Como a Elite Está Erguendo Cidades Inteligentes Para Excluir os Indesejáveis.
Eles querem o futuro sem nós: o projeto eugenista das cidades dos bilionários. Como a elite tecnolibertária está programando um mundo sem pobres, sem fricção e sem democracia – e por que precisamos resistir agora, antes que sejamos deletados do amanhã.
A barbárie que se anuncia.
Vivemos um momento em que o futuro não está sendo sonhado coletivamente, mas desenhado à porta fechada por uma elite de bilionários que não desejam salvar a humanidade — desejam fugir dela. Eles não pretendem construir um mundo melhor para todos, mas um novo mundo apenas para si. Um mundo de cidades muradas por código, protegidas por algoritmos, vigiadas por inteligência artificial e geneticamente filtradas contra qualquer desvio que ameace sua noção de pureza. Um mundo onde nós, cidadãos comuns, não cabemos.
Essa elite — tecnocrática, libertária e ultraliberal — não se reúne apenas em conferências e fundos de investimento. Ela se organiza como uma casta de engenheiros da exclusão, movida por uma convicção fanática: a de que os pobres, os lentos, os improdutivos, os erráticos, os dependentes, os afetivos — em suma, os humanos com fricção — são obstáculos ao avanço da civilização. Para ela, a cidade é um hardware, o cidadão é um dado, e a política é um bug que precisa ser corrigido com automação.
Peter Thiel, Elon Musk, Marc Andreessen, Balaji Srinivasan, Vitalik Buterin, entre outros ícones do Vale do Silício, são hoje os ideólogos e investidores de um mundo onde o Estado é abolido, a democracia é substituída por contratos inteligentes e o corpo humano é otimizado ou descartado conforme sua utilidade econômica e genética. Esses homens não querem apenas ganhar dinheiro com tecnologia. Eles querem reestruturar a realidade. Seu projeto é fundar novas cidades privadas, erguer territórios autônomos fora do alcance de qualquer Constituição e implantar regimes de governo que operam não com representantes eleitos, mas com modelos preditivos e fórmulas de capital humano.
O nome disso não é futuro — é barbárie tecnolibertária. É a falência da civilização democrática, travestida de inovação. É um novo eugenismo, agora não mais praticado por cientistas raciais, mas por programadores e geneticistas corporativos. Seu campo de experimentação é o território. Seu laboratório é o genoma. Sua ideologia é a supremacia de dados e eficiência. E sua estratégia é separar-se do restante da humanidade para não precisar mais lidar com ela.
Este artigo é um esforço para compreender como esse projeto se estrutura, quem o financia, quais tecnologias o sustentam, que lógica de classe o move e quem será excluído de sua promessa de “progresso”. Mais do que isso: é uma convocação à consciência e ao conflito. Porque, se não denunciarmos agora esse novo pacto tecnofascista, seremos — nós, os indesejáveis — os primeiros a sermos automatizados para fora do mundo.
A ideologia do Vale do Silício: tecnolibertarianismo, ultraliberalismo e fascismo 4.0.
O Vale do Silício não é apenas uma geografia de inovação — é um centro de produção ideológica global, que molda subjetividades, regula a política e projeta sob uma nova ontologia tecnocrática. O ethos dominante entre seus principais representantes é o tecnolibertarianismo: uma síntese entre o ultraliberalismo radical, o anarquismo de mercado, a obsessão por pureza métrica e a rejeição da democracia como forma legítima de mediação social.
Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal e do fundo Founders Fund, afirmou certa vez que a democracia é “incompatível com a liberdade”, e que o sufrágio universal deveria ser relativizado. Para ele e seus pares, o ideal de sociedade não é construído sobre solidariedade ou redistribuição, mas sobre competição total, meritocracia genética, e seleção natural acelerada por código. A desigualdade, longe de ser um problema a resolver, é vista como uma evidência moral da superioridade dos vencedores. A pobreza, como uma falha de performance. A diferença, como ruído no sistema.
Essa doutrina produz uma visão de mundo na qual o Estado é um entrave, o coletivo é uma ameaça, o comum é um atraso. No lugar disso, propõe-se um universo de contratos privados autoexecutáveis (smart contracts), governos substituídos por DAOs (Organizações Autônomas Descentralizadas), e cidadãos reduzidos a carteiras digitais com score reputacional. A política desaparece. A justiça é automatizada. O tempo do conflito — que é a base de qualquer democracia — é eliminado por uma lógica de eficiência algorítmica.
