A “guerra de Trump” sobre a América Latina é real, mas também é sintoma de um império em crise.
Donald Trump regressou à Casa Branca com um objetivo claro: reafirmar a supremacia norte-americana em seu “quintal estratégico”. Desde os primeiros meses do novo mandato, o continente latino-americano tornou-se alvo de uma ofensiva que mistura tarifas, sanções, ameaças militares e ingerências jurídicas — um repertório de coerção que remete aos piores anos da Guerra Fria.
A retórica é conhecida. Em nome da “democracia” e do “combate ao narcotráfico”, Washington impõe sua vontade. A diferença é o formato: a guerra agora é híbrida — travada com drones, portarias presidenciais, decretos de sanção e campanhas de desinformação. O resultado é o mesmo: governos eleitos democraticamente são humilhados, alianças regionais são desfeitas e a soberania latino-americana volta a ser tratada como uma concessão, não um direito.
Colômbia sob ataque
O episódio mais contundente dessa escalada veio da Colômbia. Em 19 de outubro, conforme revelou a Associated Press, Trump chamou o presidente Gustavo Petro de “líder ilegal de drogas” — uma acusação sem precedentes entre dois países aliados. O insulto foi acompanhado de medidas concretas: suspensão imediata da ajuda externa, tarifas sobre exportações colombianas e bloqueio de cooperação militar.
Petro respondeu com indignação: denunciou a violação da soberania nacional e lembrou que, durante décadas, a Colômbia foi o laboratório da “guerra às drogas” americana — guerra que fracassou, deixou milhares de mortos e fortaleceu os próprios cartéis.
A análise da AP News mostra que a decisão de Trump não tem base em relatórios internacionais nem em evidências concretas, mas em cálculo político: punir um governo progressista e reforçar sua imagem de “xerife das Américas”. Para a diplomacia colombiana, trata-se de um ato de intimidação. Para o resto da região, um aviso: quem não se alinhar a Washington, será isolado.
Venezuela na mira
Dias antes, a Vox.com revelou outro movimento preocupante: ataques navais dos Estados Unidos a embarcações venezuelanas no Caribe, sob o pretexto de combater o tráfico de drogas. Foram três incidentes, resultando em mais de vinte mortos — reconhecido pelo próprio Trump em coletiva à imprensa. O presidente descreveu as vítimas como “traficantes armados”, mas reportagens independentes indicam que se tratava de pescadores civis.Mais grave: fontes do Pentágono admitiram à Vox que a Casa Branca autorizou operações secretas da CIA dentro da Venezuela, com o argumento de “neutralizar redes de apoio ao regime de Nicolás Maduro”. A ampliação da presença militar norte-americana no Caribe, somada ao envio de drones e navios de guerra, reativou o temor de uma intervenção direta.Trump também passou a classificar os cartéis latino-americanos como “organizações terroristas”, o que, sob a legislação americana, lhe permite ordenar ataques fora do território nacional. Essa reinterpretação do direito internacional, que confunde segurança com guerra, dilui a fronteira entre combate ao crime e invasão soberana.A Vox resume a questão em uma pergunta: “Os Estados Unidos estão prestes a atacar a Venezuela?”. O simples fato de essa dúvida ser plausível já demonstra o grau de tensão. A “paz trumpista”, vendida na campanha como símbolo de moderação, mostra-se, na prática, uma guerra sem declaração formal — conduzida por decretos, sanções e drones.
Brasil: o novo alvo político
O Brasil também entrou no radar. Trump anunciou a reimposição de tarifas exorbitantes (+40%) sobre o aço, o alumínio, o café e outros produtos brasileiros, alegando “competição desleal” e “dumping ambiental”. A medida, semelhante à adotada em 2018, afeta diretamente as exportações industriais e agrícolas, atingindo setores que sustentam o superávit comercial brasileiro com os EUA.
O gesto foi acompanhado da suspensão de vistos para estudantes e pesquisadores brasileiros, sob pretexto de “revisão de segurança nacional”. O episódio mais grave, porém, é a inclusão de magistrados brasileiros em investigação sob a Lei Magnitsky, dispositivo legal que autoriza os EUA a sancionar estrangeiros acusados de corrupção ou violação de direitos humanos.
Trump ordenou ao Departamento de Estado investigar magistrados brasileiros que, segundo a ala trumpista, “politizaram o sistema judicial” que julgou e condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro e 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado. A mensagem é inequívoca: Washington se reserva o direito de punir juízes de outro país — um atentado direto à soberania e ao princípio da reciprocidade internacional.
Essa ingerência inaugura uma nova etapa do intervencionismo: a guerra jurídica, em que os tribunais americanos assumem papel de árbitros morais globais.
Um continente sob cerco
As ações contra Colômbia, Venezuela e Brasil não são isoladas. O México enfrenta restrições comerciais e ameaças de novas tarifas sobre automóveis. O Chile teve financiamentos multilaterais bloqueados após se negar a apoiar uma resolução americana na ONU.
