Em junho deste ano, o editor do The Times, John Witherow, deu uma palestra na Sociedade de Editores britânica para falar do jornal na era digital. Num tom otimista, ele falou da necessidade do setor de abraçar novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, e de adotar um jornalismo focado em soluções. Acima de tudo, John Witherow aposta na qualidade como a garantia do sucesso da imprensa hoje e no futuro.
Reproduzimos abaixo uma versão resumida do texto da palestra publicado originalmente pela revista britânica InPublishing, com a permissão do editor de John Witherow, da Sociedade de Editores e da InPublishing.
Nos últimos vinte anos, nós testemunhamos mais mudanças no nosso setor do que em qualquer outra época nos 235 anos de história do The Times.
Nosso modelo de negócio foi virado ao avesso pela internet. Notícias proliferaram e furos duram apenas o tempo que leva para serem copiados.
Indo contra os conselhos de competidores, há dez anos o The Times seguiu seu próprio caminho. Nós passamos a ser um dos poucos jornais não-especializados no mundo a introduzir assinaturas digitais.
Na época, o termo ‘paywall’ era visto negativamente e buscamos achar eufemismos para definir nosso modelo de negócio. Fracassamos e o termo ‘paywall’ vingou. No final das contas, jornalistas gostam de linguagem simples.
Mas, na realidade, o modelo de paywall deu certo porque criamos um valor para o jornalismo digital. Nós recrutamos assinantes. Nós geramos lucros. E continuamos a investir no jornalismo da mais alta qualidade.
Pode parecer óbvio hoje, mas é revendo o passado que notamos que estávamos anos à frente de nossos competidores.
Não era óbvio na época. Um editor de outro jornal nacional previu que o The Times e o The Sunday Times iriam cair na ‘cripta da escuridão’ com apenas 60 mil assinantes.
Alan Rusbridger [ex-editor do The Guardian]: digo com prazer que você estava enganado.
Juntos, o The Times e o The Sunday Times têm mais de 500 mil assinantes, cerca de 300 mil deles digitais, e temos quase 5 milhões de usuários registrados que nos leem regularmente.
Isso foi alcançado enquanto protegíamos nossos jornais impressos, com os dois ocupando a primeira posição em seus respectivos mercados, o que não é algo fácil considerando-se o tempo que passamos correndo atrás do The Telegraph.
Mas eu não estou aqui para falar da última década, que talvez seja melhor esquecida já que outros jornais, especialmente marcas regionais vitais, sofrem para sobreviver.
Eu quero me concentrar na década à nossa frente. Mais especificamente, quero tentar responder à pergunta mais importante para mim no momento em que me aproximo de meus 40 anos no The Times, onde comecei como repórter: como proteger o futuro de um dos jornais mais famosos do mundo e garantir que continue a existir nos próximos 200 anos?
O ritmo acelerado da ruptura digital é bem conhecido nas redações por onde for.
Assim como o enorme poder das gigantes de tecnologia que abocanharam nossas receitas publicitárias digitais e que ainda não pagaram as empresas de comunicação pelo ‘conteúdo’ que damos a elas.
Eles nem reconhecem que são empresas de comunicação, responsáveis pelo que publicam.
Este é o ambiente mais desafiador que enfrentamos e, mesmo assim, devemos ver a situação como revigorante.
Quando a informação está por todo lado, há uma sede enorme por matérias bem escritas e originais, que possam explicar o mundo de forma clara e engajadora.
Nossa pesquisa mostra que os leitores do The Times não nos seguem para notícias de última hora; eles podem recebê-las pelo Twitter ou através de sites gratuitos como a BBC.
É por isso que há três anos abandonamos notícias constantemente atualizadas e, no lugar, utilizamos uma estratégia editorial onde publicamos atualizações completas em intervalos pré-determinados durante o dia.
Comentário, análise, exclusivas e investigações. São estes os quatro ingredientes principais que acreditamos sejam de interesse dos assinantes.
Essencialmente, nós acertamos a mão com a nossa receita para o produto impresso mas, digitalmente, temos que ser mais criativos e ambiciosos se quisermos servir novos leitores além dos clientes tradicionais.
Até agora, já atraímos assinantes de mais de 150 países, e registramos usuários em todos os países do mundo, incluindo a Coréia do Norte.
