Para cientistas, eventos meteorológicos extremos se tornarão mais frequentes, impactando setores como construção, indústria, agricultura e até de seguros.
A Acrópole situa-se acima da cidade de Atenas, com suas paredes e pilares da Antiguidade tendo sobrevivido à guerra, ao cerco e à conquista por séculos. Mas, neste mês, com as temperaturas subindo para 40°C em todo o sul da Europa, a principal atração turística da Grécia capitulou, por um curto período, vítima do calor extremo. Autoridades fecharam o lugar por várias horas, durante os períodos mais quentes do dia, após turistas terem formado filas para receber atendimento médico.
Por Attracta Mooney, Camilla Hodgson, Ian Smith e Aime Williams — Financial Times, de Londres e Washington
A onda de calor Cerberus – que leva o nome do cão de três cabeças que guardava os portões do inferno na mitologia grega – jogou luz sobre a vulnerabilidade do setor de turismo às ondas de calor cada vez mais comuns na Europa. Mas o impacto econômico que, segundo os especialistas, poderá configurar uma nova era de calor superior aos recordes históricos, vai bem além do turismo. Setores de atividade que vão da construção civil à indústria de transformação, agricultura, transporte e seguros estão se preparando para modificar operações, num momento em que dias de elevada temperatura se tornam mais rotineiros devido à mudança climática. Pistas de aeroportos estão empenando, metrôs estão fechando, restaurantes têm de baixar as portas porque funcionários passam calor demais.” — Kathy McLeod
Os cientistas dizem que eventos climáticos extremos, entre os quais ondas de calor, se tornarão mais frequentes e intensos diante de qualquer acréscimo de fração na temperatura do planeta. Em julho, com a média das temperaturas já tendo subido pelo menos 1,1°C globalmente acima dos níveis pré-industriais, áreas dos EUA, Europa e Ásia sofriam sob “cúpulas de calor”. Foram alcançadas altas recordes da China até a Itália. Estudo publicado por acadêmicos de Dartmouth em 2022 detectou que ondas de calor, geradas pela mudança climática causada por humanos, custaram à economia global estimados US$ 16 trilhões ao longo de um período de 21 anos iniciado na década de 90. O calor extremo está “empurrando o crescimento para baixo”, diz Kathy Baughman McLeod, diretora do Resilience Center da Adrienne Arsht-Rockefeller Foundation no Atlantic Council. “Ele retarda o avanço das nossas economias. As pistas de decolagem de aviões estão empenando, metrôs estão fechando, restaurantes têm de baixar as portas porque a equipe da cozinha passa calor demais.” Esses custos tendem a escalar nas próximas décadas na medida em que as economias se reorientarem para temporadas de picos de calor ainda mais extremos, a fim de mitigar os riscos e a desestabilização que elas trarão. Quente demais para trabalhar. Um dos principais motivos pelos quais o calor extremo ameaça a economia é o fato de ele dificultar o ato de trabalhar. As altas temperaturas andam de mãos dadas com a baixa produtividade. Em condições de calor, o ser humano normalmente “trabalha mais devagar, assumimos mais risco, nossa função cognitiva diminui”, diz Laura Kent, da Instituto de Engenheiros Mecânicos, uma associação profissional que produziu recentemente um relatório sobre como a indústria terá de se adaptar ao calor extremo. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o órgão da ONU voltada para os trabalhadores, projetou que, até 2030, o equivalente a mais de 2% do total de horas de expediente mundial será perdido a cada ano, ou porque estará muito quente para trabalhar ou porque trabalhadores terão de operar em ritmo mais lento.
