Políticas públicas estruturantes podem mudar a situação de 21,1 milhões de pessoas que passam fome e de 70,3 milhões em insegurança alimentar moderada.
Depois de um ano paradoxal, quando o Brasil bateu recordes de número de famintos, índices de desmatamento e volumes de safra, o pior pode estar ficando para trás. A situação aguda de insegurança alimentar registrada na virada de 2021 para 2022, que levou o país de volta ao mapa da fome mundial, começou a ser amenizada graças a medidas pontuais, como auxílio emergencial e distribuição de vale-gás, e conjunturais, a exemplo da recuperação do emprego.
O relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (Sofi), publicado em julho pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), aponta 21,1 milhões de pessoas no Brasil em situação de insegurança alimentar grave – a fome –, e 70,3 milhões em insegurança moderada, com dificuldades para se alimentar. O número é menor do que os 30 milhões de famintos detectados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) na virada de 2021 para 2022, mas continua a causar vergonha.
Este ano, porém, o combate à fome e a segurança alimentar ganharam políticas públicas mais estruturadas, potentes e com horizonte de mais longo prazo. Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), o plano Brasil sem Fome deve envolver 23 ministérios para tirar o país do mapa da fome até 2030, reduzir a pobreza extrema a 2,5%, com inclusão socioeconômica, e diminuir a insegurança alimentar e nutricional com base em três eixos: acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania; alimentação saudável da produção ao consumo; e mobilização para o combate à fome.
Mesmo antes disso, diversas iniciativas somam-se no mesmo sentido. Um exemplo é o Plano Safra da Agricultura Familiar, contemplando o segmento com verba inédita e estímulos financeiros à produção de alimentos. A previsão é de R$ 77 bilhões em recursos. Só o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar vai contar com R$ 71,6 bilhões, 34% a mais que na safra passada.
O restante virá de ações como compras públicas, assistência técnica e extensão rural e política de preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade (PGPM-Bio), com R$ 50 milhões para apoiar a comercialização de produtos extrativos – como açaí, borracha, mangaba e pirarucu de manejo. Produtores de alimentos essenciais, como arroz, feijão, leite e ovos, ganharam redução na taxa de juros anual, de 5% para 4%, e para aqueles com produção sustentável os juros caem para 3% ao ano, no custeio.
O pacote soma de melhoria da renda no campo a proteção ao meio ambiente e recomposição da produção de itens mais saudáveis que perderam área, como legumes e frutas. “Alimentos tradicionalmente da mesa do brasileiro deixaram de ser consumidos e foram substituídos por ultraprocessados”, disse o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, no lançamento do programa.
Outras medidas incluem desde o reestabelecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) até a transferência de renda com acréscimo por crianças, jovens e mulheres grávidas, ampliação do valor per capita do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e manutenção de estoques reguladores contra a explosão de preços. Iniciativas como a recomposição do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) avançam no Congresso. Além disso, questões macroeconômicas também sopram a favor do melhor consumo de alimentos, como desemprego e inflação em queda.
O valor do Bolsa Família, fixado em R$ 600, tem acréscimo de R$ 150 por criança de zero a seis anos e mais R$ 50 para gestantes ou adolescentes, e foi atrelado de novo a fatores como frequência escolar e vacinação, com benefícios extras – inclusive na alimentação. O Pnae, por sua vez, ganhou quase R$ 1,5 bilhão a mais que em 2022 para recompor o valor das refeições de 40 milhões de alunos da rede pública em 39%, em média, com orçamento de R$ 5,5 bilhões, 30% dos quais destinados a alimentos da agricultura familiar.
O PAA, por sua vez, incorporou recortes populacionais para garantir compras diretas de alimentação, sem licitação, de produtores mais vulneráveis, como indígenas, negros, mulheres, pescadores e assentados da reforma agrária, por parte dos três níveis de governo. Traz até uma novidade, o programa Cozinha Solidária. “São mais instrumentos para combater a fome”, diz Wellington Dias, ministro do MDS.
Mesmo ainda sem dados para confirmar o novo cenário, a presidente do Consea, Elisabetta Recine, avalia que números mais críticos podem ter sido amenizados com as ações adotadas até agora, com a retomada de políticas articuladas e programas para cobrir desde a produção até o consumo de alimentos para ajudar a estabelecer a segurança alimentar em bases mais sólidas. “A fome é estrutural e não tem solução única”, destaca.
