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As engrenagens do ataque à soberania do Brasil

‘Setores da extrema direita e aliados dos EUA articulam uma ofensiva para rotular o Brasil como narcoterrorista e abrir caminho à tutela estrangeira’.

O Brasil enfrenta uma ofensiva coordenada que vai além do debate sobre segurança pública. Sob o pretexto de combater o “narcoterrorismo”, setores da extrema-direita e aliados de Washington articulam uma operação política e informacional para enfraquecer o governo Lula e abrir brechas à influência dos Estados Unidos sobre as forças de segurança. Por trás do discurso de “cooperação”, avança um plano de interferência que ameaça diretamente a soberania nacional.

O Gatilho: o pretexto do caos

O Brasil entrou em novembro envolto em uma tempestade que ultrapassa os limites da segurança pública. A chacina no Rio de Janeiro não foi apenas um episódio trágico de violência urbana, mas o ponto de ignição de uma operação política e informacional cuidadosamente desenhada para transformar o medo em ferramenta de poder. O país assistiu, atônito, a imagens de helicópteros sobrevoando favelas, blindados avançando por vielas, dezenas de corpos no chão — um espetáculo coreografado para sustentar a ideia de que o Estado brasileiro perdeu o controle sobre o próprio território. Essa narrativa, repetida com precisão em discursos, editoriais e declarações de autoridades, serviu de base para a introdução de um novo enquadramento: o do “narcoterrorismo”.

O termo, importado das doutrinas de segurança de Washington, aparece como solução imediata para o caos, mas na verdade cumpre a função inversa — abre espaço para a intervenção externa sob o disfarce da cooperação. Foi nesse vácuo entre a dor e a narrativa que se moveu a engrenagem. Governadores da extrema-direita, setores da mídia corporativa e operadores ligados ao trumpismo aproveitaram o episódio para reconfigurar o debate nacional, apresentando o Brasil como um Estado falido que necessita de tutela. O Rio tornou-se o laboratório simbólico de uma operação maior, em que a guerra às drogas é apenas a superfície visível de uma disputa muito mais profunda: o controle sobre a soberania.

Enquanto o governo federal buscava recompor o pacto institucional, surgiram vozes pedindo “ajuda internacional”, “cooperação técnica” e “integração de inteligência”. Cada uma dessas expressões, em aparência moderada, carrega o mesmo DNA político — o da dependência. A crise no Rio não apenas alimentou o noticiário, mas funcionou como gatilho para o avanço de um roteiro preexistente: gerar comoção, desmoralizar o Estado, criar o consenso de que o Brasil não consegue se governar. O caos, então, deixou de ser um acidente: virou método.

O Rótulo: o nascimento do narcoterrorismo

O termo “narcoterrorismo” não surgiu no Brasil. É um conceito importado, moldado em Washington desde a década de 1980, quando o governo dos Estados Unidos precisou justificar sua presença militar e de inteligência na América Latina sob o argumento de combater o tráfico de drogas. Ao longo das décadas seguintes, a expressão foi reconfigurada como instrumento jurídico e diplomático para ampliar o alcance da política externa norte-americana. Quando um país é rotulado de “narcoterrorista”, ele deixa de ser um Estado soberano com problemas internos e passa a ser tratado como uma ameaça global. Essa é a função do rótulo — transformar uma questão doméstica em um problema internacional, e assim abrir o flanco para a intervenção, direta ou indireta.

No Brasil, a expressão ressurgiu agora com força e timing perfeitos. Logo após as operações no Rio, lideranças estaduais e vozes alinhadas à extrema-direita começaram a repetir a palavra em uníssono. “Narcoterrorismo” virou manchete, tema de entrevista, justificativa para leis de exceção. A retórica nasceu de forma aparentemente espontânea, mas o sincronismo denunciava a existência de um roteiro. Parlamentares conservadores, articulistas estrangeiros e consultores ligados a figuras do trumpismo começaram a circular a tese de que o Brasil estaria se tornando um “santuário de facções” e que a comunidade internacional teria o “dever de agir”. Era a narrativa perfeita: um país latino-americano à beira do colapso, governado por uma liderança de esquerda e supostamente incapaz de enfrentar o crime.

