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A exploração disfarçada de competitividade espalha no Brasil o vírus do Dumping Social

Salários insuficientes, jornadas excessivas, ausência de proteções sociais e condições insalubres de trabalho tornam-se “vantagens competitivas”.

No silêncio das fábricas que fecham suas portas e no desespero dos trabalhadores que perdem seus direitos básicos, prospera uma das mais perversas armas da concorrência desleal: o dumping social. Esta prática devastadora, que transforma direitos trabalhistas em obstáculos descartáveis, ameaça não apenas a dignidade de milhões de brasileiros, mas desestabiliza as bases de um mercado de trabalho justo e próspero.

O dumping social é como um atleta que usa drogas para vencer uma corrida: ganha vantagem artificial sacrificando sua própria saúde e a integridade da competição. Nesta analogia perversa, as “drogas” são os direitos trabalhistas suprimidos, o “atleta” é a empresa predatória, e a “corrida” é o mercado global onde todos deveriam competir em condições justas.

Imagine um restaurante que consegue oferecer pratos mais baratos porque não paga salários dignos aos garçons, não oferece equipamentos de segurança aos cozinheiros e força funcionários a trabalhar 12 horas sem descanso. Esse estabelecimento pratica dumping social: usa a exploração humana como ingrediente secreto para baixar artificialmente seus preços, prejudicando concorrentes honestos que respeitam seus trabalhadores.

Diferentemente do dumping tradicional, que envolve a venda abaixo do custo de produção, o dumping social manipula os próprios custos através da exploração da mão de obra. Salários insuficientes, jornadas excessivas, ausência de proteções sociais e condições insalubres de trabalho tornam-se “vantagens competitivas” perversas que geram danos não apenas aos trabalhadores, mas a toda sociedade.

O dumping social age como um cupim invisível roendo as vigas mestras do edifício trabalhista brasileiro: silencioso, persistente e devastador. Enquanto corrói os alicerces dos direitos conquistados, força empresas éticas a escolher entre sucumbir à concorrência desleal ou abandonar seus princípios morais.

 O arsenal jurídico – O Brasil possui um arcabouço legal robusto para combater o dumping social, embora sua aplicação ainda seja incipiente. A legislação antidumping brasileira, baseada no Decreto nº 1.355/1994, Lei nº 9.019/1995 e Decreto nº 1.602/1995, estabelece os fundamentos legais para a defesa comercial, incluindo práticas sociais desleais.

O Código Civil brasileiro, em seus artigos 186, 187 e 927, tipifica o dumping social como ato ilícito, estabelecendo responsabilização por danos causados à sociedade. O Projeto de Lei 1615/2011, do deputado Carlos Bezerra, propõe regulamentação específica para punir o dumping social como prática de concorrência desleal, mas ainda aguarda aprovação.

O Tribunal Superior do Trabalho desenvolveu jurisprudência própria sobre o tema, reconhecendo que práticas reiteradas de violação aos direitos trabalhistas configuram dumping social, passível de indenização por danos morais coletivos.

Cenário brasileiro e casos emblemáticos – O Brasil ocupa posição ambígua neste cenário. Por um lado, o país possui legislação trabalhista robusta, com direitos consolidados como férias remuneradas, 13º salário e FGTS. Por outro, enfrenta constantes pressões para flexibilizar essas proteções sob o argumento da competitividade internacional.

Três casos recentes ilustram a gravidade do problema no país. Primeiro, a condenação milionária da Uber pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que impôs multa de R$ 1 milhão por dumping social, reconhecendo que a empresa sistematicamente desrespeitava direitos trabalhistas para obter vantagem competitiva.

Segundo, empresas terceirizadoras de serviços ocupam nove posições entre os 30 maiores devedores trabalhistas do país, demonstrando como a terceirização muitas vezes encobre práticas de dumping social. Essas empresas utilizam a precarização como estratégia para oferecer serviços mais baratos, prejudicando concorrentes que respeitam a legislação.

Terceiro, o setor calçadista brasileiro enfrenta denúncias constantes de dumping social, especialmente na região Sul, onde empresas sistematicamente violam direitos trabalhistas para competir com importações asiáticas.

Dumping Social em tempos de IA – A inteligência artificial emerge como uma nova fronteira para práticas de dumping social, criando desafios inéditos para o mercado de trabalho brasileiro. O Brasil debate atualmente, no âmbito dos BRICS, questões sobre inteligência artificial e proteção social no mercado de trabalho, reconhecendo a urgência do tema.

A implementação da inteligência artificial na sociedade brasileira traz o risco de ampliar as desigualdades já existentes, criando um novo tipo de dumping social baseado na substituição acelerada de trabalhadores por algoritmos sem a devida proteção social.

Empresas que utilizam IA para reduzir drasticamente seus quadros funcionais, sem oferecer requalificação ou transição adequada, praticam uma forma sofisticada de dumping social. Esta estratégia permite ofertar serviços a preços artificialmente baixos, impossíveis para concorrentes que mantêm compromissos sociais com seus trabalhadores.

Impactos Econômicos e Sociais – A indústria têxtil brasileira exemplifica essa tensão estrutural. Enquanto empresas nacionais respeitam normas trabalhistas, competem com importações de países onde trabalhadores recebem salários até dez vezes menores, sem qualquer proteção social. Essa concorrência desleal resulta no fechamento de fábricas e perda de empregos formais, alimentando um ciclo vicioso de precarização.

