida que a inflação aumenta. Se você quiser ter títulos do governo, deve optar pelos de curto prazo ou atrelados à inflação. O ouro deve se valorizar. O preço de metais usados na transição verde vai subir, porque o aumento da oferta não vai acompanhar o da demanda, devido à regulamentação, incluindo a ambiental. Quem quiser entrar no mercado de ações terá de escolher os países e mercados certos. A China se tornará menos atraente. A Índia em ascensão poderá ser melhor. Os EUA ainda estão na vanguarda de muitas das tecnologias e indústrias do futuro.

Valor: Os investimentos em infraestrutura serão arriscados?

Roubini: Precisamos de muito mais infraestrutura. Mas se investirmos em imóveis, tem que ser naqueles que sejam resilientes à mudança climática; 40% das pessoas vivem perto da água, e o aumento do nível do mar implica que em muitas partes do mundo estarão debaixo d’água. Também há problemas com secas e incêndios florestais ou furacões e tufões. É preciso procurar partes do mundo que sejam ambientalmente seguras. É um mundo diferente, no qual não basta dividir os investimentos entre títulos e ações. É preciso ser mais sutil para proteger o valor dos inúmeros riscos.

Valor: O sr. diz que é preciso submeter os interesses individuais ao bem comum. Como seria isso?

Roubini: Antes de tudo, os sistemas políticos têm de ter líderes menos preocupados em ser reeleitos em curto prazo, portanto capazes de pensar no bem comum. Depois, esses líderes têm que estar dispostos a superar a divisão geopolítica para cooperar globalmente e resolver os problemas que não podem ser tratados domesticamente. Terceiro, os jovens se preocupam mais com essas questões, a começar pela mudança climática, porque uma criança nascida hoje poderá viver até os 100 anos, enquanto os mais velhos não existirão quando o planeta estiver destruído. Espero que os mais jovens estejam na vanguarda dos movimentos que incitem os tomadores de decisão a fazer a coisa certa.

Valor: Quando o sr. escreveu, a guerra na Ucrânia estava começando. Agora, se estende. Pode acelerar as mega-ameaças?

Roubini: Os riscos geopolíticos estão aumentando. Essa guerra está ficando mais quente. Pode envolver a Otan, pode tornar-se não convencional. A guerra fria entre os EUA e a China está ficando menos fria e não é mais questão de se, e sim quando haverá um confronto em torno de Taiwan. A Coreia do Norte continua a lançar foguetes. O Irã está prestes a se tornar uma potência nuclear, o que acende o sinal vermelho em Israel, que pode atacar. Os conflitos do passado foram muitos, mas todos convencionais. Hoje, se houver guerra entre os EUA e a China, não será convencional. Essa é uma mudança severa. Com a IA, as armas estão se tornando quase autônomas. Eu me preocupo com o futuro, não só da economia global, mas da nossa espécie. A ameaça do inverno nuclear, a mudança climática, uma pandemia mais grave. Até mesmo o risco de que a IA nos torne obsoletos. O livro é um chamado à ação para pararmos de ser zumbis, enfiando a cabeça na areia como avestruzes.

FONTE:

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/10/19/guerra-entre-os-eua-e-a-china-e-apenas-questao-de-tempo-diz-o-economista-nouriel-roubini-o-dr-catastrofe.ghtml