Clausewitz no século XXI e a soberania brasileira em vhamas
Este é um ensaio escrito no calor da crise, guiado pela convicção de que o Brasil só pode ser livre se souber se defender. Inspirado em Clausewitz e em grandes pensadores da estratégia, ele busca compreender a guerra híbrida que enfrentamos e apontar caminhos para proteger nossa soberania. Não é um texto de bravatas, mas de compromisso: olhar para o país com lucidez, reconhecer nossos desafios e agir para que a nossa independência não seja apenas uma palavra bonita, mas uma realidade concreta.
O Brasil no campo de batalha invisível

Quando Clausewitz afirmou que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, ele não descrevia apenas o embate de exércitos em campos abertos. Ele revelava uma lei estrutural da história: o conflito é inerente à disputa pelo poder, e a política é apenas a face visível de uma luta mais profunda. Hoje, no século XXI, essa máxima mantém sua força, mas os meios se transformaram radicalmente. A pólvora deu lugar ao código, o tanque cedeu espaço à tarifa, e o território não se mede apenas por hectares, mas por cabos submarinos, espectros de frequência e centros de dados.
O Brasil de 2025 está mergulhado nessa nova topografia da guerra. Não há tiros nas ruas nem colunas de blindados marchando sobre Brasília, mas há bloqueios econômicos disfarçados de ajustes de mercado, há ataques jurídicos travestidos de “cooperação internacional”, há campanhas de desinformação calibradas com precisão algorítmica para corroer a coesão social. Tudo isso opera no ritmo da política, mas com a cadência de um cerco militar — constante, silencioso, sufocante.
Os Estados Unidos, potência hegemônica em decadência, compreendem que não precisam desembarcar tropas no litoral brasileiro para conter o avanço de nossa autonomia. Basta controlar fluxos: de capitais, de dados, de tecnologias, de narrativas. Essa é a essência da guerra híbrida: a combinação calculada de instrumentos econômicos, jurídicos, informacionais e diplomáticos para dobrar a vontade política de um Estado sem que um único tiro seja disparado. É Clausewitz revisitado sob a estética da era digital.
A crise atual entre Brasil e EUA não é um episódio isolado; é a última estação de um longo percurso de choques que remonta à recusa da ALCA, à projeção internacional soberana na década de 2000, e ao desafio brasileiro à arquitetura geopolítica desenhada em Washington. Cada avanço nosso em direção à independência estratégica foi respondido com novas formas de constrição: primeiro, com pressões comerciais e diplomáticas; depois, com a guerra jurídica e midiática; agora, com o cerco digital e o uso intensivo de instrumentos de guerra informacional.
O que está em disputa não é apenas um alinhamento geopolítico, mas o próprio direito do Brasil de decidir seu futuro sem tutelas externas. A soberania, no contexto da guerra híbrida, não é um conceito abstrato: é o controle sobre as condições materiais e informacionais que sustentam a vida nacional. Um país sem domínio sobre suas redes, suas reservas estratégicas, suas rotas de comércio, sua capacidade industrial e sua infraestrutura digital é um país sob ocupação invisível.
Escrever este ensaio é, portanto, um ato político. É reconhecer que a defesa do Brasil não se faz apenas com armas, mas com estratégia, consciência e mobilização. É compreender que amor à pátria não é nostalgia romântica, mas projeto histórico. E é afirmar, com Clausewitz, que se a guerra é a continuação da política, então a nossa política deve ser a arte de resistir e vencer em todas as frentes que nos são impostas.
Clausewitz e a persistência da guerra no tempo histórico

Carl von Clausewitz, ao escrever Da Guerra no início do século XIX, concebia o conflito como fenômeno total, indissociável da política e das estruturas sociais que o produzem. Sua famosa máxima — “a guerra é a continuação da política por outros meios” — não é apenas uma observação tática; é uma síntese da natureza dialética entre poder e violência, entre decisões políticas e coerção. No pensamento clausewitziano, a guerra não nasce do vazio, mas da fricção acumulada no campo político, econômico e social. É a expressão concentrada de antagonismos que não puderam ser resolvidos por vias ordinárias.