Paradoxalmente, dados oficiais de 2025 mostram que o Brasil viveu em 2024 a maior redução da desigualdade social dos últimos anos, com crescimento de 10,7% na renda dos mais pobres. Esse progresso torna ainda mais urgente o combate ao dumping social, que ameaça reverter conquistas sociais importantes.

O dumping social funciona como uma máquina trituradora de sonhos, que devora sistematicamente direitos conquistados ao longo de décadas, transformando proteções trabalhistas em “luxos” incompatíveis com a competitividade. Essa lógica destrutiva não apenas empobrece trabalhadores, mas fragiliza toda a estrutura econômica nacional.

Os Sindicatos – Os sindicatos brasileiros desempenham papel fundamental no combate ao dumping social, atuando como verdadeiros zeladores dos direitos trabalhistas contra a voracidade de empresas predatórias. Os sindicatos representativos das respectivas categorias profissionais podem ajuizar ações moleculares postulando a remoção do ilícito, em conjunto com demais pleitos, inclusive de danos morais coletivos por dumping social.

A estratégia sindical evoluiu significativamente nos últimos anos, incorporando ferramentas jurídicas sofisticadas para identificar e combater práticas de dumping social. Os sindicatos desenvolveram metodologias para monitorar empresas que sistematicamente violam direitos trabalhistas, criando bancos de dados compartilhados que permitem ações coordenadas entre diferentes categorias profissionais.

Também relevante é a atuação sindical no setor de tecnologia, onde os sindicatos desempenham papel fundamental na defesa dos interesses dos trabalhadores e na busca por soluções que garantam uma transição justa na era da inteligência artificial. Esta atuação pioneira estabelece precedentes importantes para combater o dumping social tecnológico, modalidade emergente que ameaça milhões de postos de trabalho no país.

Dumping Social na América do Norte: A exploração disfarçada de competitividade – Na América do Norte, o dumping social manifesta-se de forma sofisticada, especialmente no setor de transportes canadense, onde o Canadá enfrenta riscos crescentes de exploração de trabalhadores estrangeiros na indústria de caminhões, o que pode ter consequências para as condições de trabalho, conforme relatório de setembro de 2024. Nos Estados Unidos, a prática ganha contornos particulares com a exploração de trabalhadores imigrantes indocumentados, que são forçados a aceitar salários abaixo do mínimo legal e condições precárias por temor à deportação. O setor agrícola americano, especialmente na Califórnia e Texas, concentra milhares de casos onde trabalhadores latinos trabalham até 14 horas diárias sem direito a pausas, recebendo entre US$ 3 a US$ 5 por hora – muito abaixo do salário mínimo federal de US$ 7,25. Empresas como Driscoll’s e outras gigantes do agronegócio foram multadas repetidamente por práticas de dumping social, mas continuam operando com base na exploração sistemática da vulnerabilidade migratória.

O paradoxo aparece forte na Europa, berço dos direitos trabalhistas – A União Europeia, paradoxalmente, enfrenta graves problemas de dumping social apesar de sua avançada legislação trabalhista. O Parlamento Europeu reconheceu oficialmente a necessidade de criar grupos de trabalho bilaterais e multilaterais para efetuar controles transfronteiriços quando há suspeita de dumping social, trabalho em condições ilegais ou fraude, evidenciando a dimensão do problema. Portugal figura entre os países mais afetados, onde a Agência Europeia denunciou vários casos de exploração laboral, relatando situações em que trabalhadores são obrigados a esconder-se, mentir e até pagar multas do próprio bolso, segundo investigação de 2018. Na Alemanha, o setor de construção civil e frigoríficos emprega sistematicamente trabalhadores do Leste Europeu em condições degradantes: poloneses e romenos trabalham 12 horas diárias por salários 40% inferiores aos alemães, vivendo em alojamentos superlotados fornecidos pelos empregadores. A empresa Tönnies, maior processadora de carne da Alemanha, foi multada em €16,5 milhões em 2020 por práticas de dumping social envolvendo mais de 7.000 trabalhadores estrangeiros.

Combate difícil, não impossível – O combate ao dumping social exige coordenação internacional. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabelece padrões mínimos, mas sua aplicação permanece desigual. O Tribunal Superior do Trabalho tem admitido condenações por dumping social, sinalizando endurecimento da jurisprudência brasileira.

Alguns países europeus já implementam mecanismos de proteção, como taxas sobre produtos oriundos de práticas laborais predatórias. O Brasil precisa desenvolver instrumentos similares, equilibrando proteção social com competitividade econômica.

Para o Brasil, a questão supera o protecionismo econômico. Trata-se de defender um modelo de desenvolvimento que valorize o trabalho digno como elemento central do progresso social. A busca por competitividade não pode comprometer décadas de conquistas trabalhistas que distinguem sociedades democráticas de economias baseadas na exploração.

O desafio consiste em equilibrar abertura comercial com proteção social, garantindo que a globalização não se transforme numa corrida desenfreada rumo ao abismo dos direitos trabalhistas. A resposta judicial brasileira, embora ainda no início, indica caminhos promissores para coibir essa prática nociva que corrói as bases de uma sociedade que possa ser referida como justa e próspera.

Foto: Reprodução/Freepik

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-exploracao-disfarcada-de-competitividade-espalha-no-brasil-a-virus-do-dumping-social