Poucos países estabeleceram uma temperatura máxima sob a qual o trabalho deverá ser obrigatoriamente suspenso. No Reino Unido, por exemplo, onde o calor extremo não é, historicamente, um problema, há apenas um limite recomendado para parar de trabalhar sob temperaturas baixas, não sob temperaturas altas. Os países mais pobres e com menor capacidade de enfrentar o fenômeno são, muitas vezes, os mais duramente atingidos pelo calor extremo – com perdas de produtividade que se concentram frequentemente em profissões em que os salários tendem a ser mais baixos do que a média. Os trabalhadores que atuam ao ar livre – principalmente os da agricultura ou da construção civil – são os que mais correm risco de morte, ferimentos, doenças e queda de produtividade devido à exposição ao calor, segundo a OIT. Mas os riscos dos que trabalham em ambientes fechados estão crescendo, entre os quais os 66 milhões de trabalhadores têxteis, que muitas vezes trabalham em fábricas e oficinas desprovidas de ar condicionado. Muitos vivem no Sul Global, onde as temperaturas de pico são ainda mais extremas e perigosas. O impacto do calor extremo sobre os trabalhadores se tornou “uma questão de direitos humanos”, diz o economista ambiental Shouro Dasgupta, que trabalha na Itália e defende políticas mais sólidas de proteção à mão de obra. “O direito a um ambiente seguro e saudável é um direito humano que tem sido corroído”, acrescenta. “Os governos terão de intervir.” Setores em risco. Para além das consequências do calor extremo sobre funcionários, os setores de atividade estão sendo obrigados a repensar questões de ordem mais existencial, tais como o local da sede de suas empresas e como deveriam operar. O setor de construção é uma área que poderá exigir uma reinvenção radical, diz Daisie Rees-Evans, que trabalha em política pública no Chartered Institute of Building, uma entidade de classe.
“Condições climáticas extremas não apenas impactam o trabalho na construção civil nos locais das obras como também impactam, na verdade, o material”, diz ela. O aço pode envergar em condições de calor, enquanto o concreto torna-se difícil de ser trabalhado e endurece mais rapidamente – o que aumenta a tendência a rachaduras e afeta sua solidez e durabilidade. Há ainda o risco de o concreto estragar antes de ser despejado. Tudo isso aumenta os custos do setor, diz Rees-Evans. Quaisquer atrasos em projetos podem também gerar custos adicionais, entre os quais multas por ultrapassar a data de conclusão pactuada, acrescenta ela. A indústria de transformação é outro setor que enfrenta mudanças significativas. Fábricas e armazéns “simplesmente não são projetados para temperaturas que vemos agora e que prevemos ver”, diz Kent, da associação dos engenheiros mecânicos. Isso significa que os equipamentos poderão não funcionar com a mesma eficiência ou que se desgastem mais rapidamente, o que implica na alta dos custos operacionais. “Uma grande parte do nosso setor depende de algum tipo de processo de aquecimento ou de refrigeração”, diz ela. Ao mesmo tempo, a disponibilidade de água pode sofrer com a intensa sobrecarga durante períodos de maior calor – um enorme problema para a indústria, que precisa de água para funções que vão da refrigeração ao transporte. Ao longo do rio Reno, um dos cursos d’água mais importantes da Europa, empresas tiveram de suspender o trabalho devido a baixos níveis de água em três dos últimos cinco anos, inclusive em 2018, quando os barcos enfrentaram dificuldades para navegar, o que prejudicou os suprimentos de combustíveis e de produtos químicos. ”Há muito, mas muito tempo mesmo, colocamos indústrias perto de rios”, diz Johanna Lehne, chefe de planejamento da consultoria climática E3G, mas as empresas enfrentam agora questionamentos sobre onde deveriam ter sede e o que conseguiriam produzir.
