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A criação de uma “Otan” do Indo-Pacífico

Os EUA deslocaram forças militares mais móveis e letais para locais estratégicos em toda a Ásia.

Enquanto a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) enfrenta uma crise, pelo “desinvestimento” que Trump está fazendo naquela vetusta instituição, surgem indícios de que os EUA, num deslocamento geoestratégico, poderão investir num “Pacto de Defesa do Pacífico”.

Recente artigo publicado  na revista Foreign Affairs, que é uma espécie de voz do “establishment” estadunidense na área das relações internacionais, intitulado “The Case for a Pacific Defense Pact”- America Needs a New Asian Alliance to Counter China  (“Uma defesa em prol de um Pacto de Defesa do Pacífico” – A América precisa de uma nova aliança asiática para combater a China) é elucidativo, a esse respeito.

Embora o autor do artigo, Ely Ratner, seja ligado ao Partido Democrata ( ele foi Assistant Secretary of Defense for Indo-Pacific Security Affairs– Secretário Adjunto de Defesa para Assuntos de Segurança Indo-Pacífico-durante o governo Biden), ele reflete posições que são dominantes no establishment dos EUA.

Segundo Ely Ratner:

“Chegou a hora de os Estados Unidos construírem um pacto de defesa coletiva na Ásia. Durante décadas, tal pacto não foi possível nem necessário. Hoje, diante da crescente ameaça da China, ele é viável e essencial. Os aliados americanos na região já estão investindo em suas próprias defesas e forjando laços militares mais profundos. Mas, sem um compromisso sólido com a defesa coletiva, o Indo-Pacífico caminha para a instabilidade e o conflito.”

O Autor argumenta, ainda, que, mudanças táticas à parte, as aspirações geopolíticas de Pequim para “o grande rejuvenescimento da nação chinesa” permanecem inalteradas. Para ele, a “China busca tomar Taiwan, controlar o Mar da China Meridional, enfraquecer as alianças com os EUA e, por fim, “dominar a região”.

Se isso acontecer, o resultado “será uma ordem liderada pela China que relegará os Estados Unidos à posição de potência continental diminuída: menos próspera, menos segura e incapaz de acessar ou liderar plenamente os mercados e tecnologias mais importantes do mundo.”

Na realidade, os Estados Unidos já vêm investindo em capacidades militares avançadas e desenvolvendo novos conceitos operacionais na região do Indo-Pacífico.

Deslocaram forças militares mais móveis e letais para locais estratégicos em toda a Ásia.

Fundamentalmente, salienta Ratner, reformularam suas parcerias de segurança na região.

Nas últimas décadas, o foco principal de Washington foi o fortalecimento de laços bilaterais estreitos com países importantes da região.

Entretanto, nos últimos anos, os Estados Unidos adotaram uma abordagem mais integrada, que confere aos aliados americanos maiores responsabilidades e incentiva laços mais estreitos não apenas com Washington, mas também entre os próprios aliados. Essas mudanças estariam, segundo o Autor, criando novos desafios militares e geopolíticos para Pequim, reforçando, assim, as dúvidas da China sobre o potencial sucesso de uma agressão.Não obstante, para Ratner, essas iniciativas de defesa que foram produzidas permanecem muito informais e rudimentares. Devido à “contínua modernização militar chinesa,” a verdadeira dissuasão exige a vontade e a capacidade que somente um acordo de defesa coletivo poderia proporcionar. Tal aliança – que poderia ser chamada de “Pacto de Defesa do Pacífico” – uniria os países atualmente mais alinhados e preparados para enfrentar o desafio da China: Austrália, Japão, Filipinas e Estados Unidos. Conforme Ratner, membros adicionais poderiam se juntar, conforme as condições o exigirem.

Essa aliança ou pacto formal e estreito poderá ou deverá ocorrer, mesmo com a pouca disposição de Trump para investir em alianças diplomáticas.

Ratner argumenta, e esse é o ponto mais interessante do artigo, que a realidade é que os líderes em Washington e nas capitais aliadas continuam trabalhando para aprofundar a cooperação militar no Indo-Pacífico, apesar das tensões econômicas e diplomáticas. No que diz respeito às questões de defesa, tem havido muito mais continuidade do que ruptura, até o momento.

Durante muito tempo, especialmente durante a antiga Guerra Fria, os países do Pacífico preferiam estabelecer dissuasão em defesa com base em entendimentos bilaterais de alcance restrito.

Não obstante, de acordo com Ratner, os tempos mudaram. As condições que antes impediam o alinhamento multilateral na Ásia, como as intervenções dos EUA no Sudeste Asiático, estão dando lugar, segundo o Autor, a novos apelos por defesa coletiva. Pouco antes de assumir o cargo no ano passado, o primeiro-ministro japonês Shigeru Ishiba alertou que “a ausência de um sistema de autodefesa coletiva como a OTAN na Ásia significa que guerras provavelmente eclodirão”.

Já em 2013, a estratégia japonesa de segurança nacional divulgada publicamente alertou sobre as atividades “rapidamente expandidas e intensificadas” da China, em torno dos territórios japoneses. Pouco tempo depois, o governo japonês reinterpretou a constituição pacifista do país, permitindo que suas forças armadas trabalhassem mais estreitamente com os militares parceiros.