Essa visão atravessa o tempo porque não depende da tecnologia da guerra, mas da lógica do poder. No século XXI, quando exércitos regulares são substituídos por redes distribuídas e arsenais cibernéticos, Clausewitz continua relevante. A mudança não está no fundamento, mas na forma: o campo de batalha tornou-se onipresente, e as armas se tornaram invisíveis. A pólvora transformou-se em pacote de dados; a linha de frente dissolveu-se em fluxos financeiros, decisões judiciais transnacionais e algoritmos de recomendação.
Se no século XIX a política se projetava no campo de batalha pela força física, hoje ela se projeta pela captura de infraestruturas críticas e pelo domínio sobre fluxos estratégicos. Isso significa que a guerra híbrida é, no fundo, a reinterpretação contemporânea de Clausewitz: não mais a continuidade da política apenas por canhões, mas por tarifas, sanções, sabotagem digital e controle informacional. É o mesmo princípio, com novos instrumentos.
Outros grandes estrategistas reforçam essa transposição histórica. Sun Tzu, há mais de dois milênios, já ensinava que “a suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar”. Essa máxima ecoa no cerco econômico e informacional que potências aplicam contra Estados soberanos, sufocando-os antes mesmo que a mobilização bélica seja cogitada. Liddell Hart, no século XX, desenvolveu o conceito de “estratégia indireta”, mostrando que a vitória depende menos do confronto frontal e mais da capacidade de paralisar o adversário por ataques nos seus pontos vitais — o que, no presente, significa atingir cadeias de suprimento, sistemas de comunicação e legitimidade política.
Mary Kaldor, analisando os conflitos contemporâneos, descreveu as “novas guerras” como disputas assimétricas em que os atores combinam meios militares, econômicos e informacionais para moldar o ambiente político e social. Gramsci, por sua vez, mostrou que, antes de conquistar o poder, é necessário conquistar o terreno da cultura e das ideias — algo que, na era das redes, é feito por meio da guerra de narrativas, campanhas de desinformação e controle dos marcos interpretativos.
O fio que une todos esses pensadores é a compreensão de que a guerra nunca é evento isolado. Ela é processo, prolongamento, adaptação. O Brasil de hoje não enfrenta tanques nas ruas, mas enfrenta a mesma lógica que Clausewitz identificou: o uso de meios extraordinários para alcançar objetivos políticos que não puderam ser obtidos por negociações ou diplomacia. A diferença é que, na guerra híbrida, a batalha se trava em simultâneo nos mercados, nos tribunais, nas redes sociais e nas mesas de negociação internacionais.
Entender essa continuidade histórica é essencial para que o Brasil possa formular uma doutrina própria de defesa no século XXI. Clausewitz não é relíquia; ele é chave interpretativa. A soberania, como projeto político, só pode sobreviver se compreendermos que a guerra, visível ou invisível, é permanente — e que ignorá-la é escolher ser vencido sem perceber que se lutava.
O campo de batalha híbrido — do minério ao algoritmo

O campo de batalha do século XXI não tem fronteiras fixas nem trincheiras visíveis. Ele é um sistema fluido, multidimensional, que atravessa a economia, a política, a cultura, a tecnologia e a informação. É nesse terreno expandido que o Brasil está sendo atacado. A guerra híbrida é justamente essa fusão de instrumentos — econômicos, jurídicos, tecnológicos, informacionais e diplomáticos — operando em sincronia para enfraquecer um Estado, corroer sua autonomia e forçar mudanças estratégicas sem a necessidade de uma invasão física.
Fronte Econômica — Tarifas como Artilharia
As tarifas impostas pelos EUA ao Brasil não são meros ajustes de política comercial. Elas funcionam como artilharia econômica de precisão: atingem setores estratégicos, criam instabilidade no mercado interno, comprometem receitas de exportação e enfraquecem a base produtiva. Ao mesmo tempo, o bloqueio a determinadas cadeias de insumos, como semicondutores e tecnologias críticas, força o Brasil a depender de fornecedores alinhados a Washington, mantendo a assimetria estrutural.