Aqui, o ultraliberalismo encontra sua forma mais perversa: uma distopia meritocrática onde só sobrevive quem performa, quem calcula, quem escala, quem entrega, quem codifica. O indivíduo ideal desse mundo é jovem, branco, masculino, conectado, não afetivo, cognitivamente performático e biologicamente apto. Todos os outros são fricções a serem removidas da equação, inclusive por meios genéticos, biométricos ou territoriais.
Mas há algo ainda mais sombrio. Essa elite não deseja apenas romper com o Estado: ela deseja fundar uma nova ordem global, baseada em soberanias privadas e territórios regidos por bilionários. A cidade não é mais um espaço de convivência: torna-se uma empresa com acionistas, um ambiente higienizado contra o erro, o desvio e a pobreza. Não há plebiscito, não há conselho municipal, não há parlamento. Há um whitepaper, um pitch, uma blockchain e uma política de privacidade.
O que emerge desse imaginário é uma forma inédita de fascismo: o fascismo 4.0 — uma doutrina que não se impõe pelo Estado totalitário, mas pelo controle algorítmico totalizante, onde a liberdade é definida pela capacidade de otimizar-se conforme os parâmetros do capital de risco. Não há necessidade de tanques ou de censura explícita. Basta um modelo de IA que silencie, despriorize ou filtre o indesejado. Trata-se de um fascismo que opera por design, por exclusão estatística, por arquitetura de sistema.
Essa ideologia não está restrita à ficção científica ou aos fóruns obscuros do Vale. Ela está sendo exportada para o mundo inteiro por meio de parcerias público-privadas, programas de identidade digital, políticas de “governo inteligente” e legislações de “inovação urbana”. Está presente em cada cidade que adota IA para prever o comportamento de seus habitantes, em cada Estado que substitui o julgamento humano por lógica preditiva, em cada startup que promete eficiência substituindo a justiça pela estatística.
Estamos diante de uma doutrina totalizante — silenciosa, mas devastadora — que pretende substituir o que há de mais humano na política: o dissenso, a dúvida, o erro, o conflito, a incerteza e a solidariedade.
As novas cidades eugenistas: a arquitetura do apartheid digital.
As cidades sempre foram espaços de disputa: entre o público e o privado, entre o capital e o trabalho, entre o direito à moradia e a lógica da propriedade. Mas na era do tecnolibertarianismo, essa disputa está sendo decidida de antemão. Uma nova geração de projetos urbanos — como NEOM (Arábia Saudita), Telosa (EUA), Prospera (Honduras) e cidades cripto em gestação — não nasce para todos. Elas são erguidas com a finalidade explícita de excluir. Trata-se de um novo urbanismo eugenista, onde a arquitetura serve para filtrar quem pode existir.
Essas cidades não são pensadas como comunidades — são produtos. Não são regidas por políticas — são geridas por conselhos de investimento. Não respondem a constituições — seguem termos de uso. E acima de tudo, não toleram desvio, pobreza, complexidade ou fricção. O cidadão ideal é o que consome, performa, não reivindica e se adapta. Os demais são projetados para ficar do lado de fora — física, digital e moralmente.
Chamadas eufemisticamente de smart cities, essas urbes operam sob a lógica da plataforma: tudo é quantificável, automatizável, categorizável. Sensores, câmeras, algoritmos e inteligência artificial compõem uma malha de vigilância permanente, que rastreia hábitos, emoções, padrões de deslocamento e produtividade individual. A cidade não acolhe — ela monitora, classifica e penaliza.
Mas o que as torna verdadeiramente eugenistas não é apenas a vigilância — é a forma como definem quem merece estar ali. O urbanismo tradicional já segregava por preço. As cidades eugenistas, agora, segregam por perfil genético, comportamento digital, histórico biométrico e score reputacional. A fronteira urbana deixa de ser uma linha no chão e passa a ser um algoritmo invisível, que decide quem cruza, quem acessa e quem permanece.
NEOM, por exemplo, é projetada para ser uma “cidade sem carros”, “sem emissões”, “sem fricções” — mas, essencialmente, sem pobres. Telosa é vendida como uma cidade “equity-based”, mas com todo o solo concentrado nas mãos de um bilionário que se autodeclara “filantropo disruptivo”. Em Prospera, os habitantes assinam contratos que substituem os direitos constitucionais — e os juízes são escolhidos por um conselho corporativo. Nessas cidades, não há sindicatos, não há protesto, não há parlamento. Apenas blockchain, IA, biometria e cláusulas que podem ser atualizadas remotamente, como um app.
