Ignorando avisos, o campo progressista falhou em reagir à guerra informacional. Agora, só restam trincheiras para impedir a derrocada final da democracia.
O seminário de Fortaleza e o fim das ilusões – O seminário do Partido Liberal sobre inteligência artificial e regulação digital realizado em Fortaleza, com a presença escancarada das big techs e sua influência direta na formulação das políticas públicas brasileiras, serviu como um divisor de águas para quem ainda insistia em subestimar a gravidade do momento. O que se viu ali não foi um debate democrático, tampouco uma escuta plural sobre o futuro do país diante das tecnologias que moldam nossas relações sociais, políticas e cognitivas. O que se viu foi a consagração simbólica de uma aliança que há anos vem se formando nas sombras: a entre as plataformas digitais, o capital transnacional e a extrema-direita, articulados com o objetivo claro de capturar o Estado e desmontar qualquer projeto de soberania informacional.
A esquerda e o campo democrático sentiram o golpe, mas tardiamente. A reação que agora começa a se esboçar, ainda tímida e fragmentada, carrega o peso de um erro estratégico: o de não ter agido antes, mesmo diante de inúmeros avisos. Durante anos, pesquisadores, comunicadores, ativistas e movimentos denunciaram o avanço sorrateiro das plataformas sobre o espaço público, o uso sistemático de dados como arma política, a manipulação algorítmica dos afetos e a articulação transnacional entre interesses corporativos e projetos autoritários. Mas esses alertas foram ignorados, relativizados ou tratados como exagero tecnofóbico.
Fortaleza escancarou o que já estava evidente: a guerra informacional não é uma hipótese futura. Ela já está em curso. E agora, é tarde demais para ingenuidades.
O aviso foi dado: todos os sinais estavam lá – A ofensiva que hoje se escancara com apoio das big techs e da extrema-direita nacional e internacional não é novidade. Ela foi minuciosamente preparada ao longo da última década, com estratégias sofisticadas de captura institucional, manipulação da esfera pública digital e corrosão progressiva das estruturas democráticas. Os sinais estiveram diante de nós o tempo todo, mas faltou ao campo progressista a coragem de reconhecer que estava diante de um novo tipo de guerra, mais silenciosa e mais eficiente do que os tanques nas ruas: a guerra da informação.
Desde o avanço do trumpismo nos Estados Unidos, passando pela eleição de Bolsonaro no Brasil, até a explosão de movimentos negacionistas e conspiratórios, tudo apontava para o uso sistemático das redes digitais como armas de desestabilização. O uso intensivo de dados comportamentais, a criação de bolhas de radicalização, os ataques coordenados a instituições, universidades e veículos de mídia, os laboratórios de desinformação que testaram suas táticas no Brasil desde 2015 — nada disso foi improvisado. Foram ensaios de um roteiro maior, operado com precisão militar, por corporações que enxergam na política apenas um campo de controle e lucro.
Mesmo com todos os estudos, relatórios e denúncias produzidos por universidades, jornalistas e movimentos sociais, a esquerda institucional insistiu por muito tempo em tratar o problema como uma anomalia periférica, como se bastasse mais regulação ou algum marco legal para restabelecer o equilíbrio. Ignorou-se que o próprio campo das regulações já havia sido tomado, que os espaços de escuta pública estavam sendo moldados para parecerem neutros, enquanto operavam a favor de interesses privados transnacionais.
O que faltou não foi informação, mas disposição política para encarar que o inimigo já estava dentro da casa. A guerra híbrida não começa com tanques, mas com termos de uso, linhas de código, influenciadores pagos, think tanks infiltrados e campanhas de publicidade vendendo “inovação”. Os que tentaram denunciar isso com antecedência foram vistos como alarmistas ou teóricos demais. Hoje, são justamente esses “alarmistas” que mais têm clareza do que fazer.