Fronte Jurídica — Lawfare e Arbitragens Assimétricas
O uso de processos judiciais, arbitragens internacionais e interpretações seletivas de tratados é outro vetor de ataque. Na lógica da guerra híbrida, tribunais podem ser tão letais quanto mísseis, pois desestabilizam governos, criminalizam lideranças políticas e bloqueiam projetos estratégicos. O lawfare é a infantaria de toga: opera com a legitimidade do direito, mas serve aos interesses de potências externas quando manipulado para inviabilizar agendas soberanas.
Fronte Tecnológica — Dependência Digital como Ocupação
A infraestrutura digital brasileira — cabos submarinos, data centers, nuvens corporativas, protocolos e plataformas — está, em grande parte, sob controle estrangeiro. Isso significa que comunicações, dados estratégicos e operações críticas estão vulneráveis a espionagem, interrupção ou manipulação. O domínio sobre essa infraestrutura é o equivalente contemporâneo ao controle de portos e estradas no passado: quem controla os fluxos, controla o território.
Fronte Informacional — Psyops e Guerra de Narrativas
A opinião pública é um teatro de operações central. Campanhas de desinformação, algoritmos de distribuição de conteúdo, bots e influenciadores pagos atuam para minar a confiança nas instituições, gerar divisões internas e enfraquecer a coesão social. Trata-se de um bombardeio contínuo à percepção da realidade, em que fatos são distorcidos e discursos antinacionais são amplificados por plataformas controladas no exterior.
Fronte Diplomática — Pressões e Isolamento Geopolítico
No plano internacional, o Brasil enfrenta pressões para alinhar-se a blocos de poder que não servem aos seus interesses estratégicos. Isso inclui tentativas de esvaziar o BRICS, minar acordos com países do Sul Global e restringir a atuação brasileira em fóruns multilaterais. O objetivo é isolar diplomaticamente o país, reduzindo sua capacidade de formar alianças que fortaleçam sua autonomia.
O conjunto dessas frentes compõe um ecossistema de ataque: cada ação é calibrada para reforçar as demais. Uma sanção econômica pode criar instabilidade política; essa instabilidade é amplificada pela guerra informacional; o desgaste político abre espaço para ofensivas jurídicas; e todo o processo é consolidado pela pressão diplomática. É um cerco total, mas difuso, cujo maior trunfo é a invisibilidade aos olhos de quem ainda pensa a guerra com as lentes do século passado.
Entender esse campo de batalha exige abandonar a visão romântica da soberania como algo apenas militar. Hoje, defender o Brasil significa proteger seus dados, suas cadeias produtivas, suas lideranças políticas, suas narrativas e suas alianças. Significa, acima de tudo, compreender que o minério que sai do subsolo e o algoritmo que decide o que vemos nas redes sociais pertencem à mesma equação estratégica: quem controla ambos, controla o futuro.
O manual norte-Americano — vetores da ofensiva contra o Brasil

O primeiro vetor é econômico e funciona como fogo de saturação. Tarifas direcionadas, barreiras técnicas, investigações antidumping e restrições a insumos críticos não são peças desconexas, mas artilharia calibrada para atingir centros de gravidade produtivos, desorganizar cadeias de valor e elevar o custo de capital no Brasil. O efeito pretendido é criar instabilidade previsível: empresários retraem investimentos, governos perdem margem fiscal, a opinião pública passa a aceitar “ajustes inevitáveis” que, por coincidência, alinham o país às preferências de Washington. Essa pressão é amplificada pela diplomacia financeira de ratings, índices e compliance. Agências de classificação, provedores de índices globais e regimes de sanções de jurisdição extraterritorial empurram fundos e bancos para um comportamento de manada que encarece o crédito e disciplina políticas industriais consideradas “não ortodoxas”. A arma não é o embargo clássico, é a precificação do risco como coerção.
O segundo vetor é jurídico e opera no compasso do lawfare transnacional. A partir de redes que conectam cooperação penal, arbitragens de investimento, cortes estrangeiras com alcance global e escritórios de advocacia com presença em múltiplas jurisdições, produz-se um contencioso permanente contra lideranças, empresas estratégicas e políticas públicas. O objetivo não é apenas condenar; é paralisar por saturação, produzir headlines, instaurar a dúvida, corroer consensos e interditar agendas de soberania. A liturgia da legalidade confere aparência de neutralidade a uma operação que é eminentemente política. O tempo processual se torna arma, porque dilacera reputações com velocidade e repara com lentidão.