Ela lembra que o quadro analisado por Josué de Castro nos anos 1940 no livro Geografia da Fome, colocando a fome não como fenômeno derivado de processos sociais, econômicos e políticos, ainda é atual – e como ficou mais complexo de lá para cá por questões como a geopolítica global, sem perder pilares estruturais como fragilidades de raça, gênero e território, exige respostas à altura.
Para Silvia Zimmerman, professora de desenvolvimento rural e segurança alimentar da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e membro da comissão executiva da Rede Penssan, dados econômicos mais promissores e mudanças no rumo das políticas públicas são positivos. A perda de fôlego da inflação, especialmente da comida, é outra boa notícia.
Em 2022, os preços do grupo alimentação e bebidas aumentaram 1,43% e responderam por quase metade da alta de 5,8% do IPCA, que em junho registrou deflação e crescimento de 3,16% em 12 meses. “A alimentação é um gasto inevitável, mas em cenários adversos sofre ajustes em qualidade, como substituição de proteínas por carboidratos e produtos in natura por ultraprocessados.”
Os programas ajudam a amenizar até a fome no campo, onde a insegurança alimentar grave chegou a 18,6%, em comparação a 15% no meio urbano, segundo o estudo Penssan. O quadro não é homogêneo. Marcelo Neri, diretor do FGV Social, que registrou em 2012 a ascensão da classe média rural decorrente do boom das commodities e de programas de transferência de renda, como aposentadoria para o segmento e Bolsa Família, agora destaca indicadores menores de desigualdade de renda do trabalho em regiões dentro de fronteira agrícola, como no Centro-Oeste.
Em contrapartida, regiões contíguas às grandes exportadoras, como áreas do Amazonas e Nordeste, convivem com pobreza extrema. O resultado é o paradoxo nacional, onde a produção agrícola convive com indicadores sociais conflitantes no campo e a segurança alimentar é descasada da produção e da pobreza baseada em renda.
Neri usa dados globais Gallup, que questiona anualmente quem sentiu falta de dinheiro para comida em 12 meses, e informações Pnad e Pnadc para mostrar o descolamento, a partir de 2006, entre insegurança alimentar e a linha de pobreza extrema. “Um mistério que demanda detalhamento”, diz. O índice Gallup chegou ao auge em 2021, com 36%, acima dos 35% da média mundial, e cedeu para 34% em 2022.
Apesar das perspectivas de melhoria, o passivo ainda é gigantesco. “Ainda é prematuro avaliar resultados e vem muita coisa pela frente”, diz Walter Belik, professor aposentado de economia agrícola da Unicamp e especialista do comitê da ONU para a segurança alimentar mundial.
Uma das questões desafiadoras é a população em situação de rua. Levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com dados do CadÚnico detectou em fevereiro mais de 206 mil pessoas, o dobro de 2015, dos quais mais de 52 mil na capital paulista. Outra, diz Belik, são os desertos e pântanos alimentares, quando não há produtos frescos disponíveis para venda a menos de 500 metros da moradia ou no caso de áreas urbanas inundadas de comida de baixa qualidade.
Ricardo Abramovay, da Faculdade de Saúde Pública da USP, vai além e destaca efeitos de longo prazo para a saúde pública, como o prejuízo à formação neurológica relacionada à fome infantil e doenças derivados do consumo de ultraprocessados, como problemas cardiovasculares e obesidade – que no Brasil aumentou 72% entre 2006 e 2019, quando dados da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito (Vigitel) apontaram que um a cada cinco adultos brasileiros era obeso.
“A segurança alimentar vai além das calorias, exige diversidade e produtos menos processados. Alimento se tornou vetor das doenças que mais matam no mundo”, diz. Ele aponta ainda a urgência na interrupção da monotonia do sistema agroalimentar mundial, dada a suscetibilidade da produção concentrada em determinadas regiões a eventos climáticos extremos, como a elevação dos preços com a seca no Brasil três anos atrás.
FONTE:
https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-agronegocio/noticia/2023/07/31/mapa-da-fome-assombra-o-pais.ghtml