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Bandeira de Israel, guerra santa: o que se sabe sobre a ‘facção evangélica’

A associação de facções criminosas com lideranças evangélicas no Rio de Janeiro está em franco desenvolvimento. A Tropa de Arão, por exemplo, domina já há algum tempo uma vasta área de favelas, chamada Complexo de Israel, em referência à “terra prometida” para o “povo de Deus” na Bíblia. Nessa modalidade, a facção exige conversão e práticas religiosas específicas para adesão e permanência na organização.

O que se sabe

Inspirada na “gramática pentecostal”, essa facção adotou referências bíblicas, como o nome do irmão de Moisés, para sua identidade. As comunidades de Parada de Lucas, Vigário Geral e o Complexo de Israel foram eleitas como redutos da Tropa, onde símbolos religiosos, como a estrela de Davi, são amplamente exibidos, incluindo um neon de grandes proporções na comunidade Cidade Alta.

A posição ocupada pela Tropa de Arão, sob o comando de Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Arão, está em crescente expansão, ao atuar com propósito de ocupar novas áreas, principalmente as de geografia favorável para a implantação do tráfico de drogas, explica Émerson Tauyl, advogado criminalista especialista em Segurança Pública. Na estrutura, ele explica, a tropa é idêntica às de outras fações rivais.

Ao exercerem autoridade paraestatal nas comunidades onde estão instaladas, lutam constantemente por novas ocupações territoriais para ampliar o seu potencial de vendas. Tudo isso mediante imposição da violência, cooptação de membros das comunidades, promoção de rebeliões para exercer poder sobre a população carcerária, estabelecendo novas lideranças com interesses voltados ao comércio de tráfico de drogas — plantação, compra de insumos, logística e venda.
Émerson Tauyl, advogado criminalista

A diferença entre elas, explica Fábio Chaim, advogado especializado em Direito Criminal, acaba sendo o aspecto religioso e as práticas adotadas, inclusive com forte intolerância com relação às religiões africanas. Impera a visão de que os conflitos armados, oriundos da relação entre as facções criminosas e com o Poder Público, seriam nada mais do que uma “guerra santa”.

A Tropa de Arão possui uma conexão com o chamado Terceiro Comando Puro, rival do Comando Vermelho, mas aparenta tratar-se de uma facção independente, explica Chaim. Ela atua no sistema de alianças e acordos típicos do crime organizado, que estão em constante mudança, à medida que territórios são invadidos ou que ocorram mudanças nas estruturas de liderança, devido à morte ou prisão de seus chefes.

Ideais se misturam

Mas, afinal, a tropa é composta por traficantes que se tornaram evangélicos ou evangélicos que se tornaram traficantes? Na visão de Tauyl, os ideais se misturam, pois segundo estudiosos, seus membros são traficantes que participam da “vida do crime” e da vida religiosa evangélica. Eles participam de cultos, pagam o dízimo e até patrocinam apresentações de artistas gospel na comunidade.

“Essa influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu, e não é algo particular ao protestantismo”, explica o advogado. “Mas a conversão de traficantes ao pentecostalismo é um fenômeno que tem características próprias, em um país que caminha para o crescimento pela adesão à religião evangélica”.

Nos últimos 30 anos, a sociedade brasileira tem visto um aumento significativo no número de evangélicos, com um crescimento de 61% entre 2000 e 2010, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2020, dados do Datafolha indicaram que 31% da população se identificava como evangélica, enquanto os católicos compunham 50%.

Projeções sugerem que se o crescimento continuar, os evangélicos poderiam representar 40% da população em 2030, conforme estimativa do pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia pela UFMG. As missões religiosas em presídios são um chamariz para a “conversão” de criminosos e, apesar de líderes mais puristas exigirem o abandono das práticas criminosas, isso dificilmente ocorre.

É muito comum que criminosos recorram à religiosidade para lidar com a vida que escolheram. Para conseguirem cometer o delito sendo de alguma forma agraciados por sua “conversão”. Seja com liberdade provisória, redução de pena, liberação de visitas. Qualquer vantagem é considerada.

Para Fábio Chaim, a estruturação da prática religiosa com dogmas e estruturas vinculadas com uma organização criminosa específica, para as comunidades dominadas, é muito ruim. Há um risco de intolerância com relação as demais religiões e a expulsão de seus membros destes territórios dominados. Vários templos de religiões de matriz africana e até igrejas católicas têm sido alvo dos criminosos e até dos moradores dessas regiões.

Por outro lado, considerando a rejeição da comunidade evangélica com relação às práticas ilícitas, bem como os conflitos entre facções que costumam controlar o tamanho e poder de cada, muitas vezes com tolerância do Poder Público, o advogado não enxerga um cenário de crescimento do narcopentecostalismo num futuro próximo.

A aproximação entre a religiosidade e o tráfico de drogas é resultado do fracasso das políticas públicas no Rio de Janeiro, em especial, e no Brasil, como um todo, em fornecer melhores condições de vida para a sua população. As consequências acabam sendo experimentadas pela população das comunidades dominadas pela Tropa de Arão. O Poder Público, por sua vez, somente se importa quando a situação foge ao controle ou em tempos de eleição.
Fábio Chaim, advogado especializado em Direito Criminal

FONTE:

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/03/13/tropa-de-arao-o-uso-da-religiao-como-escudo-para-a-pratica-de-crimes-no-rj.htm