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Amazônia na mira dos EUA: como a Operação Lança do Sul prepara a internacionalização da floresta

EUA e OTAN usam o discurso do “narcoterrorismo” para justificar avanço sobre a Amazônia, tratada como área de risco, ameaçando a soberania sul-americana.

Enquanto a Casa Branca ameaça bombardear Caracas, sabe que uma ocupação terrestre da Venezuela seria um atoleiro militar e político. Por isso aposta em algo mais ambicioso e silencioso: transformar a Amazônia em território internacionalizado sob o pretexto de combater o crime e salvar o clima, deslocando o centro de decisão sobre a floresta para Washington, Bruxelas e seus aliados e reduzindo Brasil, Venezuela, Colômbia e vizinhos a administradores locais de uma região estratégica tutelada pelo Norte global.

O Tabuleiro Invisível

A disputa central no continente não está em Caracas, mas na floresta que a cerca. A Operação Lança do Sul reposiciona a estratégia norte-americana: quando o imperialismo não consegue ocupar um Estado resistente, ele tenta controlar o ecossistema que define o poder regional. A Amazônia torna-se, assim, o alvo decisivo. O crime organizado, a crise ambiental e as rotas ilícitas passam a ser tratados como ameaça global, preparando o terreno para transformar a floresta em zona de “segurança internacional”. Washington sabe que quem controla a Amazônia controla o clima, os minérios críticos, as rotas estratégicas e a correlação de forças da América do Sul. É nesse tabuleiro invisível que a nova disputa imperial está sendo travada.

O Limite Imperial: Por que os EUA Não Conseguem Ocupação na Venezuela

A Venezuela é, para o império, um problema militar sem solução. O país combina geografia hostil, forças armadas robustas, milícias populares organizadas e cultura de resistência. Uma invasão colocaria os EUA diante de outro Vietnã: ocupação impossível, estabilização inexistente e desgaste político insustentável. O custo seria devastador no plano internacional e interno. Por isso Washington evita o confronto direto e adota a rota mais eficiente: cercar Caracas pelo território que a sustenta. Em vez de enfrentar o Estado venezuelano, enfraquece seu entorno estratégico. A chave não é a capital, é a floresta. O imperialismo age onde o custo é baixo e o retorno é alto — e esse lugar se chama Amazônia.

A Solução Alternativa: Transformar a Amazônia em Zona Internacionalizada

Diante da impossibilidade de ocupar a Venezuela, os EUA deslocam sua estratégia para o alvo realmente decisivo: a Amazônia. O imperialismo do século XXI não precisa conquistar capitais; precisa controlar ecossistemas estratégicos. A internacionalização da floresta se apresenta como “cooperação ambiental”, “proteção climática” e “combate ao narcotráfico”, mas o objetivo real é relativizar a soberania dos países amazônicos. Para isso, Washington constrói a narrativa de que a região é ingovernável, violenta e incapaz de se proteger. A solução sugerida é sempre a mesma: ampliar vigilância externa, impor governança internacional e consolidar presença militar e tecnológica ocidental. É o neocolonialismo verde — a ocupação sem tropas, disfarçada de salvação global.

A Engenharia da Crise: Como EUA e Aliados Constroem o Diagnóstico de “Território Ingovernável”

A internacionalização da Amazônia começa antes do primeiro soldado, satélite ou drone. Começa pela narrativa. Washington e seus aliados constroem a imagem de que a floresta é um território fora de controle, dominado por facções, garimpo armado, rotas de cocaína e destruição ambiental. Há fatos reais, mas eles são reorganizados para produzir um diagnóstico estratégico: os países amazônicos teriam perdido a capacidade de governar a própria região.

É a velha tática da securitização. Primeiro, associa-se crime, desmatamento e crise climática como se fossem a mesma ameaça. Depois, apresenta-se a Amazônia como risco global, justificando “intervenção responsável” da comunidade internacional. Por fim, oferece-se a solução: presença militar ampliada, vigilância externa, operações conjuntas e governança ambiental transnacional. A crise é real, mas a engenharia é imperial. Criar o caos discursivo é criar a justificativa para ocupá-lo.

O Arco Norte como Porta de Entrada Imperial: Guiana, Essequibo e Reino Unido

O imperialismo não entra na Amazônia pela selva — entra pelo Atlântico. A Guiana tornou-se o principal ponto de apoio dos EUA e do Reino Unido na borda norte da floresta. A explosão do petróleo offshore guianense transformou o país em plataforma energética da ExxonMobil, protegida politicamente por Washington e militarmente por acordos com Londres. Essa aliança cria um corredor atlântico que toca, por terra, o Essequibo e, por mar, todo o arco amazônico setentrional.