As Filipinas, segundo Ratner, seguem um processo similar. Até pouco tempo, a segurança nacional desse país estava muito focada no combate à insurgência islâmica. Porém, com o enfraquecimento da insurgência, os filipinos, hoje, estariam muito mais preocupados com a “ameaça externa” da “constante invasão chinesa dos direitos e da soberania marítima das Filipinas, principalmente no Mar da China Meridional.”

Da mesma forma, conforme Ratner, a Austrália também estaria reenfocando sua defesa nacional na China.

Canberra estaria revisando suas prioridades de defesa “de cima a baixo”.

Até 2016, a visão oficial do governo australiano era de que um ataque militar estrangeiro ao seu território era “nada mais do que uma perspectiva remota”.

Já em 2024, a Força de Defesa Australiana está se preparando para combater “grandes ameaças mais próximas”. O Primeiro-Ministro Anthony Albanese revelou planos para gastos militares recordes, incluindo grandes investimentos em estoques de munições essenciais, como disparos de longo alcance, mísseis antinavio e mísseis para defesa aérea. As reformas destacam a crescente convicção de que a geografia vantajosa do país não oferece mais proteção suficiente “contra a China”.

Ainda segundo Ratner, Japão, Filipinas e Austrália “não apenas reconhecem a China como sua principal ameaça comum”; também “reconhecem cada vez mais que seus destinos estão interligados com os da região como um todo”. Isso se aplica até mesmo a questões tão sensíveis como Taiwan, outrora um assunto tabu na região: “Uma emergência em Taiwan é uma emergência japonesa”, declarou o ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, em 2021. “Se algo acontecer a Taiwan, inevitavelmente seremos envolvidos”, alertou o chefe militar filipino no início deste ano.

Esse “entendimento comum” está impulsionando uma série de iniciativas sobrepostas e complementares — “o que, em 2024, o Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, chamou de “a nova convergência no Indo-Pacífico” — que se baseia no foco tradicional dos Estados Unidos nos laços bilaterais na região.

O governo Biden, em particular, trabalhou para complementar o antigo modelo de “centro e raios” com o que imaginou como uma “treliça” de relações na Ásia. A parceria AUKUS reuniu Canberra, Londres e Washington para ajudar a Austrália a construir submarinos com propulsão nuclear e armas convencionais. Como membros do Quad Indo-Pacífico, Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos uniram esforços para fornecer conscientização sobre o domínio marítimo em toda a região.

Autoridades americanas também intensificaram a cooperação trilateral em segurança com o Japão e a Coreia do Sul.”

Assim, as evidências até o momento indicam que os Estados Unidos e seus aliados do Indo-Pacífico estão conseguindo aprofundar a cooperação em defesa, apesar dos ventos políticos e econômicos contrários. Isso se deve, em grande parte, segundo Ratner, à “crescente ameaça da China”, à demanda contínua por uma presença militar americana na região e à crescente tendência de cooperação em segurança intra-asiática.

Ratner reconhece, não obstante, que “certamente”, o governo Trump pode estar muito dividido, distraído ou conflitivo para jogar a “carta vencedora” que lhe foi dada. Nesse caso, muitos dos alicerces ainda podem ser colocados em prática, segundo ele, em um futuro governo. Dado o número de tarefas pela frente, um pacto efetivo pode não ser finalizado até um próximo governo americano.

Não necessariamente. Esse sentimento paranoico anti-China, e o medo de que o gigante asiático transforme os EUA, como reconhece Ratner, numa potência continental diminuída (não mais uma potência mundial): “menos próspera, menos segura e incapaz de acessar ou liderar plenamente os mercados e tecnologias mais importantes do mundo” (que estão no Pacífico e na Ásia), são sentimentos que estão muito presentes tanto em Democratas quanto em Republicanos.

Ao contrário do que acontece com a Otan, não há divisão estratégica entre os dois partidos políticos estadunidenses quanto à China. Ela é, para eles, a grande e principal ameaça, o grande desafio geoestratégico dos EUA.

O Pacto de Defesa do Pacífico proposto por Ratner, contudo, não mudará nada. Não mudará a marcha da História, ainda mais quando Trump se desvencilha de antigos aliados e impõe o Make America Great Again com uma saraivada tresloucada de tarifas e protecionismo.

Ninguém mais confia em Trump e nos EUA para fazer Pacto nenhum.

A maioria dos países do mundo espera para cooperar com a China, um parceiro pacífico, confiável e que não exige contrapartidas políticas.

Os EUA poderão ficar com a Austrália, as Filipinas e o Japão, mas a China deverá ficar com toda a Asean, o Sudeste Asiático e a União Centro Asiática.

As Rotas da Seda, macias, insinuosas e lucrativas implodirão qualquer Pacto baseado na paranoia e no medo produzido por um EUA desesperado, que teme perder a sua condição de grande potência mundial.

Pacto não é máquina do tempo. Já era.

FOTO: Airman Robert Baker, U.S. Navy

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-criacao-de-uma-otan-do-indo-pacifico