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A engrenagem da dívida pública no Brasil e seu custo humano

O peso da dívida pública perpetua um ciclo de estagnação econômica, concentração de renda e erosão de direitos sociais no Brasil.

O problema da dívida pública no Brasil, bastante agravado nas últimas décadas, vem de longe. Se tomarmos, por exemplo, o período entre o golpe de 1964 até o início dos anos 1980, observaremos um endividamento externo crescente, usado para financiar a industrialização e grandes obras de infraestrutura sob condições globais de juros baixos, até o advento do Choque Volcker (1979–82). Este foi uma série de políticas monetárias drásticas implementadas pelo Federal Reserve (banco central dos EUA) entre 1979 e 1982, sob a liderança de Paul Volcker. Nos anos 1970, os EUA enfrentavam inflação alta, que chegou a mais de 13% ao ano, causada por vários fatores: choque do petróleo (1973), fim do padrão-ouro (1971), elevados gastos com a guerra do Vietnã e políticas monetárias expansionistas (visando aumentar a quantidade de dinheiro em circulação para estimular crescimento e consumo).

Para enfrentar a crise, Volcker, que assumiu o Federal Reserve (banco central estadunidense) em agosto de 1979, operou uma política de austeridade monetária muito severa, caracterizada pela elevação drástica das taxas de juros — de 11% para 20% ao ano (a maior da história) — e pela contração da oferta de moeda, reduzindo drasticamente a quantidade de dinheiro em circulação. Essa política foi mantida inalterada por anos, levando a efeitos recessivos: a economia americana cresceu 0,2% em 1980; 2,5% em 1981; e -1,9% em 1982.

Os países latino-americanos, antes da vigência dessa política, tinham se endividado a taxas muito baixas, porque havia um excesso de capitais nos países imperialistas, buscando valorização onde pudessem. Com a elevação dos juros internacionais, que nos contratos da dívida eram flutuantes (portanto, podiam variar ao longo do tempo), a América Latina ingressou na chamada “crise da dívida”, que teve 1982 como um ano emblemático. Em agosto daquele ano, o México declarou que não dispunha de divisas para pagar seus compromissos com a dívida externa, suspendendo pagamentos. Era a primeira vez em décadas que um grande país, atrasado e altamente endividado, literalmente declarava falência.

O México tinha uma dívida de US$ 80 bilhões, muito alta para a época (42 anos atrás). A declaração de quebradeira do país gerou um efeito em cascata. Bancos internacionais, principalmente americanos, que emprestaram para o México, perderam muito; a confiança foi abalada internacionalmente, e ninguém mais queria emprestar para países pobres. Como consequência, os juros internacionais explodiram. Em função desse quadro, ocorreu o efeito dominó. O Brasil, em setembro de 1982, já não tinha divisas internacionais para pagar seus compromissos e, em dezembro de 1982, já tinha acordo fechado com o FMI. O Fundo exigiu cortes de gastos públicos, aumento de impostos etc. Fechar acordo com o FMI significa esquecer o crescimento e o desenvolvimento social. O Brasil entrou em profunda crise, com intervenção direta do FMI na economia, até declarar moratória em 1987. A Argentina, além da crise da dívida em 1982, ainda enfrentou a Guerra das Malvinas (conflito com o Reino Unido), o que fez a crise escalar.

O ano de 1982 marcou o fim de um ciclo de endividamento a juros baixos, tendo levado os países a seguirem a receita do FMI: restrição das importações, adoção de políticas de austeridade, queda de investimentos, corte de gastos sociais e assim por diante. Essas políticas levaram ao que se chamou de “década perdida” na América Latina, a de 1980, caracterizada pela estagnação econômica, inflação alta, elevadas taxas de desemprego e retrocesso social sem precedentes na região.

A década perdida foi decorrência direta da crise mundial do sistema capitalista, que eclodiu em 1973, fruto de causas profundas e sistêmicas, que vinham se gestando desde os anos 1960. O ano de 1973 foi o ponto de ruptura visível, mas a crise era profunda e estrutural, ligada a inúmeras causas. Uma das mais importantes foi a queda da taxa de lucro, através da qual o retorno das corporações capitalistas caiu estruturalmente. Dentre outras razões, pela sobreprodução de capitais — com excesso de máquinas, fábricas, investimentos — em relação à capacidade de consumo da sociedade. À velha e conhecida crise de sobreprodução somaram-se outros fatores, como o esgotamento do modelo fordista de acumulação, que vigorava desde o início do século 20.