A disputa territorial entre Guiana e Venezuela acelera ainda mais esse alinhamento. A cada tensão, aumenta a presença diplomática e militar do Ocidente na região. O Reino Unido funciona como braço auxiliar da OTAN no Caribe; os EUA garantem segurança energética; e Georgetown abre espaço para operações conjuntas de monitoramento e vigilância. A Amazônia não é invadida: é cercada. O arco norte é o flanco por onde o império se insere de forma silenciosa, contínua e estratégica — abrindo caminho para influenciar toda a dinâmica de poder da América do Sul.

Israel e o Complexo Tecnomilitar Privado como Extensão do Comando Sul

A nova ofensiva imperial não depende apenas de tropas, mas de vigilância, dados e tecnologia militar avançada. É nesse ponto que Israel se torna peça-chave da estratégia dos EUA na Amazônia. A região está repleta de drones, sensores e sistemas de monitoramento israelenses, vendidos como ferramentas de segurança, mas integrados à infraestrutura digital das Big Techs norte-americanas. O hardware é israelense; o software, a nuvem e a inteligência pertencem ao ecossistema jurídico dos EUA.

Isso cria uma forma de ocupação invisível. A imagem operacional da Amazônia — rotas, pistas clandestinas, movimentos de facções, áreas sensíveis — é processada fora do continente. O controle do território se desloca para o controle do dado. Israel fornece a tecnologia; as Big Techs estruturam a informação; o Comando Sul define a doutrina. A soberania amazônica fica presa num tripé tecnomilitar que opera acima dos Estados da região. É o império sem botas no chão, mas com olhos em todos os lugares.

A Guerra Climática: Como a Amazônia Vira Questão de Segurança Internacional

A virada decisiva do imperialismo contemporâneo está na transformação da crise climática em tema de segurança. Quando a OTAN declara oficialmente que o clima é ameaça estratégica, abre-se a porta para intervenções excepcionais em nome da “estabilidade global”. A Amazônia vira, então, não apenas floresta, mas suposto fator de risco para todo o planeta — e, por isso, passível de tutela internacional.

A União Europeia reforça essa agenda com metas como o 30×30, que parece proteção ambiental, mas cria instrumentos para controlar territórios de alto valor ecológico. Sob essa retórica, Washington e Bruxelas afirmam que a sobrevivência climática depende da capacidade do “mundo” de gerir a Amazônia. A narrativa é simples: se os países amazônicos não conseguem evitar o colapso ambiental, a comunidade internacional deve agir.

É a guerra climática. Uma intervenção sem tanques, legitimada por um discurso moral. A Amazônia passa a ser tratada como variável do sistema global — e não como território soberano. O ambientalismo é instrumentalizado para impor vigilância, condicionalidades e controle. A cor do imperialismo mudou, mas sua lógica continua a mesma.

A Nova Corrida pelos Minérios Críticos: Canadá, UE e o Extrativismo Verde

A transição energética do Norte global inaugurou uma corrida violenta por minérios críticos — cobre, níquel, lítio, cobalto, nióbio e terras raras — essenciais para baterias, carros elétricos, chips e infraestrutura digital. A maior parte dessas reservas está na Amazônia. É aqui que o discurso ambiental vira motor material da expansão imperial.

O Canadá lidera essa ofensiva com mineradoras que operam na América do Sul como se estivessem em território sem dono, instalando megaprojetos de alto impacto social e ambiental. A União Europeia, por sua vez, usa regulações “verdes” para garantir acesso preferencial a esses minérios, empurrando o custo ecológico para o Sul enquanto mantém sua indústria limpa. É o extrativismo colonial reembalado como transição ecológica.

Essa nova corrida cria dependência tecnológica, financeira e regulatória. Onde entram minérios críticos, entram também vigilância, acordos militares, certificações externas e pressão diplomática. A disputa climática, apresentada como ética, é apenas a face contemporânea de uma velha verdade: o Norte precisa da Amazônia para garantir seu futuro industrial. E está disposto a administrá-la, caso os países amazônicos resistam.

O Colonialismo de Dados: Quem Controla a Amazônia é Quem Controla Sua Imagem

No século XXI, a disputa pela Amazônia não é apenas territorial — é informacional. A maior parte das imagens de satélite, dos sistemas de monitoramento, dos mapas de calor e das análises que definem “risco”, “crime”, “desmatamento” e “ameaças” é produzida por empresas do Norte global. A floresta é vista, interpretada e classificada por algoritmos que não pertencem ao Brasil nem aos países amazônicos.

