Um elemento sobressai com clareza: petróleo, pressão geopolítica e a tentativa de reconfigurar a AL sob a lógica imperial do século XXI.
A Lança do Sul: A Maior Escalada Militar dos EUA na América Latina em Décadas
Os Estados Unidos iniciaram, nas últimas semanas, a mais perigosa escalada militar no Hemisfério Ocidental desde a invasão do Panamá, em 1989. Em silêncio, quase sem explicações estratégicas consistentes, o governo Trump deslocou o maior porta-aviões de sua frota, reforçou operações de bombardeiros e expandiu a presença de tropas a um nível inédito em décadas. A operação — batizada de Lança do Sul — nasce envolta em contradições, justificativas frágeis e disputas internas dentro da própria Casa Branca. Mas um elemento sobressai com clareza: petróleo, pressão geopolítica e a tentativa de reconfigurar a América Latina sob a lógica imperial do século XXI.
por Maria Luiza Falcão
A Maior Mobilização Militar dos EUA na Região em Trinta Anos
O envio do porta-aviões USS Gerald R. Ford, deslocado às pressas do Mediterrâneo oriental para o Caribe, marca o ponto mais alto de uma mobilização que já alcança 15 mil soldados e marinheiros, além de destróieres equipados com mísseis, aviões de ataque, drones, helicópteros e unidades de Operações Especiais. É uma força de projeção que não se justifica por nenhum parâmetro convencional de combate ao narcotráfico — justificativa repetida diariamente por Donald Trump.
O Ford carrega mais de 75 aeronaves de ataque, com capacidade de bombardear simultaneamente dezenas de alvos estratégicos, e sua presença coincide com o envio de bombardeiros B-52 e B-1, capazes de transportar de 30 a 34 toneladas de explosivos. A guerra ao narcotráfico jamais exigiu bombardeiros estratégicos utilizados historicamente contra Estados, não contra embarcações de pequeno porte.
Ao mesmo tempo, o 160º Regimento de Aviação de Operações Especiais, responsável por missões icônicas no Afeganistão, Iraque e Síria, realizou exercícios na costa venezuelana, indicando que o Pentágono testa cenários de infiltração, captura, eliminação de alvos e operações noturnas. É a anatomia clássica de uma campanha de desestabilização, não de interceptação de barcos.
Apesar disso, o governo não apresentou nenhum documento estratégico que esclareça o objetivo da operação — uma ausência que alimenta o temor de que Washington esteja mais perto de uma intervenção direta do que admite em público.
Drogas, Petróleo ou Minerais de Terras Raras? A Contradição da Casa Branca
Trump insiste que a operação visa “narcoterroristas”. O problema é que a narrativa não sobrevive a nenhuma verificação factual:
• a maior rota de fentanil dos EUA passa pelo México, que não recebeu um único navio de guerra;
• a Guarda Costeira historicamente intercepta essas embarcações sem apoio de bombardeiros;
• o número de ataques — 20 lanchas destruídas, 80 mortos — revela uma violência incompatível com ações policiais.
No entanto, o New York Times revela o elemento-chave: petróleo.
Trump discutiu com assessores, em privado, as reservas venezuelanas — as maiores do mundo, com 300 bilhões de barris. Segundo fontes, Maduro chegou a oferecer um acordo que daria aos Estados Unidos participação direta nessas reservas. Trump interrompeu as negociações e optou pela pressão militar, na esperança de obter um acordo mais vantajoso “sob mira de canhão”.
A droga, portanto, é apenas a cortina de fumaça. A disputa é geopolítica e energética.
É justamente nesse ponto que emerge a dimensão menos visível — e, talvez, mais decisiva — da escalada americana: a Amazônia. Para Washington, a crise venezuelana não ocorre isolada, mas num espaço geográfico onde se concentra o maior patrimônio ecológico, mineral, hídrico e climático do planeta.
Um relatório da Repórter Brasil em agosto de 2025 mostra que na Amazônia Legal existem 157 requerimentos de exploração para terras raras, e que “as áreas cobiçadas representam 17% de todos os polígonos com requerimentos sobre terras raras no país”.
Controlar ou condicionar a Amazônia significa alterar a balança estratégica de toda a América do Sul, isolar a Venezuela, pressionar o Brasil e assegurar acesso privilegiado a minérios críticos, biodiversidade, rotas aéreas e capacidades tecnológicas que definirão a economia verde do século XXI.
A Lança do Sul, portanto, não mira apenas o petróleo venezuelano — ela opera sobre um tabuleiro muito maior, no qual a floresta é tratada como ativo geopolítico e zona de segurança internacional. Para os EUA, quem domina a Amazônia domina o futuro energético e climático do hemisfério — e por isso a ofensiva militar, ainda que apresentada como ação contra “narcoterroristas”, avança também para moldar a ordem regional a partir do bioma que sustenta a soberania de cinco países.
O Retorno da Diplomacia das Canhoneiras
A expressão “diplomacia das canhoneiras”, popularizada no século XIX, descrevia o método pelo qual grandes potências enviavam navios de guerra para forçar concessões de países menores. A Venezuela foi vítima disso entre 1902 e 1903, quando sofreu bloqueio naval europeu. Logo depois, a Marinha americana apoiou a separação do Panamá, abrindo caminho para o Canal — um dos maiores atos de engenharia geopolítica da história moderna.
Cuba como Advertência que o Continente ignorou
A história oferece a advertência mais clara. O embargo a Cuba, iniciado em 1960 e mantido até hoje, tornou-se um símbolo trágico de como os Estados Unidos lidam com países que ousam buscar autonomia. O bloqueio econômico sufocou a ilha por décadas, isolou seu povo e serviu como mensagem permanente ao continente: quem desafiar Washington será punido. A Venezuela, guardadas as diferenças circunstanciais, está sendo empurrada para um roteiro semelhante. Cada movimento militar, cada sanção econômica e cada ameaça velada ressoa o mesmo princípio: o hemisfério seria, segundo a mentalidade imperial norte-americana, uma zona onde apenas um projeto político é permitido.