O terceiro vetor é tecnológico, o coração da guerra contemporânea. Dependência de nuvens estrangeiras, gatekeepers de sistemas operacionais, lojas de aplicativos, provedores de identidade e pagamento, além de cadeias de semicondutores e equipamentos de rede, cria pontos de estrangulamento. Quem controla atualizações, chaves criptográficas, roteamento e padrões controla o ritmo de uma economia digitalizada. Restrições a exportação, exigências de “conformidade” e acordos de segurança cibernética assimétricos estabelecem um regime de tutela. Em paralelo, órgãos de padronização e fóruns técnicos definem protocolos que parecem despolitizados, mas consolidam dependências. O bloqueio não precisa ser explícito. Basta a ameaça de retirada de suporte ou de certificações para transformar soberania em um número de versão.
O quarto vetor é informacional e confere unidade ao conjunto. Campanhas coordenadas de framing, uso intensivo de think tanks, media training para fontes “especialistas”, vazamentos seletivos e amplificação algorítmica criam a moldura narrativa na qual todas as outras pressões são interpretadas como “defesa da democracia”, “combate à corrupção”, “boas práticas de mercado” ou “padrões internacionais”. A psicologia de massas é trabalhada por segmentação comportamental, bots e influenciadores, com experimentação contínua de mensagens que testam medos e esperanças, até consolidar narrativas-resumo que deslegitimam qualquer resposta soberana como “populismo”, “nacional-desenvolvimentismo atrasado” ou “risco autoritário”. A guerra cultural dá o lastro simbólico para a guerra econômica, jurídica e tecnológica.
O quinto vetor é diplomático-estratégico e fecha o cerco. Pressões bilaterais, condicionamento de votos em organismos multilaterais, ofertas seletivas de cooperação em segurança, inteligência e meio ambiente, além de iniciativas de “parcerias para infraestrutura” que amarram financiamento a fornecedores e padrões de governança estrangeiros, operam como luvas de veludo para a mesma mão de ferro. O recado é simples: alinhe-se e os custos desaparecem; insista na autonomia e o atrito aumenta. A disputa por posições em cadeias críticas — energia, minerais estratégicos, fertilizantes, logística marítima e aérea — é travada com memorandos e missões oficiais que parecem rotineiros, mas redesenham a geopolítica do abastecimento.
O “manual” tem método e métricas. Cada vetor mede seu impacto e realimenta os demais. Se a narrativa pega, a tarifa dói mais. Se o contencioso jurídico avança, o risco de crédito sobe. Se a cloud não assina o contrato, a política pública emperra. Se o voto no organismo multilateral não vem, o financiamento some. Trata-se de uma matriz de coerção distribuída e permanente que busca uma meta clara: forçar o Brasil a aceitar o papel de periferia dócil em uma divisão internacional do trabalho digitalizada, com baixa densidade tecnológica, alta vulnerabilidade informacional e elites locais premiadas por administrar a dependência.
Há, contudo, fissuras exploráveis. O manual supõe que o Brasil não terá tempo, coesão ou instrumentos para construir alternativas. Supõe que nossa elite econômica preferirá rentismo em dólar a projeto nacional. Supõe que o Estado será sempre lento e capturado e que a sociedade permanecerá fragmentada por campanhas de pânico moral e cansaço. Quando essas suposições falham, o manual perde potência. Quando o país articula política industrial com soberania informacional, protege lideranças contra lawfare, reposiciona diplomacia com alianças Sul–Sul e reconstrói infraestrutura sob comando público com participação social, a coerção encarece e a estratégia indireta perde eficiência.
Reconhecer o manual é metade da batalha. A outra metade é escrever o nosso. No próximo tópico apresentaremos as lições dos grandes estrategistas traduzidas em doutrina para o Brasil de 2025, transformando teoria em direção estratégica e amor ao país em programa de poder real.