A tarefa é nos redefinir como uma empresa de mídia onde o impresso é apenas um produto. De criar um produto que possa ser de interesse tanto para uma pessoa de 19 quanto uma pessoa de 90 anos de idade.
O produto impresso nos serviu bem. Mas, muitas vezes, pessoas mais jovens nos encontram pelas ferramentas de pesquisa, sem conhecimento da edição impressa. Neste contexto, a linguagem de uma nota ou uma notícia curiosa na página 3 não faz sentido nenhum.
As matérias ainda têm que ser boas, mas devem sobreviver por conta própria, sem estarem presas à posição que ocupam na edição impressa.
Inteligência Artificial
A tecnologia é uma das soluções. Estamos experimentando com inteligência artificial e desenvolvemos o James, um ‘mordomo digital’ que recomenda matérias e as serve quando e como você quiser.
Assim como o Jeeves [referência ao mordomo Jeeves, personagem de uma série de livros de PG Woodhouse], James está fazendo um ótimo trabalho. Nós conseguimos reduzir em 40% o número de cancelamento de assinaturas durante o programa piloto.
E temos também o surgimento do repórter robô. Cerca de um terço das notícias publicadas pela Bloomberg já usa algum tipo de tecnologia de automação.
Avanços no processo de produção significam que editores terão informações checadas automaticamente. O guia de estilo de uma publicação poderá ser automatizado, novamente ajudando na remoção de uma boa parte do trabalho rotineiro.
Isso não é para minar o jornalismo, mas para melhorá-lo. As notícias da Bloomberg são de dados financeiros que jornalistas não querem escrever. Isso libera os jornalistas e editores para que sejam mais criativos.
E estamos bem distantes – se isso realmente um dia chegar a ocorrer – de um computador ser capaz de produzir a linguagem e a originalidade de um Giles Coren, um Matthew Parris, um Philip Collins, uma Ann Terneman, um Danny Finkelstein, uma Janice Turner ou uma Caitlin Moran. [São colunistas de seus jornais.]
A informação e a compreensão que fornecemos é o que vai garantir nossa existência numa nova era.
De certa forma, o que ocorre hoje é igual ao que sempre ocorreu.
Em 1785, o editor John Walter I criou o Daily Universal Register ‘para registrar as principais ocorrências da época’, a serviço do público.
Logo depois, o Register passou a ser o The Times.
Em sua primeira edição, John Walter I explicou que ‘como qualquer mesa farta, ele deve conter algo relevante para todo gosto’, incluindo política, internacional, comércio, julgamentos, anúncios e ‘diversões’.
Mais de 200 anos depois, essa continua sendo uma boa forma de descrever o que buscamos oferecer no The Times.
O conteúdo e o objetivo continuam imutáveis. O que mudou foram o formato e a distribuição.
Houve uma época, não muito distante, em que o único formato era o jornal impresso, saindo de caras rotativas. E a única forma de distribuí-lo era através de uma cara frota de veículos passando madrugada adentro pelas cidades e zonas rurais.
A tecnologia digital fundiu o formato com a distribuição. O conteúdo chega em seu iPad ou telefone como se fosse mágica.
A revolução no sistema de produção tentou novos empreendedores digitais a entrar no jornalismo – e que sejam benvindos.
Eu não os temo porque eu acho que o The Times tem uma grande vantagem com seus 200 anos de marca de prestígio.
Veja as marcas que estão se dando bem na era digital: The Times, The New York Times, The Wall Street Journal, The Guardian.
Todos confirmam que o segredo do sucesso é unir a tecnologia mais avançada com o jornalismo de alta qualidade.
Nós não somos, como as gigantes de tecnologia são, empresas de negócios digitais. Nosso objetivo é gerar bom jornalismo em todas as plataformas.
Dessa forma, vamos ser capazes de atingir pessoas que ainda não estamos atingindo em número suficiente.
Por exemplo, áudio e vídeo.
A The Economist e o The New York Times estão à frente e nós também estamos vendo como devemos gerar nossas notícias e matérias de fundo via áudio.
Mas não é apenas podcast. Pode ser rádio, também.
É um passo natural para pessoas em movimento – caminhando, andando de bicicleta, na academia, em trens e carros. Logo mais, a tecnologia permitirá a automatização da leitura de artigos com voz.
Precisamos fazer isso porque temos que servir tanto nossos leitores que estão ficando mais velhos quanto ser atraentes para novos clientes.
