A violência policial e a cumplicidade política corroem o Estado e alimentam o autoritarismo no país.
Todo mundo virou especialista em segurança pública depois da última chacina patrocinada pelo troglodita que governa o Rio de Janeiro, aplaudida por trogloditas que governam outros estados e por significativa parcela da população — na verdade, gente incauta, encurralada entre o crime e a incompetência estatal para combatê-lo. As análises vão desde o repúdio natural pelos defensores dos direitos humanos até o enaltecimento pelos idólatras dos esquadrões da morte.
Nesse cenário de muito palpite e pouca racionalidade, sobressai, pelos elevados patamares de conhecimento e poder argumentativo, o sociólogo brasileiro Gabriel Feltran, autor do livro Irmãos: Uma História do PCC (Companhia das Letras, 2018), professor do Centro Nacional de Pesquisa Científica, na França, e professor do Sciences Po, uma das mais importantes instituições de ensino superior de ciências humanas da Europa. A entrevista de Feltran à Folha de S. Paulo, publicada na segunda-feira (3), mostra que ainda existem cabeças que produzem bons argumentos.
Logo na resposta à primeira pergunta do repórter André Fontenelle, Feltran vai na ferida. A operação Penha-Alemão foi, para ele, um “evento letal organizado, cuja escala vem aumentando, que termina eliminando operadores baixos do universo criminal: soldados rasos ou pequenos varejistas, cujas posições são prontamente substituídas. Morrem também policiais de baixa patente, igualmente substituídos cinicamente no dia seguinte.”
O sociólogo identifica em governadores e outros políticos, membros do Judiciário e do Ministério Público e parte da imprensa a “cumplicidade política” com a matança como estratégia para dar andamento a uma pauta legislativa de exceção, visando a “garantir na lei o extermínio já praticado, transformando qualquer um que seja qualificado como traficante ou membro do crime organizado em ‘terrorista’”.
Este trecho é crucial:
“Essa retaguarda política, jurídica, institucional, essa cumplicidade dos órgãos de controle como o Ministério Público, que deveriam ser os primeiros a flagrar as ilegalidades evidentes desses eventos, bem como desse novo marketing eleitoral escrito com sangue, é inédita em escala nacional. Ela representa sociologicamente a transição evidente de um movimento totalitário, cuja expansão venho descrevendo há alguns anos em ensaios recentes, para um conjunto de práticas totalitárias de governo.”
Para Feltran, os ideólogos da extrema direita hoje sentem-se fortalecidos para, entre outras coisas, “alimentar o ciclo político de transformação social com mais sangue”.
“Politicamente, esses eventos abrem espaço para a propaganda populista voltada para massas sedentas por paz, que, no entanto, acreditam na guerra sangrenta como meio. Décadas de operações desse tipo, no Rio de Janeiro, ampliaram a militarização dos mercados ilegais, a corrupção policial sistêmica e a ação faccional, mas quem se lembra do que houve no Carandiru, no Jacarezinho, em Paraisópolis?”, indaga o pesquisador.
Essa forma tirânica e desumana de exercer o poder, segundo Gabriel Feltran, recebe a bênção das elites, caso contrário não se viabilizaria:
“Quanto mais falham em entregar segurança, mais os agentes ideológicos da segurança pedem recursos para fazê-la melhor, seja na esfera privada, seja controlando mais e mais fatias do orçamento. Recebem a bênção das elites instaladas, cada vez mais próximas aos policiais, que então cedem esses recursos num ciclo orçamentário sem fim. Produzir sua propaganda e ganhar as massas é fundamental para garantir a legitimidade desse regime de poder, e passam a investir nisso.”
Outro aspecto da nefasta política de segurança pública em vigor no Brasil, cujo ponto mais visível é a favela carioca, é o que se convencionou chamar, entre as esquerdas, de racismo policial. As ações “mata-preto” são notórias. Porém, perseguir a população negra — e sempre a pobre — não é uma atitude planejada pelas polícias:
“Sobre o racismo e o elitismo, o que ocorre é um efeito social muito perverso, a partir de um choque de mundos cognitivos: a polícia se vê como promotora de mobilidade social de jovens pobres e negros, porque os tem em seus quadros, mas os resultados letais das operações atingem invariavelmente esse mesmo perfil. Pelo fato de serem os jovens negros e pobres os mais recrutados para a operação baixa dos mercados ilegais, das economias criminais. Sociologicamente, isso produz efeitos racistas e elitistas evidentes, demonstrados em qualquer estatística de prisão, letalidade policial ou criminalidade. Mas os policiais ideologizados evidentemente não reconhecem esses dados assim.”
Apesar de o Brasil contar, neste momento, com um governo federal que busca uma política de segurança pública e de combate ao crime nacional que seja contundente, mas não desumana, ninguém detém tanto poder nas mãos, nessa seara, quanto a extrema direita representada por um punhado de governadores, que são, de fato, os comandantes das tropas.
Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/autor-de-livro-sobre-o-pcc-lanca-luz-sobre-o-debate-da-seguranca-publica