A Lança do Sul reedita essa lógica: intimidação militar para obter vantagens econômicas e políticas.
Na geopolítica, símbolos importam. E deslocar o maior porta-aviões do mundo para o Caribe significa enviar um recado claro: a América Latina voltou a ser tratada como zona de influência exclusiva, onde Washington acredita poder agir sem contestação global.
Mas os tempos mudaram
A China monitora atentamente o desvio de recursos militares americanos do Indo-Pacífico — região onde a disputa estratégica é, de fato, existencial para os EUA. Como observou Wendy Sherman, ex-subsecretária de Estado, Pequim certamente “toma nota” de cada bombardeiro deslocado para longe de Taiwan.
A Lança do Sul é, portanto, mais do que uma operação regional: é um movimento no tabuleiro global.
Guerra de Narrativas e Incoerência Estratégica
Nenhum governo encontra unidade interna quando não sabe exatamente para onde quer ir. É o caso dos EUA hoje. Cada autoridade parece representar uma estratégia distinta.
• Marco Rubio, Secretário de Estado, diz que não há intenção de derrubar Maduro.
• Pete Hegseth, Secretário de Defesa, afirma que a operação visa defender “todo o hemisfério” de “narcoterroristas”.
• Trump fala em drogas, mas discute petróleo nos bastidores.
• Assessores anônimos afirmam que o objetivo real é forçar Maduro a fugir ou ser capturado.
É um mosaico de versões incompatíveis entre si.
Enquanto isso, a operação já ultrapassou o limite da legalidade, segundo especialistas citados pelo NYT. Matar pessoas em lanchas rápidas, sem prova de que são combatentes e sem risco iminente, pode configurar execuções extrajudiciais. Aliados dos EUA — como Reino Unido e França — já manifestaram desconforto e suspenderam cooperação de inteligência em alguns casos, temendo cumplicidade legal.
Quando aliados históricos demonstram incerteza, é sinal de que o governo perdeu o controle narrativo.
A Disputa de Vontades: Trump vs. Maduro
Para Elliott Abrams, ex-enviado especial dos EUA para a Venezuela, o conflito se resume a uma disputa personalista: “Ou Trump ganha ou Maduro ganha”. Não se trata de combate ao narcotráfico, nem de defesa da democracia. Trata-se de uma queda de braço entre dois líderes autoritários no estilo e na prática.
Trump acredita que pode destruir Maduro militarmente ou forçá-lo a se render. Maduro acredita que Trump não ousará escalar para além das lanchas. E ambos subestimam o risco que essa lógica impõe ao continente.
O problema é que armadas não permanecem indefinidamente em pé de guerra. Quanto mais tempo o Ford e os bombardeiros ficarem na região, maior o risco de incidente, erro de cálculo ou ataque de bandeira falsa. O Caribe está se transformando em um barril de pólvora, e a faísca pode vir de qualquer lado.
A América Latina Entre o Medo, a História e o Direito Internacional
A escalada militar dos EUA ocorre num momento em que o continente tenta, apesar de suas diferenças internas, escapar do ciclo histórico de intervenções. Enquanto Trump multiplica ataques, a região assiste, perplexa, a um cenário que achava ter ficado no século XX.
A operação — unilateral, sem mandato internacional, sem apoio regional e sem objetivo declarado — viola os princípios básicos do direito internacional, que proíbe o uso da força à margem do Conselho de Segurança da ONU.
Além disso, a operação cria fissuras profundas na arquitetura de segurança hemisférica:
• desloca esforços do Comando Sul para longe da cooperação regional;
• aumenta tensões com países-chave e com a União Europeia;
• fragiliza o foco estratégico dos EUA no Indo-Pacífico, beneficiando a China;
• reacende traumas históricos na América Latina.
A Lança do Sul também pode gerar impacto econômico severo: aumento no risco-país da região, fuga de capitais, tensões no mercado de petróleo e pressão sobre fluxos comerciais marítimos.
Conclusão — O Hemisfério em Suspenso
A escalada militar dos Estados Unidos contra a Venezuela não é um episódio isolado. Ela é parte de um retorno mais amplo ao intervencionismo clássico, em que Washington recorre ao poder naval para remodelar governos, mercados e fronteiras políticas. Sob Trump, o discurso sobre narcotráfico serve apenas como um verniz para justificar ações que, na prática, se dirigem ao controle do petróleo, a disputa pela Amazonia e à imposição de hegemonia.
O mais alarmante é que o governo americano opera sem estratégia coerente, sem coordenação interna e sem base legal clara — justamente o tipo de vazio que historicamente levou o mundo a conflitos não planejados.
A América Latina enfrenta novamente o peso de uma história que pensou ter superado. A disputa entre Trump e Maduro não é apenas um confronto entre dois líderes: é um choque entre soberania e força bruta, entre direito internacional e poder militar, entre o hemisfério que queremos e o passado que retorna armado até os dentes.
A região está diante de uma encruzilhada. E, como sempre, quando grandes potências movem suas peças, os pequenos são os primeiros a cair no tabuleiro.
Maria Luiza Falcão Silva – MSc em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).
FOTO: U.S. Navy photo by Mass Communication Specialist 2nd Class Jackson Adkins
FONTE: https://jornalggn.com.br/artigos/a-maior-escalada-militar-dos-eua-na-america-latina-em-decadas-por-maria-luiza-falcao/