Nossos novos leitores cresceram com Netflix, Spotify e Amazon Prime. Eles sabem que se você quiser um bom serviço, tem que pagar por ele, e nosso desafio é fazer com que o serviço seja suficientemente bom.
E nisso acho que podemos aprender com empresas de tecnologia.
Como eles, temos que inovar mais rapidamente. Experimentar sem parar, investir em desenvolvimento tecnológico.
Jornalismo de soluções
Ao mesmo tempo, estamos procurando novas ideias para mudar a atitude em relação à mídia, geralmente vista de maneira negativa. Uma das mais interessantes é o jornalismo construtivo [jornalismo de soluções, como é conhecido nos EUA].
Ele pode ser confundido como ‘notícias boas’, um conceito que a maioria dos jornalistas rejeita. Mas deixe-me explicar minha visão. E para isso, gostaria de agradecer o jornalista dinamarquês Ulrik Haagerup, que visitou o The Times para nos mostrar o resultado de sua pesquisa.
Conhecemos os seis criados honestos de Kipling: O quê, Onde, Quando, Quem, Por quê e Como.
E também sabemos que nossa profissão passou a ficar sob pressão da ‘fake news’ e de um presidente americano que considera a ‘mídia tradicional’ como mentirosa e inconfiável.
O jornalismo construtivo é um caminho para a recuperação da confiabilidade da mídia tradicional. Como? Com a adição de mais uma pergunta: E daí?
Muitos de nós ficamos imunes à constante negatividade da maior parte de nossa cobertura noticiosa.
Partindo do velho princípio de que notícia deve ser ‘algo que alguém, em algum lugar, quer suprimir’, é fácil aprovarmos pautas desvendando algo sujo, coisas ruins e atividades criminosas.
E é claro que devemos fazer isso. Mas o jornalismo construtivo tem como objetivo dar mais poder ao leitor ao dedicar mais tempo a desenvolver o ‘E daí?’.
Portanto, quando noticiamos a epidemia de crimes com facas em Londres, dedicamos mais tempo explicando como Glasgow combateu o mesmo péssimo problema que teve.
Quando cobrimos a mudança climática, buscamos explicar quais são as soluções ecológicas viáveis.
Se temos um problema com suicídio entre adolescentes, pesquisamos como outros país lidam com a questão, e onde há soluções que possam ser úteis.
Nós também podemos usar nossa equipe de dados para melhorar nosso jornalismo.
Em nossa recente campanha ‘Ar Limpo’, os leitores podem checar com precisão no nosso site o nível de poluição registrado em torno da escola de seus filhos.
Isso já está levando mais pais a exigirem zonas de ar limpo nas zonas escolares e outras medidas para combater o que é um problema real.
Uma matéria sobre obesidade infantil permitiu que leitores entendessem como aulas para pais e mães em Leeds ajudaram a combater o problema.
Acertamos num veio de necessidades de nossos leitores. Eles querem saber o que podem fazer com as informações. Quem são os especialistas. Onde podem saber mais.
Tudo isso deve ter o mesmo objetivo: permitir que os leitores melhorem suas vidas. Ou seja, notícias úteis.
Nós podemos fornecer informações sobre os problemas atuais e também podemos indicar possíveis soluções.
Por quê? Porque é útil, é enriquecedor e não é negativo.
Cobertura internacional
Com tudo isso, temos sorte de termos no The Times recursos para manter correspondentes estrangeiros de primeira classe, num total de 36.
Para sermos capazes de mandar jornalistas para os campos de refugiados na Síria ou na Líbia.
Para contar o que acontece com uma jovem grávida de 15 anos recrutada pelo Estado Islâmico. Para trazer à tona as profundas divisões na Grã-Bretanha sobre como lidar com as repercussões da matéria sobre ela, a Shamima Begum, e seu bebê.
A realização da cobertura de conflitos está ficando cada vez mais perigosa e cara.
Foram 99 jornalistas mortos no ano passado, e mais 348 presos. Sabemos dos perigos pela perda de Marie Colvin e as ameaças constantes contra Anthony Loyd e outros jornalistas. [Calvin era jornalista do The Sunday Times que morreu em 2012 enquanto cobria a guerra civil na Síria; Loyd é correspondente de guerra do The Times.]
São jornalistas que acreditam na necessidade de testemunhar atrocidades e eu acredito que, no futuro, o The Times nunca deva reduzir sua cobertura do mundo.