Lições dos grandes estrategistas. Doutrina para a soberania

Clausewitz ensina a buscar o centro de gravidade do adversário e proteger o próprio. No Brasil de 2025, o centro de gravidade nacional está na capacidade de decidir o rumo do desenvolvimento sem tutela externa. Isso se materializa no controle de infraestruturas críticas, no acesso a financiamento em moeda própria, na legitimidade política perante o povo e na densidade tecnológica da base produtiva. A doutrina clausewitziana exige identificar os centros de gravidade adversários que nos constrangem. São os pontos de estrangulamento digitais, as cadeias de suprimento dominadas por terceiros, as janelas jurídicas de extraterritorialidade, a intermediação algorítmica que pauta opinião pública. Defender-se significa reduzir exposição nesses pontos e criar redundância estratégica. Atacar indiretamente significa mover as alavancas que tornam cara a coerção contra nós.
Sun Tzu lembra que vencer sem lutar é a arte suprema e que a informação antecede o combate. A adaptação brasileira pede inteligência econômica e informacional de alto nível, com monitoramento permanente de fluxos de capital, de padrões de tráfego de dados, de rumores e operações psicológicas. Transparência ativa e comunicação estratégica cortam o oxigênio da desinformação. A diplomacia econômica precisa abrir caminhos antes que a tarifa caia. A antecipação cria barganha e reduz o custo da defesa. Também significa dissimular movimentos quando necessário, evitando previsibilidade que permita retaliações precisas.
Liddell Hart propõe a estratégia indireta para quebrar a vontade do adversário pela desarticulação de seus apoios. Em nosso terreno, isso se traduz em diversificação de mercados, reengenharia de cadeias de valor, acordos tecnológicos com múltiplos polos e construção de padrões abertos que diminuem dependências proprietárias. Em vez de confrontos frontais que nos drenam energia política, trabalhamos pelos flancos: financiamos pesquisa aplicada em universidades públicas, estabelecemos consórcios estatais e cooperativos, verticalizamos elos sensíveis da indústria, criamos instrumentos financeiros que protejam investimentos de longo prazo. A consequência é simples. Quanto mais opções tivermos, menor o poder de coerção de qualquer ator isolado.
Mary Kaldor interpreta as guerras contemporâneas como híbridas e centradas em legitimação. A doutrina brasileira precisa incorporar a dimensão ética e social como componente de poder duro. Programas de redução de desigualdades, proteção ambiental soberana, ciência aberta e participação social elevada não são ornamentos. São escudos de legitimidade interna e externa que dificultam operações de lawfare e narrativas desmoralizantes. Um Estado que entrega bens públicos tangíveis reduz a superfície de ataque da guerra informacional e amplia o custo reputacional de sanções contra si.
Gramsci oferece a gramática da guerra de posição. No século das plataformas, as trincheiras são cognitivas. Precisamos ocupar instituições de produção de sentido com projeto e método. Educação midiática de massa, redes públicas de comunicação, financiamento estável à cultura e à pesquisa, e presença qualificada do Estado em ambientes digitais são componentes de soberania. O objetivo é formar um senso comum republicano e popular que reconheça a independência nacional como valor e pratique a defesa do interesse coletivo. Sem esse terreno cultural, qualquer vitória técnica é efêmera.
A síntese doutrinária é operacional. Primeiro, definir com precisão os nossos centros de gravidade e os do adversário. Segundo, construir superioridade de informação através de inteligência estatal e científica integrada, com indicadores que medem vulnerabilidades em tempo real. Terceiro, praticar a estratégia indireta pela recomposição das cadeias produtivas e tecnológicas, preferindo padrões abertos e controle público onde houver risco sistêmico. Quarto, blindar o campo jurídico com reformas que acelerem a proteção contra lawfare, cooperação internacional que respeite a soberania e capacidade de litigar ofensivamente quando atacados. Quinto, consolidar legitimidade social como força estratégica, conectando política industrial a empregos, serviços públicos e redução de desigualdades. Sexto, manter diplomacia de alianças múltiplas para que nenhuma potência tenha poder de veto sobre nossas escolhas.
