Uma ordem mundial fragmentada emerge diante de nós; compreender seus nove vetores de destruição é passo decisivo para resistir e reconstruir caminhos.
Dando aulas por anos na disciplina de Sociologia da Comunicação e escrevendo livros sobre direitos humanos, globalização, reflexões sobre a paz mundial e economia, percebi que compreender o nosso tempo exige mais do que observar estatísticas ou ler tratados: é preciso escutar o que se diz nas frestas, perceber o que se cala nos corredores do poder.
É dessa combinação entre rigor analítico e atenção às camadas invisíveis que nascem estas reflexões — reflexões que olham para o presente não como um terreno seguro, mas como um campo inclinado, onde forças poderosas empurram o mundo para uma instabilidade mais profunda.
Nestes primeiros vinte e cinco anos do século XXI, a ONU atravessa um momento em que oportunidades e riscos se sobrepõem. A colaboração internacional nunca foi tão tecnicamente possível, mas a coordenação política que lhe daria eficácia está longe de se consolidar. A cada reunião frustrada, a cada resolução vetada, cresce o risco de que, ao invés de aproximar as nações, estejamos normalizando a fragmentação. Como já advertiu a Comunidade Internacional Bahá’í, a única saída real é que os líderes do mundo se reúnam para deliberar, com sinceridade e fervor, sobre o remédio necessário para um planeta enfermo e aflito. Nos últimos anos, no entanto, a realidade parece se afastar desse ideal.
O primeiro sintoma dessa crise é a guerra que deixou de ser exceção para se tornar parte da paisagem. Em 2024, o número de deslocados forçados chegou a 123,2 milhões, segundo o ACNUR — um recorde histórico que revela que, do leste europeu ao Oriente Médio, a violência não só persiste como se expande. Conflitos prolongados não apenas destroem cidades; eles corroem, como ferrugem, a confiança mínima entre Estados e povos.
Essa corrosão abre espaço para um segundo fenômeno: a ascensão de regimes autoritários e lideranças de matriz excessivamente ideológica.
O V-Dem aponta que 72% da população mundial já vive sob autocracias, enquanto a Freedom House registra o 19º ano consecutivo de queda global na liberdade. Sob tais governos, o dissenso é visto como ameaça, e não como combustível de uma democracia saudável. É nesse clima que floresce o extremismo político, que se retroalimenta da frustração popular: pesquisa da Edelman mostra que 40% dos entrevistados no mundo consideram legítimo empregar ações hostis para provocar mudanças — número que sobe para 53% entre os jovens.
A isso se soma o negacionismo científico, que rejeita evidências mesmo diante de provas esmagadoras. A Organização Meteorológica Mundial confirmou que 2024 foi o ano mais quente da história, com temperatura média global 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. E ainda assim, líderes e formadores de opinião relativizam a crise climática, atrasando políticas que já deveriam estar em curso. É uma escolha consciente: transformar fatos em meras opiniões para proteger interesses imediatos.
Enquanto isso, o multilateralismo se enfraquece.
O Conselho de Segurança da ONU sofreu oito vetos em 2024, bloqueando respostas a crises graves. As instituições internacionais, concebidas para mediar disputas e promover soluções, estão sendo usadas como palcos para discursos, não como mesas de negociação. Esse bloqueio se articula com a desglobalização punitiva: a OMC prevê crescimento de apenas 0,9% no comércio global em 2025, em meio a guerras tarifárias que fragmentam cadeias produtivas e elevam custos. A economia, que deveria ser instrumento de integração, vira arma de retaliação.
A nova fronteira dessa disputa é o espaço digital, onde se instala o autoritarismo tecnológico.
A União Europeia aprovou o AI Act, exigindo rotulagem de conteúdos sintéticos e regras para inteligência artificial, enquanto a FCC, nos EUA, proibiu robocalls com vozes geradas por IA sem consentimento. Mas esses avanços convivem com a manipulação algorítmica, que distorce o debate público e concentra poder em poucas empresas e governos.Ao mesmo tempo, cresce a financeirização da crise. O Programa Mundial de Alimentos alerta que, sem reposição orçamentária, 58 milhões de pessoas enfrentarão fome extrema em 2025. Paradoxalmente, desde 2020, os cinco indivíduos mais ricos do planeta dobraram suas fortunas, segundo a Oxfam.
A desigualdade não é mais um subproduto da economia; tornou-se seu motor perverso.
Em paralelo, assistimos à reconfiguração de fronteiras por fatos consumados. A anexação ilegal de territórios e a expansão acelerada de assentamentos na Cisjordânia minam as bases de qualquer solução negociada. Cada metro quadrado ocupado sem acordo é uma pá de cal sobre a ideia de que o direito internacional possa prevalecer sobre a força.
Esses nove movimentos — guerra crônica, autoritarismo, extremismo, negacionismo, paralisia do multilateralismo, desglobalização, controle digital, financeirização da crise e redesenho territorial — não agem isoladamente. Eles se conectam e se reforçam.
Vou desenhar, embora não seja um bom desenhista. Vamos lá:
A guerra alimenta o autoritarismo; o autoritarismo sustenta o negacionismo; o negacionismo bloqueia a ação climática; a crise climática provoca deslocamentos; o deslocamento pressiona sistemas já enfraquecidos; a desigualdade amplifica tensões; a ausência de mediação internacional perpetua tudo isso. É um círculo vicioso que acelera.
Para você que me lê, pode parecer que estamos descrevendo uma distopia distante, mas esses fenômenos já tocam a vida cotidiana: nos preços do supermercado, nas notícias filtradas pelo celular, na polarização das conversas, na fragilidade dos empregos, na dificuldade de se confiar na próxima década.
A sensação de que o mundo “perdeu o centro de gravidade” não é apenas metáfora — é um diagnóstico baseado em dados, cruzados com a experiência de quem acompanha, há décadas, a lenta e perigosa desconstrução das bases da convivência internacional.
Ainda assim, o quadro não é irrevogável.
O mesmo mundo que criou sistemas de cooperação global é capaz de reinventá-los. Isso exige enfrentar o imediatismo, reconstruir a confiança no diálogo e recolocar ciência, ética e solidariedade no centro das decisões. O jornalismo, a diplomacia e a ação cidadã têm papéis complementares nesse esforço.
Se não agirmos agora, com clareza e coragem, não será apenas a ordem internacional que se desfará — será a própria capacidade de imaginar um futuro compartilhado.
Foto: Pixabay
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/a-sensacao-de-que-o-mundo-perdeu-o-centro-de-gravidade-nao-e-apenas-metafora