Há ainda o risco à infraestrutura. O estresse por calor “vai reduzir as vidas úteis”, diz David Carlin, da Iniciativa de Financiamento de Planejamento Ambiental da ONU. Isso afeta desde linhas férreas até estradas e aeroportos. “Não se têm apenas potenciais danos à infraestrutura, como quedas de pontes; tem-se também a necessidade de substituir essas coisas mais rápido, o que está elevando os custos.” Para a agricultura, o calor extremo pode resultar em redução do rendimento das colheitas, o que pressiona os preços ainda mais para cima e gera insegurança alimentar no processo. Análises da Arsht-Rock concluíram que o milho, maior cultivo dos EUA, vem perdendo receitas em torno a US$ 720 milhões por ano em razão do calor extremo, uma perda que deve chegar a US$ 1,7 bilhão em 2030. À medida que o trabalho se torna mais arriscado em diversos setores, os custos das apólices de seguro aumentam. As mudanças climáticas “vão moldar significativamente a forma como o setor escolherá gerenciar e absorver riscos”, diz Mohammad Khan, líder da área de seguros gerais na consultoria PwC no Reino Unido. De acordo com dados da firma de resseguros Swiss Re, as perdas das seguradoras com catástrofes relacionadas ao calor, como problemas de colheitas em razão da seca ou danos a propriedades causados por incêndios florestais, somaram US$ 46,4 bilhões nos cinco anos até 2022, aumentando em comparação aos US$ 29,4 bilhões nos cinco anos anteriores. Na Califórnia, uma das áreas mais afetadas por incêndios florestais, algumas das principais seguradoras dos EUA se retiraram de cena. A Allstate citou o alto custo dos incêndios florestais como um dos motivos para interromper a venda de apólices de seguro residencial na Califórnia em 2022. Adaptação à mudança. As promessas climáticas feitas pelos países colocam o mundo no caminho de aumentos de temperatura entre 2,4°C e 2,6°C até 2100. Isso está muito além do limite de 1,5°C que, se ultrapassado, traria mudanças potencialmente irreversíveis para o planeta e consequências devastadoras para os cidadãos, alertam cientistas.
“Este [calor extremo] não vai acabar tão cedo. As ondas de calor serão mais frequentes, serão mais intensas e também serão mais longas”, diz Carolina Cecilio, consultora de políticas da E3G. Alguns países começam a dar atenção ao problema. A Grécia nomeou sua primeira diretora de calor em 2021. A Espanha anunciou no início deste ano que proibiria o trabalho ao ar livre durante períodos de calor extremo. Empresas têm introduzido medidas como usar “nebulização” para refrescar animais e funcionários. Outras mudaram o horário de trabalho, para tentar concentrar mais atividades à noite ou durante as primeiras horas da manhã – embora isso possa sofrer objeções de governos locais e moradores. Para Kent, à medida que o mundo se aquece, é provável que o chamado resfriamento passivo ganhe importância para as economias. Muitos dos materiais usados para construir edifícios e estradas – como piche e concreto – absorvem e retêm a energia dos raios solares e, com isso, aquecem seu entorno, enquanto fábricas e armazéns costumam ficar em parques industriais que carecem de espaços verdes e concentram o calor. Algumas das soluções com bom custo-benefício são o uso de “telhados frios”, que são pintados de branco para refletir o calor. Em termos internacionais, a expectativa é de que a adaptação esteja no topo da agenda das negociações da próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP28. Os políticos estão cada vez mais preocupados em encontrar formas de levantar fundos para ajudar países, especialmente do Sul Global, a lidar com temperaturas extremas causadas por mudanças climáticas. Mas McLeod diz que as empresas e governos precisam agir imediatamente para se preparar para o calor extremo. “Não existe uma solução para todos os lugares, mas existe uma solução para cada pessoa.” (Tradução de Rachel Warszawski, Sabino Ahumada e Lilian Carmona).
FOTO:
Avião-tanque despeja água para tentar conter incêndio florestal na ilha Ciovo, na Croácia, que fica em uma das áreas mais afetadas pelo calor extremo — Foto: Miroslav Lelas/AP
FONTE
https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/07/28/nova-era-de-calor-extremo-vai-elevar-custos-e-transformar-economias.ghtml