O lobby das big techs e a Bancada do Like: a nova arquitetura do autoritarismo digital – A extrema-direita brasileira opera hoje com um novo tipo de coalizão, que combina agentes políticos, plataformas digitais, empresários, militares e influenciadores em um arranjo funcional e de alto impacto: é o lobby das big techs. Essa frente não tem sede física nem estatuto jurídico. Sua força está justamente em sua fluidez, em sua capacidade de articular campanhas coordenadas entre esferas aparentemente distintas — política institucional, redes sociais, think tanks, igrejas, empresas de tecnologia e gabinetes de desinformação.
O lobby opera como vanguarda da guerra híbrida no Brasil. Ela identifica brechas legais, captura dispositivos institucionais, mobiliza afeto e ódio nas redes, sabota debates públicos e sabota os próprios marcos regulatórios em construção. Sua principal aliada: a Bancada do Like — um grupo cada vez mais numeroso de parlamentares que legislam de acordo com os algoritmos, não com a Constituição. Essa bancada atua em sintonia com as plataformas, priorizando cliques e viralizações, e bloqueando qualquer projeto que ameace romper com a lógica da desinformação monetizada.
A ação dessa arquitetura autoritária não é espontânea. É planejada e financiada por redes internacionais, com apoio técnico, político e financeiro de grupos que se espalham pelos Estados Unidos, Europa e América Latina. Sua linguagem se apresenta como “liberdade de expressão” ou “defesa da inovação”, mas seu objetivo é o controle total do ecossistema informacional, utilizando o discurso da liberdade para garantir a reprodução do lucro algorítmico e da captura ideológica.
O mais grave é que essa arquitetura vem se institucionalizando. Ela já marca presença nos parlamentos, nos conselhos de políticas digitais, nas audiências públicas e nas redações. Está ocupando o centro do debate sobre inteligência artificial, governança da internet e segurança cibernética. Enquanto a esquerda hesita entre comissões e notas de repúdio, o lobby das big techs define rumos. E define rápido.
Se não nomearmos agora essa estrutura de poder que se consolida na interseção entre big techs e extrema-direita, e se não a enfrentarmos com igual articulação, perderemos qualquer chance de reconstruir um horizonte democrático para o Brasil.
Terra arrasada: a tomada do Estado via guerra informacional – O que está em curso no Brasil não é uma disputa tradicional por hegemonia política, mas uma tentativa sistemática de tomar o Estado por meio de uma guerra informacional de longo alcance. O objetivo é claro: destruir as mediações democráticas, esvaziar a confiança nas instituições e colocar a opinião pública sob controle algorítmico, manipulando emoções, afetos e percepções para garantir poder e legitimidade à extrema-direita. Trata-se de uma estratégia de terra arrasada, onde o que importa não é construir, mas deslegitimar e dominar.
Essa guerra não precisa de tanques ou armas convencionais. Ela opera por meio de redes, dados, campanhas coordenadas, sabotagem de legislações, pressão sobre reguladores, cooptação de setores institucionais e a disseminação contínua de conteúdos que confundem, desinformam e anestesiam. O PL da Inteligência Artificial, deformado pela pressão das big techs, é apenas um entre vários instrumentos que estão sendo utilizados para impedir qualquer possibilidade de regulação democrática das plataformas. A narrativa dominante é a da “inovação”, mas o que se esconde por trás é a imposição de um modelo de governança digital controlado pelo capital privado global, à margem da soberania nacional.
A destruição do CGI.br, um dos espaços mais relevantes da sociedade civil na governança da internet no mundo, é parte dessa mesma lógica. Trata-se de eliminar pontos de resistência, silenciar vozes críticas e entregar, de forma velada, a infraestrutura informacional do país para interesses corporativos transnacionais. A ruptura institucional não será feita com discursos golpistas explícitos, mas com pareceres técnicos, manipulação jurídica e chantagens econômicas. A tomada do Estado será feita pela via da neutralidade aparente.
A esquerda e o campo democrático ainda se apegam à ideia de que tudo se resolverá no voto. Mas é preciso compreender que, se não houver reação agora, o voto será apenas o último ato de uma peça cujo roteiro já está escrito. A opinião pública está sendo moldada em tempo real para validar um novo regime informacional que pode, legitimamente, entregar o Estado a um projeto autoritário. Quando as urnas forem abertas em 2026, o resultado poderá refletir não a vontade popular livre e informada, mas o produto final de uma engenharia política feita por algoritmos a serviço da dominação.