Amazon Web Services, Google, Microsoft, Planet e Maxar controlam a infraestrutura que transforma o território em imagem. Isso significa que a soberania sobre a Amazônia passa, na prática, pelo controle das bases de dados que descrevem o que ela é. Quando a interpretação do território é privatizada, o território também é.

O uso massivo de drones e sistemas israelenses conectados a nuvens norte-americanas reforça essa dependência. A Amazônia se torna inteligível apenas através de plataformas externas. A ocupação ocorre no plano cognitivo: quem decide o que é ameaça decide também o que deve ser feito. O colonialismo de dados é a nova face do imperialismo — ele governa a floresta antes que qualquer soldado se aproxime dela.

Elites Locais Colaboracionistas: A Porta Interna de Entrada da Tutela Externa

Nenhuma intervenção avança apenas pela força externa. Ela precisa de elites internas dispostas a abrir caminho. Na Amazônia, parte significativa do agronegócio, da mineração e da classe política regional atua alinhada aos interesses do capital transnacional. Essas frações de classe enxergam vantagem na perda de soberania: ganham financiamento, proteção, certificações internacionais e acesso privilegiado a mercados que elas próprias não controlam.

As mineradoras articuladas ao Canadá, Austrália e União Europeia pressionam por flexibilizações ambientais e jurídicas que enfraquecem a capacidade regulatória dos Estados amazônicos. Setores das Forças Armadas treinados sob doutrina norte-americana reproduzem a lógica da guerra ao “narcoterrorismo”, facilitando operações conjuntas e vigilância externa. Governos locais, fragilizados por economias ilegais e crises fiscais, tornam-se dependentes de ONGs internacionais e fundos estrangeiros que operam acima das instituições nacionais.

Essa combinação cria uma brecha estrutural. O imperialismo não precisa impor sua presença; basta encontrar quem a aceite. A internacionalização da Amazônia não ocorre contra todos os atores internos, mas através dos que compartilham do mesmo projeto: transformar o bioma em ativo administrado pelo Norte global.

A Síntese Estratégica: O Objetivo Não é Caracas — É a Amazônia

A crise não gira em torno da Venezuela. Esse é o teatro superficial. O movimento real é mais profundo: ao invés de enfrentar Caracas — o que teria custo militar e político explosivo — os EUA concentram esforços na Amazônia, que é o coração ecológico, mineral, energético e informacional do continente. Controlar a floresta significa isolar a Venezuela, pressionar o Brasil, projetar poder sobre Colômbia e Peru e moldar toda a política sul-americana a partir de um único território-chave.

Tudo converge para esse objetivo. A guerra climática legitima tutela; o extrativismo verde cria dependência; o arco norte abre acesso militar; Israel fornece vigilância; as Big Techs controlam a imagem do território; e elites colaboracionistas facilitam a entrada. O resultado é claro: a Amazônia é o centro da estratégia imperial, porque é ela que determina a correlação de forças na América do Sul.

Washington sabe que quem governa a Amazônia governa o futuro da região. E por isso desloca o foco: não tenta derrubar Maduro; tenta capturar o ecossistema que o protege. O alvo nunca foi apenas Caracas. O alvo é o continente.

Conclusão — O Último Território Livre

A Amazônia é o centro da disputa geopolítica do século XXI. Não por retórica, mas por materialidade: ela concentra água, minerais críticos, biodiversidade, energia, clima e rotas estratégicas. É o único território cuja existência limita o avanço do imperialismo em sua fase ecológico-informacional. Por isso a pressão aumenta. Por isso cresce o discurso de tutela. Por isso a floresta é apresentada como problema global — nunca como parte da soberania do Sul.

Se a Amazônia for internacionalizada, o continente perde sua capacidade de decidir o próprio futuro. Brasil, Venezuela, Peru, Colômbia e Bolívia deixam de ser atores e passam a ser administradores de um território regulado por Washington, Bruxelas e suas corporações. A floresta vira ativo de mercado, laboratório militar e zona de experimentação tecnológica.

Mas enquanto permanecer sob controle dos povos que nela vivem e dos Estados que a compõem, a Amazônia seguirá sendo o último limite real ao poder imperial. Ela é a fronteira que impede o fechamento total do tabuleiro. A batalha por ela é, no fundo, a batalha pela autonomia da América do Sul.

A Amazônia é o último território livre.

Se cair, todo o continente cai com ela.

Se resistir, abre-se a possibilidade de um século verdadeiramente nosso.

Artigo adaptado para o Brasil 247.

Leia a análise completa publicada originalmente em <código aberto>

Foto: Agência Brasil

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/amazonia-na-mira-dos-eua-como-a-operacao-lanca-do-sul-prepara-a-internacionalizacao-da-floresta