A crise estrutural do capitalismo veio à superfície em 1973, mas resultou de uma confluência de fatores, em vários níveis: econômico, tecnológico, social, monetário, geopolítico e militar. Essa grande crise é essencial para explicar a dívida brasileira, na medida em que o governo tentou contorná-la com endividamento, procurando utilizar o capital estrangeiro como alavanca de crescimento. Ou seja, fez empréstimos externos para manter o crescimento. Em 1964, após o golpe, a dívida externa total era de US$ 3,2 bilhões. Em 1980, quando a ditadura já tinha entrado em um processo de esgotamento, a dívida pública estava em mais de US$ 50 bilhões. Desta, quase 70% era dívida externa, isto é, estava em moeda estrangeira, sobretudo o dólar. A partir de 1980, com o aumento das taxas de juros internacionais, a dívida brasileira apresentou um crescimento explosivo, chegando a US$ 85,5 bilhões em 1982. Em boa parte, portanto, o endividamento público naquele período foi uma resposta do Brasil (e dos países atrasados em geral) à crise global de 1973. E essa resposta gerou efeitos que perduram até hoje.

Desde então, com características próprias em cada período histórico — as quais não iremos analisar aqui —, a dívida pública funciona como uma espécie de “bola de ferro” que impede o desenvolvimento do país. Esse efeito pode ser observado em múltiplas frentes:

  1. Alocação de recursos públicos fundamentais: recursos que deveriam financiar infraestrutura, educação e inovação são drenados para o serviço da dívida, muito acima dos países do G20. O impacto sobre o desenvolvimento é direto. Os investimentos em infraestrutura são sempre abaixo das necessidades, os gastos com educação são muito aquém do necessário, e a saúde tem sido sucateada. Os gastos com pesquisa e desenvolvimento equivalem a cerca de 1,2% do PIB, contra uma média do G20 de aproximadamente 2,3% do PIB.
  2. Falta de investimentos produtivos: com taxas de juros reais em torno de 10%, sempre entre as mais altas do mundo, por um lado, os capitalistas não querem investir na produção, já que é muito mais vantajoso destinar seus recursos para títulos públicos. Por outro lado, os juros para financiar a produção são extremamente elevados, por uma série de fatores, a começar pelo próprio nível da taxa Selic. O efeito desse processo é extremamente danoso ao crescimento da produtividade, além de gerar desemprego estrutural e estagnação dos salários reais.
  3. Busca obsessiva por superávit primário para pagar os juros: isso leva a investimentos em infraestrutura bem aquém das necessidades, prejudicando a população e a economia nacional. Além disso, torna muito difícil realizar políticas contracíclicas, porque, quando a economia desacelera, cai a arrecadação e o governo precisa cortar ainda mais os gastos. Forma-se um ciclo vicioso, no qual um menor crescimento leva a menor arrecadação e a uma maior necessidade de cortes de gastos.
  4. Financeirização da economia, em prejuízo da produção: grande parte da renda nacional é destinada aos bancos, fundos de pensão e investidores institucionais em geral. Esse processo fortalece lobbies ligados aos interesses do setor financeiro, que pressionam os três poderes para implementação das contrarreformas. Outro efeito disso é a desindustrialização contínua e a erosão da base produtiva (o peso da manufatura caiu de 27% do PIB em 2000 para 10,8% no ano passado).
  5. Dependência do setor externo e vulnerabilidade cambial: juros altos, de forma persistente, atraem capitais especulativos. Esses fluxos de capitais voláteis, que entram no país apenas para ganhar dinheiro com juros, geram pressão cambial. Esse processo inibe investimentos de longo prazo.
  6. Erosão de direitos sociais: a obsessão com superávit primário leva ao ataque aos direitos sociais, que “concorrem” com os gastos com a dívida. A restrição aos direitos previdenciários, por exemplo, operada nos últimos anos por sucessivas “reformas” da Previdência Social, é um exemplo desse mecanismo. Esses reflexos se observam em todas as áreas fundamentais de atendimento à população, com consequências sociais e econômicas gravíssimas.

A sanha contra os direitos está longe de ser uma exclusividade dos Poderes Executivo e Legislativo. No Congresso, já foram aprovados, nos últimos anos, inúmeros projetos de retirada de direitos dos trabalhadores, em volume e velocidade que tornam difícil ao movimento sindical até acompanhar. O Supremo Tribunal Federal (STF) age na mesma direção, na prática “legislando”. Para citar somente um caso recente, em abril de 2025, o STF, através de liminar, suspendeu todos os processos judiciais que tratam da legalidade da “pejotização”, ou seja, a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, mecanismo que visa driblar encargos trabalhistas.

Com uma canetada, e praticamente sem a possibilidade de reação dos trabalhadores, o STF prejudicou milhões de pessoas, na medida em que 1,2 milhão de ações trabalhistas ajuizadas entre 2020 e 2025, pleiteando reconhecimento de vínculo de emprego, ficaram totalmente na incerteza. Enquanto o STF não se pronuncia definitivamente (o que pode demorar décadas), a transgressão do direito continua, numa clara violação constitucional, feita sem a menor cerimônia. A intenção clara dessas medidas é corroer os direitos trabalhistas por dentro e silenciosamente, tornando, em alguns anos, a falta de direitos um fato consumado e irreversível.

FOTO: Pixabay

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-engrenagem-da-divida-publica-no-brasil-e-seu-custo-humano