A esquerda errou: reagiu tarde, com timidez e sem trincheiras – O maior erro da esquerda e do campo democrático nos últimos anos foi subestimar o inimigo e superestimar o poder da institucionalidade diante de uma guerra não convencional. Enquanto a extrema-direita organizava seus exércitos digitais, criava sua infraestrutura de comunicação, infiltrava suas narrativas em escolas, igrejas, aplicativos e algoritmos, a esquerda permaneceu presa a um modelo analógico de disputa, acreditando que bastaria vencer nas urnas ou aprovar projetos de lei para reequilibrar o jogo.
Durante anos, houve sinais nítidos: redes sociais transformadas em armas de guerra cultural, plataformas agindo como editoras de conteúdo sem responsabilidade pública, think tanks operando nas sombras, campanhas de desinformação moldando o comportamento político da população. Mesmo diante disso, a resposta progressista foi lenta, burocrática e desarticulada. Houve mais diagnósticos do que ação, mais teses do que trincheiras, mais notas de repúdio do que ocupações reais dos espaços estratégicos de disputa simbólica.
A esquerda falhou em compreender que não basta ter razão — é preciso ter infraestrutura. Infraestrutura de produção, de formação, de rede, de combate, de visibilidade. O investimento em comunicação estratégica foi negligenciado, enquanto os setores reacionários criaram ecossistemas completos de mídia alternativa, influenciadores, perfis automatizados, canais de mobilização e financiamento internacional. Perdeu-se tempo precioso com disputas internas, vaidades institucionais e um apego romântico a uma institucionalidade que já estava sendo corroída por dentro.
O resultado é que hoje estamos em desvantagem informacional. Entramos atrasados em uma guerra que já está em curso, sem armas compatíveis com o campo de batalha. Ainda é possível reagir, mas é preciso reconhecer o erro estratégico: subestimamos a profundidade da ofensiva, e agora o custo da resistência será mais alto. Só conseguiremos virar esse jogo se rompermos com a lógica da espera e passarmos a agir com a urgência que o momento exige.
Agora é confronto direto: trincheiras, GTs e ação organizada – Chegamos ao ponto em que não há mais espaço para hesitação. O diagnóstico está feito. A estrutura da ofensiva inimiga está exposta. Sabemos quem são, como operam, quais instrumentos usam e quais instituições estão capturando. Diante disso, não há alternativa senão iniciar o confronto direto — não violento, mas radicalmente estratégico, organizado, disciplinado e guiado por um novo espírito de ação coletiva.
Precisamos imediatamente construir trincheiras informacionais em todos os territórios possíveis: nas redes, nas escolas, nas comunidades, nas universidades, nas ruas. Trincheiras não são metáforas poéticas. Elas são frentes de resistência onde se produz contra-informação, formação política, disputa de sentido e defesa institucional. Cada movimento, cada coletivo, cada organização progressista deve assumir a tarefa de ser um núcleo ativo de combate à guerra híbrida, e isso exige método, coordenação e coragem.
É hora de formar Grupos de Trabalho permanentes e autônomos que pensem táticas de curto prazo para impedir o avanço da extrema-direita nas plataformas, no legislativo, no campo jurídico e no debate público. Esses GTs devem funcionar com foco e agilidade, organizando núcleos de produção de conteúdo estratégico, ações jurídicas, articulações institucionais e ofensivas comunicacionais de alta intensidade. A frente de resistência não pode mais ser dispersa, espontânea ou reativa. Ela precisa ser proativa, multissetorial, enraizada nos territórios e conectada em rede.
O confronto direto passa por isso: recuperar nossa capacidade de disputar os afetos, os algoritmos, os votos e o sentido da democracia. Não se trata de “debater melhor” ou de “combater fake news”. Trata-se de construir poder popular digital, ocupar espaços com presença tática e reconquistar a imaginação política de uma sociedade que está sendo anestesiada pelo entretenimento colonizador das plataformas e pela lógica viral do ódio.