Essa doutrina não promete ausência de conflitos. Promete aumentar o custo de atacar o Brasil e reduzir o custo de defendê-lo. Ela transforma amor à pátria em técnica de governo. Sem fetichizar a autarquia e sem se render à dependência, organiza uma via brasileira para a paz ativa. No próximo tópico, vamos traduzir essa doutrina em um arsenal concreto de defesa e contra-ataque, com medidas que podem ser implementadas já, conectando Estado, universidades, empresas públicas, cooperativas e sociedade civil em um mesmo esforço de soberania.
Estratégias de defesa e contra-ataque

A guerra híbrida não se vence apenas reagindo. Reação isolada é o que o adversário espera: respostas dispersas, improvisadas e de alto custo político. A lógica da vitória exige postura ofensiva na defesa — agir para negar ao inimigo o ambiente em que ele opera, ao mesmo tempo em que construímos poder estrutural para decidir os termos do confronto.
Soberania informacional como eixo central
A primeira medida é reverter a dependência das big techs no controle de dados, comunicações e fluxos de informação. Isso significa criar uma infraestrutura digital pública e soberana, com data centers nacionais, nuvem estatal e protocolos abertos sob gestão pública, priorizando software livre e criptografia auditável. Empresas estratégicas e órgãos do Estado devem migrar para essa infraestrutura, reduzindo a superfície de ataque e a vulnerabilidade a sanções ou espionagem. Paralelamente, é preciso implementar auditorias algorítmicas obrigatórias para plataformas que operam no Brasil, garantindo transparência sobre como distribuem informação e moderam conteúdo.
Política industrial e tecnológica com lastro estatal
Defesa nacional no século XXI se mede em capacidade tecnológica. O Brasil precisa verticalizar cadeias críticas como semicondutores, equipamentos de rede, fertilizantes, farmacêuticos e energia renovável, combinando investimento público maciço, parcerias Sul–Sul e cooperação com centros de excelência nacionais. A Petrobras, a Embraer e empresas públicas de energia e telecomunicações podem liderar consórcios de inovação com universidades e institutos de pesquisa, criando um complexo industrial-tecnológico soberano capaz de responder a bloqueios externos. Isso exige financiamento estável via BNDES, FINEP e fundos constitucionais, com metas explícitas de substituição de importações estratégicas.
Blindagem jurídica contra lawfare transnacional
O combate ao lawfare passa pela criação de uma unidade nacional de defesa jurídica estratégica, com atuação proativa em cortes internacionais e arbitragem de investimentos. Essa unidade deve mapear vulnerabilidades legais, propor reformas para acelerar decisões de proteção e articular apoio político e diplomático quando lideranças, empresas ou políticas públicas forem alvo de perseguição judicial externa. Também é essencial revisar tratados que permitem arbitragens assimétricas e estabelecer cláusulas de soberania irrenunciáveis.
Diplomacia assertiva e coalizões estratégicas
O Brasil deve consolidar alianças com países que compartilham o interesse pela multipolaridade e pela independência frente à hegemonia tecnológica e financeira. Isso significa aprofundar o BRICS ampliado, reforçar a UNASUL e participar de iniciativas como a Nova Rota da Seda digital em termos que nos garantam reciprocidade. É necessário adotar uma postura de barganha estruturada, usando nosso peso em alimentos, energia, biodiversidade e mercado interno para negociar transferência tecnológica, acesso a financiamento e apoio político em fóruns internacionais.
Mobilização social e letramento midiático
A coesão interna é tão vital quanto qualquer blindagem técnica. Campanhas massivas de educação midiática, desde o ensino fundamental, podem criar uma base populacional resistente a manipulações e pânicos morais. Paralelamente, fortalecer redes públicas de comunicação, rádios comunitárias e mídias independentes garante diversidade informativa e reduz a capacidade de monopólio narrativo das plataformas estrangeiras. A defesa do Brasil precisa ser compreendida como tarefa coletiva, e não apenas como função estatal.
Resiliência econômica e redundância estratégica
Por fim, é essencial criar reservas físicas e digitais de recursos críticos — estoques reguladores de alimentos, combustíveis e insumos industriais, bem como redundância em rotas de exportação e sistemas de comunicação. O mesmo vale para a infraestrutura energética, com malhas interconectadas e independentes capazes de sustentar o país mesmo sob sabotagem ou bloqueio.
