O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra.
A geopolítica clássica parte da hipótese de que o mundo seria moldado pelas disputas de poder entre as nações buscam controlar o território terrestre e aquelas que dominam os oceanos, o que produziria como resultado uma dinâmica de conflito e cooperação ao longo do tempo. Isso porque durante séculos, a disputa pela hegemonia global esteve intrinsecamente ligada à geografia e às civilizações que nela prosperaram.
Essa visão de oposição entre poderes continental e marítimo tem sido dominante no mundo em que a logística, o comércio e a estratégia militar dependiam fundamentalmente da geografia física. Embora continuem extremamente relevantes nota-se que na atualidade, a emergência da dimensão digital tem imposto uma importante transformação na disputa pelo poder global.
Com a transição para a Era digital, o controle de dados, as infraestruturas digitais, o ciberespaço e o espaço sideral constituem novo elementos interligados que definem a capacidade de uma nação ou entidade exercer influências na configuração do poder global. O domínio digital projeta o domínio tecnológico com a coleta e gestão das informações estratégicas e até mesmo a liderança nos conflitos sob novas formas, como nas guerras cibernética e de informação.
Pela infraestrutura decisiva dos dados, computação em nuvem, cabos submarinos, plataformas digitais, algoritmos e inteligência artificial, a dialética terra e mar soma-se e interliga-se. Por isso, a geopolítica clássica não se torna obsoleta, ainda que se reconfigura diante das novas formas de disputas entre poderes territoriais, marítimos e, agora crescentemente pelos poderes informacionais transnacionais.
No sentido dos fluxos de dados centrado na esfera privada das big techs transnacionais que dominam a infraestrutura material (nuvens, cabos, plataformas) a operar praticamente sem regulação, a soberania nacional sofre abalos pouco conhecidos até então. A Era digital torna a disputa do poder mais complexa e multidimensional, cujo domínio da tecnologia assume condição crítica e desafiadora na capacidade de multiplicação de força.
No Brasil, esse arranjo tem criado tensões crescentes entre a soberania territorial do Estado e suas instituições como, por exemplo, o IBGE, a infraestrutura física que cruza oceanos e costeiras de cabos submarinos e data centers e, ainda, as plataformas privadas que guardam, processam e monetizam dados. O resultado disso tem sido uma fragilização relativa da soberania digital a exigir políticas públicas integradas (regulatórias, infraestruturais e capacitadoras).
Do contrário, as empresas e plataformas estrangeiras que detêm capacidades de Inteligência artificial, processamento em larga escala e de redes que o Estado e empresas locais não dispõe, tenderão a seguir consolidando o seu poder interno de influência política e econômica. Ao mesmo tempo, continuarão modulando a opinião pública, capturando receita digital e aprofundando a dependência externa nos serviços essenciais.
Para o segundo quarto do século XXI, a política do ciberespaço para o controle soberano do fluxo dos dados, de supremacia das terras raras e do domínio da revolução digital redefinem as fronteiras do exercício da hegemonia. Tudo isso para além das formas e domínios tradicionais da dialética geopolítica terra e mar.
Disputas na Era industrial
Ao final do século XIX, quando as nações do Norte Global consolidavam suas sociedades urbanas e industriais, o poder marítimo se afirmou como fundamental para o controle das rotas de navegação, garantindo segurança e prosperidade aos países Ocidentais. Com isso, o domínio dos mares, mais afeito à esfera militar, tornou-se estratégico para o desenvolvimento econômico e a liderança na política global durante a Era industrial (Mahan, 1987).
Em certa oposição a essa visão centrada no domínio marítimo emergiu, logo no início do século XX, a suposição de que o controle de vasta massa de terra constituiria a chave para o domínio e desenvolvimento mundial. A teorização sobre a importância estratégica do território vasto e rico em recursos naturais estratégicos, protegido de eventuais ataques navais e potencial logístico poderia compreender tanto o Heartland nas áreas europeias da Rússia agrícola até as planícies da Sibéria (Mackinder, 2020) como o Rimland que envolvia a Europa Ocidental com o Oriente Médio, a Índia, o Sudeste Asiático e a China (Spykman, 2020).
A ascensão do poder informacional
Neste primeiro quarto do século XXI, a geopolítica digital introduziu um novo tipo de poder informacional que não parece depender mais de fronteiras físicas. A partir de fluxos de informações, redes, dados pessoais e infraestruturais invisíveis, grandes empresas oligopolistas de tecnologias detêm apoio em pouquíssimos Estados Nacionais, estabelecem novas dependências tecnológicas estruturais no mundo.