Ou partimos agora para essa construção coletiva de trincheiras organizadas, ou assistiremos à consolidação de um regime algorítmico-autoritarista que atuará com legitimidade formal para desmontar tudo o que ainda nos resta de horizonte democrático.
Transformar técnica e teoria em ação imediata: do diagnóstico à prática – De nada serve um diagnóstico preciso se ele não for imediatamente convertido em ação concreta. Já temos teoria suficiente, dados suficientes, evidências acumuladas ao longo dos últimos dez anos. O que falta agora é transformar todo esse acúmulo em prática política real. Técnica e teoria precisam ser reorganizadas como instrumentos de ação direta. O tempo da análise por si só acabou.
É preciso que cada movimento social, cada coletivo, cada militante entenda sua função como parte de uma engrenagem maior de enfrentamento. A pergunta que deve nos guiar neste momento não é mais “o que está acontecendo?”, mas sim “o que podemos fazer agora, com os recursos que temos, para impedir que avancem mais?”. Essa pergunta exige respostas operacionais: como se organiza uma célula de combate à desinformação? Como se estrutura um núcleo de formação crítica em comunidades vulneráveis? Como se fortalece uma rede de advogados populares para defender militantes e jornalistas? Como se financia uma frente de produção cultural progressista com alcance de massas?
Precisamos oferecer materialidade às ações. Mapear as redes já existentes, identificar os talentos e capacidades técnicas disponíveis, dividir tarefas, criar fluxos de comunicação segura, estabelecer protocolos de atuação nos territórios físicos e digitais. A guerra já está em curso — e isso significa que cada dia de inação é um avanço do outro lado. A esquerda precisa aprender com os próprios inimigos: eles organizaram sua ofensiva usando técnicas de guerrilha informacional, células descentralizadas, uso inteligente da tecnologia, e uma coordenação supranacional. O campo democrático pode — e deve — fazer o mesmo, sem copiar os métodos autoritários, mas com igual capacidade de ação e foco estratégico.
Este é o exercício mais urgente: pegar o conhecimento acumulado por pesquisadores, comunicadores, ativistas, programadores, advogados, designers e transformá-lo em plano tático de intervenção. A trincheira começa a ser cavada quando deixamos de esperar soluções externas e assumimos, com radicalidade e humildade, que somos nós os responsáveis por erguer a resistência.
Conclusão: ou cavamos trincheiras agora, ou perderemos os últimos sonhos possíveis – Não estamos diante de uma disputa futura. Estamos no meio de uma guerra já em andamento — silenciosa para os desatentos, brutal para os que ousam resistir. A articulação entre big techs, extrema-direita e setores empresariais, parlamentares e militares não é uma abstração paranóica. Ela é uma realidade operacional, que já avança sobre instituições, regulações, fundos públicos, afetos e imaginários. A tentativa de desestabilizar o país não virá com tanques, mas com algoritmos, influenciadores e PLs moldados sob medida para destruir qualquer chance de soberania.
O tempo da ilusão acabou. Já passou a hora de esperar por soluções vindas de cima ou por consensos que nunca virão. Agora é o tempo da luta coordenada, do confronto direto, da organização das trincheiras em todos os campos — informacional, jurídico, educativo, territorial e simbólico. Se não começarmos a construir essa resistência de forma concreta e imediata, não haverá 2026. E se houver, ele já estará capturado.
Precisamos olhar com honestidade para o que nos resta e, a partir daí, reorganizar nossas forças. Recuperar a dignidade da ação. Transformar o luto em luta, o medo em estratégia, a análise em prática. A trincheira é feita de gente, de coragem, de decisão. Cada dia que passa sem ação organizada é mais um degrau entregue a quem quer destruir o pouco que ainda nos resta de horizonte comum.
Ou cavamos nossas trincheiras agora, com disciplina, afeto e radicalidade democrática, ou assistiremos à completa erosão dos nossos sonhos possíveis. O futuro está em disputa. Mas não basta saber disso. É preciso estar disposto a ocupá-lo — e defendê-lo.
Foto: Reprodução (Divulgação)
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-guerra-ja-comecou-trincheiras-ou-submissao-na-disputa-pelo-futuro-do-brasil