E, engraçado, o Facebook não paga por correspondentes de guerra.
E nós também não escondemos o fato de quem culpamos pela ameaça à nossa própria existência.
O Facebook e Google tomaram a receita publicitária digital em que dependíamos e se recusaram a pagar um valor justo pelas cópias que fortalecem suas plataformas.
Eles não passam por regulamentações e controles, e não se preocupam com a sociedade despedaçada que é o produto derivado do sucesso comercial deles.
Enquanto esperamos pela verdadeira mudança necessária, resta continuar seguindo adiante.
E a boa notícia para o The Times é que, na busca de novas audiências, não temos que fazer mudanças no que essencialmente somos.
Nós só temos que lembrar que qualidade é a única coisa que vai sobreviver a revolução.
Previsões
Sempre fui aconselhado a não tentar prever o futuro. Mas se for fazer isso, faça previsões bem no futuro distante para evitar ser desmascarado. Em outras palavras, não tente prever quem será o próximo papa; preveja quem será o papa depois do próximo.
Apesar de saber disso, vou tentar fazer algumas previsões toscas.
A primeira é que publicações impressas vão continuar conosco por um bom tempo. É verdade que nossas vendas impressas estão caindo, mas apenas por uns poucos pontos percentuais por ano, o que significa que, com uma tiragem [diária] em torno de 400 mil, elas ainda têm muitos anos pela frente.
Claro que isso é algo positivo porque um jornal é um produto físico que pode ser lido em casa, no bar, no clube ou no trem por mais de uma pessoa e, muitas vezes, por uma pessoa jovem. É bom que comecem cedo!
A segunda é que a penetração de jornais sérios e de interesse geral que investem em qualidade irá crescer nas próximas décadas.
E isso é particularmente válido para jornais em inglês com um longo histórico de credibilidade e confiabilidade. O importante é achar o conteúdo digital certo e acertar no preço. Veja o exemplo do Netflix e da Amazon Prime.
E se conseguirmos dominar a arte do jornalismo construtivo, podemos melhorar a imagem da mídia porque os leitores vão começar a perceber que podemos ajuda-los a melhorar suas vidas.
Eu também prevejo que, em algum momento, as gigantes da internet vão ser regulamentadas e classificadas como editoras, tendo que seguir as mesmas normas que as nossas.
Eu também espero que sejam divididas. E que a BBC irá, no final das contas, trocar o sistema de licença anual obrigatória por um sistema de assinatura voluntária.
Isso tudo criará um campo de atuação mais equilibrado, onde a competição poderá existir de forma justa.
E, finalmente, abandonando a regra sobre previsões de curto prazo: Boris Johnson será o próximo primeiro-ministro (*), Brexit ocorrerá e Donald Trump será reeleito presidente dos EUA no ano que vem. E, gostem ou não, isso será bom para o jornalismo.
Aconteça o que acontecer, será interessante.
Uma das coisas mais vibrantes no jornalismo é que um dia é sempre diferente do outro.
Ocupamos uma posição privilegiada à medida em que as notícias surgem. É a possibilidade de mudanças que nos mantém interessados, que nos mantém sérios.
Eu penso da mesma forma tanto em relação a como o setor está mudando como em relação ao ciclo diário de notícias.
Ainda é algo eletrizante. E sempre será.
O que é preciso é nos adaptarmos à nova tecnologia, de fazer dela um aliado, de fazer com que trabalhe em prol do nosso jornalismo.
Se fizermos isso, vamos alcançar mais pessoas, e mais rapidamente do que antes.
Iremos levar nosso setor a uma nova era e, mais importante ainda, teremos garantido o futuro de um jornalismo com credibilidade e de alto nível que, numa democracia liberal que depende da credibilidade de afirmações feitas em público, continua com o mesmo nobre objetivo de quando John Walter teve sua ideia em 1785.
A palestra original foi feita na Sociedade de Editores da Grã-Bretanha em junho de 2019. A tradução é da versão resumida publicada pela revista britânica InPublishing. O texto é publicado com permissão do Editor do The Times, John Witherow, da Sociedade de Editores e da InPublishing.
(*) Boris Johnson for eleito líder do Partido Conservador em julho, assumindo o cargo de Primeiro Ministro logo depois.
FONTE:
http://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/82548/nosso+legado+sera+a+qualidade