De certa forma, a Era digital coloca em questão o sistema internacional moderno fundado a partir do Tratado de Westfália de 1648, quando surgiu o Estado-nação com autoridade suprema e exclusiva dentro de seus limites geográficos (soberania territorial). Com novos domínios e atores que transcendem as fronteiras físicas, o poder informacional transforma e desafia os princípios centrais da geopolítica global, especialmente a soberania territorial exclusiva e a não intervenção em assuntos internos.
Ainda que o advento da soberania do Estado-nação permaneça válido nas relações internacionais e se aplique ao ciberespaço, percebe-se que o seu emprego tem sido reconfigurado e desafiado pela natureza global e sem fronteiras da Era digital. Sob a governança digital e a resiliência cibernética, a soberania informacional precisa ser repensada em forma híbrida e combinada com a autoridade territorial nacional em novas bases.
As big techs (Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft, Alibaba, Tencent) exercem capacidades que antes eram monopólio de Estados-Nação, coletando e tratando dos dados de populações inteiras, controlando infraestruturas críticas (nuvem, cabos submarinos, satélites, sistemas operacionais), definindo padrões técnicos globais, regulando a circulação de informação, influenciando eleições, a opinião pública e a segurança nacional. Um novo tipo de megainfraestrutura planetária que ultrapassa a soberania dos Estados e reorganiza o espaço político mundial.
Erosão da soberania nacional
A noção de soberania digital torna-se fragmentada, deslocada dos Estados para plataformas privadas globais. Para países com desenvolvimento intermediário e Estado tradicional baseado em território e soberania física como o Brasil, a dependência de plataformas digitais estrangeiras para comunicação, comércio, segurança, educação e serviços públicos têm sido crescente.
Isso porque a soberania digital requer a capacidade de armazenamento dos dados nacionais em nuvens que não sejam estrangeiras, bem como a superação da tomada de decisões críticas a partir de algoritmos privados e fluxos econômicos dependentes da infraestrutura fora do controle estatal e da governança da informação privatizada. Do contrário, a situação de subordinação informacional prevalece, comparável – guardada a devida proporção – a antigas relações coloniais atualmente fundadas na assimetria tecnológica.
A Era digital não elimina a geopolítica clássica uma vez que a Terra permanece relevante pelo controle territorial, extração de recursos físicos e vigilância estatal, bem com o mar segue crucial porque cabos submarinos e rotas marítimas constituem o sistema circulatório da internet. Dados emergem como o novo espaço estratégico, capaz de superar a soberania estatal e criar formas inéditas de poder.
Em síntese, o mundo contemporâneo por ser cada vez marcado pela disputa tripartite entre terra (Estados Continentais), mar (Infraestruturas Globais/Big Techs Marítimas) e nuvem/plataformas (Poder Informacional Transnacional) assenta-se na geopolítica digital enquanto desdobramento da convencional disputa movida por dados, inteligência artificial, plataformas globais e infraestruturas invisíveis. Uma inédita oportunidade para o protagonismo de países do Sul Global com o Brasil.[1]
*Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp) [https://amzn.to/46jSkQk]
Referências
BRATTON, B. The Stack: On Software and Sovereignty. Cambridge: MIT Press, 2016.
CUKIER, K. ; MAYER-SCHÖNBERGER, V. Big Data. New York: Houghton Mifflin, 2013.
GREWAL, D. Network Power. New Haven: Yale University Press, 2008.
KAPLAN, R. The Return of Geography. New York: Random House, 2012.
MACKINDER, H. The Geographical Pivot of History. New York: Cosimo, 2020.
MAHAN, A. The Influence of Sea Power Upon History,1660–1783. New York: Dover Publications, 1987.
NARDIS, L. The Global War for Internet Governance. New Haven: Yale University Press, 2014.
POCHMANN, M. O próximo Brasil: um olhar a partir das estatísticas. São Paulo: Edeias & Letras, 2025.
SILVEIRA, S. As big techs e a guerra total: O complexo militar-industrial-dataficado. São Paulo: Hedra, 2025.
SPYKMAN, N. A geografia da paz. São Paulo: Hucitec, 2020.
SRNICEK, N. Platform Capitalism. Cambridge: Polity, 2017.
ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism. New York: PublicAffairs, 2019.
Nota
[1] Sobre isso, aliás, o IBGE realiza entre 3 a 5 de dezembro a grande Conferência Nacional dos Agentes Produtores e Usuários de Dados em Salvador nas instalações do SENAI Cimatec e do SESI, com o apoio da Federação das Indústrias da Bahia (FIEB), do Governo do Estado da Bahia, entre outras instituições.
Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-disputa-mar-e-terra-pela-geopolitica-dos-dados