Essas estratégias não são listas de boas intenções: são um roteiro de sobrevivência e avanço. Executadas em conjunto, alteram o custo-benefício da ofensiva contra o Brasil. O adversário passa a enfrentar um país com defesas técnicas, jurídicas e sociais articuladas, e com capacidade de retaliação não militar — por meio de comércio, diplomacia e tecnologia — que ele não pode ignorar.
Conclusão

A crise entre Brasil e Estados Unidos, nesta altura da história, é mais que um incidente diplomático. É a face visível de um conflito estrutural que se desenrola há décadas, adaptando-se a cada avanço tecnológico e a cada rearranjo do sistema internacional. A guerra híbrida é apenas o nome que damos à velha disputa pela soberania, travada agora em terreno mais complexo, onde um cabo de fibra óptica pode ter mais valor estratégico que um porta-aviões, e um algoritmo de recomendação pode ser mais decisivo que um míssil.
Clausewitz permanece vivo porque a sua máxima continua a ser um diagnóstico infalível: toda guerra é política, e toda política que desafia a hegemonia encontrará resistência organizada. O Brasil de 2025, ao insistir na construção de um projeto próprio de desenvolvimento, colide com o desenho geopolítico que nos reserva o papel de fornecedor de matérias-primas, consumidor de tecnologia importada e depositário de resíduos tóxicos — físicos e informacionais. Resistir a esse papel é entrar em guerra, ainda que o campo de batalha se disfarce de reunião de cúpula, audiência judicial, “parceria estratégica” ou feed de rede social.
Mas se a guerra é a continuação da política, a política também pode ser a arte de preparar a paz. Não a paz da submissão, mas a paz armada pela justiça, sustentada por infraestrutura própria, protegida por consciência social e defendida por alianças que respeitem a nossa autonomia. Isso exige método, tempo histórico e estratégia. Exige que abandonemos a ilusão de neutralidade e reconheçamos que a soberania é indivisível: ou a temos em todas as dimensões — econômica, tecnológica, jurídica, informacional e cultural — ou não a temos em nenhuma.
Defender o Brasil, neste contexto, não é um ato isolado do Estado; é uma obra coletiva. É compreender que cada real investido em ciência pública, cada porto modernizado sob controle nacional, cada lei que impede a captura algorítmica de nossas narrativas é um tijolo colocado no muro da independência. É também saber que cada concessão feita sem cálculo, cada dependência aceita como inevitável e cada silêncio diante da humilhação externa é um tijolo retirado dessa fortaleza.
O adversário aposta no nosso cansaço e na nossa distração. Alimenta-se do desânimo, da fragmentação social e da crença de que nada pode ser feito. É aí que o amor ao Brasil deixa de ser sentimento e se torna programa: o amor que não se contenta em cantar hinos, mas que constrói satélites, que defende professores, que preserva a floresta, que protege líderes populares, que garante que nenhuma criança seja ensinada a odiar o próprio país. O amor como política de Estado e como cultura popular, sustentado por uma maioria que compreende que a independência é a base de qualquer liberdade.
A história nos cobra agora a capacidade de pensar como estadistas e agir como estrategistas. De unir Clausewitz a Sun Tzu, Gramsci a Kaldor, e transformá-los não em citações, mas em ação concreta. De compreender que, na guerra híbrida, não se vence apenas respondendo — vence quem escreve as regras do jogo. O Brasil tem recursos, território, povo e inteligência para fazê-lo. Falta apenas a decisão política de assumir que a batalha já começou e que não há caminho de volta.
Soberania não é bandeira a ser desfraldada apenas em tempos de festa. É o nome da trincheira em que viveremos até que cada tentativa de nos subjugar seja dissuadida pelo custo insuportável de nos enfrentar. Se, como ensinou Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios, então que a política brasileira seja, daqui em diante, a continuação da nossa vontade de existir como nação livre — por todos os meios necessários.
Imagens: Codigo Aberto
FONTE: https://www.codigoaberto.net/post/a-guerra-continua