O uso político da linguagem é, aqui, a peça central da operação. A palavra “narcoterrorismo” não descreve uma realidade; ela a produz. Ao ser incorporada no discurso público, cria a moldura pela qual o Estado brasileiro passa a ser visto — dentro e fora de suas fronteiras. É uma estratégia antiga: redefinir o inimigo, deslocar o sentido da lei e usar o medo como ferramenta de convencimento. O termo serve para confundir fronteiras entre criminalidade e ideologia, abrindo caminho para que o “combate ao crime” se transforme em justificativa para políticas de exceção.

A importação dessa linguagem não é um acidente semântico. É a etapa inicial de uma transição silenciosa, na qual o Brasil passa a enquadrar sua própria segurança conforme parâmetros estrangeiros. Quando um governo estadual, um parlamentar ou um comentarista chama uma facção de “terrorista”, está, na prática, entregando soberania jurídica e simbólica. O país começa a falar a língua de quem historicamente o vigia. E é nessa mudança de vocabulário — aparentemente técnica, mas profundamente política — que se desenha a nova forma de intervenção. O narcoterrorismo é o nome de uma doutrina que retorna disfarçada de colaboração, mas opera como o primeiro ato de uma ocupação institucional.

As Engrenagens: quem move o ataque

Toda operação de desestabilização precisa de atores internos para dar legitimidade e de operadores externos para garantir respaldo político, técnico e financeiro. No caso brasileiro, as duas dimensões se fundiram de maneira quase perfeita. De um lado, governadores da extrema-direita, como Cláudio Castro e Tarcísio de Freitas, passaram a se comportar como entes quase autônomos, buscando interlocução direta com órgãos norte-americanos sob o pretexto de “cooperação de segurança”. De outro, figuras ligadas ao governo Trump — entre elas advogados internacionais e ex-membros de agências de segurança — vêm articulando, em think tanks e veículos conservadores, a narrativa de que o Brasil se tornou um “epicentro do narcoterrorismo na América do Sul”. Essas duas pontas se encontram em um mesmo objetivo: deslocar o eixo de decisão da segurança brasileira de Brasília para Washington.

As peças internas da engrenagem cumprem papéis distintos, mas complementares. Os governos estaduais fornecem o pretexto operacional, transformando suas forças de segurança em vitrine política. O Congresso, por sua vez, oferece o instrumento jurídico, ao avançar com projetos de lei que buscam equiparar facções criminosas a organizações terroristas — criando, assim, a base legal para uma futura cooperação militar e de inteligência com os Estados Unidos. Já a grande mídia cumpre a função de vetor simbólico, reproduzindo sem filtros a retórica da impotência nacional e reforçando a ideia de que o país precisa de ajuda externa para se proteger de si mesmo.

Enquanto isso, operadores estrangeiros trabalham nos bastidores para conferir a essa narrativa uma aparência de legitimidade internacional. Escritórios de advocacia especializados em sanções, fundações conservadoras e canais de mídia alinhados ao trumpismo amplificam o discurso do “Brasil em colapso”, preparando o terreno para que qualquer reação soberana do governo Lula seja interpretada como hostilidade diplomática. O objetivo é simples e sofisticado: criar um ambiente em que a interferência externa pareça inevitável, até desejável.

Essa engrenagem não funciona por meio de tanques, mas de instrumentos legais, protocolos de cooperação e fluxos de informação. É uma forma moderna de ocupação: silenciosa, institucional e revestida de legitimidade técnica. A operação é meticulosa porque opera nas bordas da lei, na intersecção entre o que é formalmente permitido e o que é politicamente devastador. Quando um governo estadual assina um convênio direto com uma agência estrangeira, ou quando um parlamentar propõe uma alteração que copia dispositivos do Patriot Act, o que está em jogo não é segurança — é soberania.