Mesmo a Argentina, aliada do Senhor Trump, foi advertida por Washington de que poderá sofrer retaliações econômicas caso não adote “medidas mais duras” contra migrantes venezuelanos. Mas para o país comandado por Javier Milei, um convicto defensor das ideais da extrema direita internacional, apoiador e adorador de Trump, o tratamento foi diferente. Para sair da grave crise econômica e cambial que atravessa contou com um reforço de US$ 20 bilhões, na forma de swap cambial com o banco central da Argentina — ajuda que está condicionada ao resultado das eleições que se aproximam.
O governo de Javier Milei, que iniciou em 2023 com elevado índice de aprovação, agora amarga 50% de rejeição – cenário que aponta para derrotas nas eleições para o parlamento de 26 de outubro.
Tudo isso compõe um mosaico de coerção, em que sanções econômicas, isolamento diplomático e retaliações jurídicas substituem a ocupação militar tradicional. É o mesmo impulso imperial de sempre, mas revestido de novos instrumentos.O The Guardian descreve esse processo com precisão: “Trump age como um valentão sem plano. Mas mesmo o caos pode matar”. A ausência de estratégia não significa ausência de perigo. Ao contrário: a improvisação multiplica riscos e transforma a América Latina em laboratório de experimentos geopolíticos. As consequências já se fazem sentir: instabilidade cambial, retração de investimentos e crescente desconfiança entre governos progressistas e conservadores da região.
A lógica da “guerra híbrida”
O que está em curso não é uma guerra no sentido clássico, mas uma guerra híbrida, que combina instrumentos econômicos, jurídicos e midiáticos. As tarifas substituem bombas; as sanções individuais substituem invasões; as campanhas de difamação substituem diplomatas.
Trump aprendeu a usar o poder americano de forma assimétrica: sufocar sem ocupar. É o mesmo método aplicado à China e ao Irã, agora adaptado ao Hemisfério Sul. A mensagem é simples e brutal: “Quem não estiver comigo, será punido.”
Nos discursos de Trump, a América Latina reaparece como “fonte de instabilidade”, “exportadora de drogas”, “ameaça migratória”. Essas categorias servem de justificativa para políticas unilaterais que violam princípios básicos do direito internacional. Ao tratar a região como extensão de sua fronteira interna, os Estados Unidos revivem a lógica da Doutrina Monroe: América para os americanos — entendendo-se, claro, “americanos do Norte”.
Consequências e riscos para o Brasil
Para o Brasil, a escalada tem implicações graves. As tarifas sobre o aço, alumínio, café, frutas reduzem a competitividade de nossas exportações e pressionam a balança comercial. O corte de vistos atinge a cooperação acadêmica e tecnológica, e a aplicação seletiva da Lei Magnitsky abre precedente perigoso: amanhã, qualquer autoridade brasileira — um ministro, um diplomata, um juiz — poderá ser sancionada por “discordar” de Washington. Já tivemos um exemplo com o ataque ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Há também impacto político: as medidas de Trump alimentam setores internos hostis à política externa independente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e estimulam o discurso de subordinação voluntária.
O “avanço” de Trump sobre a América Latina não é apenas uma agressão externa — é também uma tentativa de fragmentar o consenso regional que se consolidava em torno dos BRICS +, da cooperação Sul-Sul e da integração energética e ambiental.
A hora de reagir
O desafio é reagir com maturidade e unidade. Os países latino-americanos precisam resgatar o espírito de concertação que animou a Unasul, o Mercosul em seus melhores anos. Reafirmar a soberania coletiva não é gesto ideológico, mas necessidade existencial.
O isolamento de cada nação só fortalece o poder coercitivo de Washington. A resposta deve ser regional: coordenação diplomática, política de defesa conjunta, fortalecimento do comércio intra-americano e ampliação das parcerias com a Ásia e a África.
A história mostra que a América Latina só é respeitada quando fala em uníssono. E, desta vez, a ameaça não vem disfarçada de democracia, mas declaradamente de um governo que vê o mundo como balcão de negócios e a diplomacia como instrumento de intimidação.
A sombra de um império cansado
Ao declarar guerra às drogas, aos imigrantes e aos “inimigos ideológicos”, Donald Trump tenta compensar o declínio relativo do poder americano. A nova ofensiva sobre a América Latina é, em essência, a reação de um império fatigado diante de um mundo que já não aceita sua tutela.
Mas, ao recorrer novamente à força e à chantagem, Washington repete o erro histórico: confunde liderança com dominação. A América Latina mudou e, apesar de suas contradições, já não cabe no molde de subordinação automática.
Trump pode tentar reerguer muros e tarifas, mas não conseguirá deter o movimento de um continente que busca voz própria. A “guerra de Trump” sobre a América Latina é real, mas também é sintoma de um império em crise. E talvez, paradoxalmente, seja esse o momento em que a região reencontre sua força — não na submissão, mas na resistência.
FOTO: The White House
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-guerra-de-trump-contra-a-america-latina