E o resultado dessa convergência é um Estado fragmentado: governadores que falam em nome próprio, congressistas que legislam sob influência de potências externas e uma opinião pública conduzida a acreditar que o Brasil precisa ser “salvo”. É assim que se constrói o golpe do século XXI — sem quartéis, mas com narrativas, tratados e tecnologia. O ataque não vem mais de fora: ele se infiltra pelas instituições, com crachá e credencial.

A Armadilha: encurralar o governo Lula

A operação é medida para colocar o Planalto diante de um dilema letal: recusar a “cooperação” e ser acusado de omissão, ou aceitar medidas que corroem a autonomia e ser taxado de ceder soberania. Essa lógica binária é o principal motor da pressão política. Na prática, a tática funciona assim: amplifica-se a percepção de colapso; oferece-se uma “solução” externa com aparência técnica; e transforma-se qualquer resistência do governo federal em prova de cumplicidade com o suposto caos. Ao agir nessas frentes simultâneas — mídia, parlamento e convênios estaduais — a extrema-direita e seus aliados internacionais montam uma armadilha discursiva que mina o espaço político de Lula sem precisar de votos decisivos nas urnas.

Além da dimensão simbólica, a armadilha tem efeitos concretos. Projetos de lei, termos de cooperação e memorandos assinados por secretarias estaduais criam fatos consumados que dificultam a reversão. Uma vez instalado um padrão de intercâmbio de inteligência, transferência de dados e treino operacional com agências estrangeiras, as estruturas locais se adaptam: equipamentos, protocolos, bases de dados passam a depender de padrões externos. Isso não é teoria: é rearranjo material do poder de decisão. Neste tabuleiro, a derrota não é apenas política — é institucional e longeva. E enquanto o debate público se polariza sobre culpa e segurança, as decisões técnicas que de fato alteram a soberania são tomadas em gabinetes e mesas de conversa onde o interesse geopolítico fala mais alto.

A Defesa: o contra-ataque da soberania

Reagir exige estratégia, não retórica. A defesa da soberania combina três frentes simultâneas e coordenadas: comunicação, lei e diplomacia. Comunicacionalmente, é urgente desconstruir o frame do “narcoterrorismo” como solução inevitável; devolver ao país o monopólio da narrativa significa explicitar, com provas e linguagem acessível, que a etiqueta é um instrumento de hegemonia, não uma descrição técnica neutra. No campo jurídico, a resposta passa por indicadores claros: vetar convênios estaduais que firam competência federal, submeter ao STF qualquer ato que configure cooperação externa sem chancela do Executivo nacional e bloquear tentativas de importar tipificações jurídicas que desrespeitem o sistema constitucional brasileiro. Diplomacia ativa e coordenada é a terceira frente: Lula e Itamaraty precisam transformar a CELAC, os BRICS e foros regionais em palco de legitimação da autonomia, pressionando por regras claras de cooperação que preservem o controle nacional sobre dados, operações e presença técnica.

Além disso, há medidas técnicas e práticas: auditorias públicas em contratos de segurança que envolvam empresas estrangeiras; cláusulas de soberania em qualquer convênio que tratem de dados ou inteligência; treinamento e capacitação interna para reduzir dependências tecnológicas; e uma política de transparência que submeta acordos a consultas públicas e ao crivo do Congresso. A defesa exige também uma operação de contra-informação coordenada entre governo, imprensa democrática e sociedade civil, capaz de antecipar e neutralizar narrativas fabricadas antes que se cristalizem em lei. Defender a soberania não é isolar o país, mas condicionar a cooperação a padrões que preservem a autonomia decisória do Brasil.

FOTO: RS/Fotos Públicas

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/as-engrenagens-do-ataque-a-soberania-do-brasil