A urbanização eugenista não se limita às cidades “do zero”. Ela avança por retrofit em centros urbanos existentes: com a introdução de zonas de gestão algorítmica, sistemas de acesso controlado por reconhecimento facial, plataformas de saúde integradas com dados genéticos e modelos preditivos que decidem, em tempo real, se uma pessoa representa risco ou valor para o ecossistema urbano.
Essa nova cidade não é apenas excludente — ela é programada para prevenir a presença dos indesejáveis antes mesmo que cheguem perto. O urbanismo deixa de ser planejamento e vira pré-seleção. O território deixa de ser lugar e vira filtro. A rua deixa de ser pública e vira trilha de dados. Não se trata mais de uma cidade com desigualdade — mas de uma cidade construída para torná-la invisível, automatizada, eliminada por inferência.
A ideologia por trás dessas cidades não é apenas higienista: é anti-humana. Ao negar o conflito, a multiplicidade, o ruído e o acaso, elas negam o que há de político e vital na experiência urbana. Ao eliminar o pobre, o doente, o errático, o não performático, elas reafirmam um projeto histórico das elites: viver longe, acima e além da sociedade — blindados por concreto, cercados por código, protegidos por predição.
O dispositivo de filtragem: identidade digital, IA, biometria e scoring social.
Nenhuma cidade eugenista pode funcionar apenas com muros físicos. O que garante sua eficácia é o que Michel Foucault chamaria de “arquitetura invisível do poder” — o dispositivo. Nas novas urbes programadas pelas elites tecnolibertárias, esse dispositivo é composto por inteligência artificial, identidade digital, biometria e sistemas de reputação automatizada, que atuam como instrumentos de triagem contínua da vida. O que está em jogo não é apenas o direito de ir e vir, mas o próprio direito de ser considerado alguém.
A identidade digital soberana, cada vez mais promovida por agências multilaterais e pelas próprias Big Techs, é vendida como uma ferramenta de inclusão. Mas na prática, ela inaugura um novo regime de controle: um passaporte biométrico universal que integra CPF, dados genéticos, comportamento de consumo, histórico escolar, informações de saúde, conexões sociais e até padrões emocionais. Quem não está registrado, não existe. Quem não corresponde ao modelo ideal, é gradualmente despriorizado, preterido, invisibilizado.
Associada à identidade digital está a infraestrutura de scoring social, onde algoritmos decidem se um indivíduo é confiável, eficiente, educável, empregável, financiável, saudável ou aceitável. Esses scores — gerados a partir de cruzamentos entre bancos de dados públicos e privados — são usados por seguradoras, sistemas de transporte, instituições educacionais, programas sociais e recrutadores corporativos. Em cidades como Shenzhen, Nova York, Amsterdã ou São Paulo, essa filtragem já está em curso — embora raramente seja anunciada.
O que define o valor de um indivíduo, nesse modelo, não é seu histórico de lutas, vínculos afetivos ou capacidade de transformação social, mas sim sua adequação algorítmica aos padrões de eficiência e previsibilidade definidos pelas elites. Trata-se de uma ontologia estatística da vida, onde tudo o que não pode ser modelado, simulado ou monetizado é considerado erro — e, portanto descartável.
A biometria emocional, por sua vez, expande ainda mais essa lógica de controle. Câmeras que analisam microexpressões, sensores que captam variações de temperatura facial, softwares que inferem humor por entonação de voz: tudo isso é integrado a sistemas de vigilância que classificam sujeitos por “potencial de risco” ou “predisposição ao conflito”. O julgamento é silencioso, o veredito é automático, e o direito à contestação simplesmente não existe.
Esse aparato de filtragem — que inclui desde os “polygenic risk scores” em embriões até o “social scoring” em trabalhadores — realiza o sonho das elites: não é preciso mais reprimir, intervir ou educar. Basta selecionar previamente quem merece entrar no circuito da vida plena. É o eugenismo sem coerção explícita, sem discurso racial aberto, sem tribunais: um eugenismo por inferência, automatizado em camadas silenciosas de código, protocolo e Machine Learning.
Em regimes democráticos, a cidadania é direito universal. No regime da filtragem algorítmica, ela se torna permissão condicional, ativada por desempenho. O que se apaga, nesse processo, é o sujeito histórico — substituído por um perfil de risco, um conjunto de padrões, uma métrica de valor.
Mas o aspecto mais perverso desse dispositivo não é sua brutalidade, e sim sua aparente neutralidade. Por operar via dados, ele simula imparcialidade. Por usar estatísticas, ele parece técnico. Por ser implementado por startups e não por exércitos, ele passa despercebido. E assim, a nova exclusão se naturaliza: quem não tem acesso foi “mal pontuado”; quem não foi contratado “não encaixou”; quem não entrou “não estava compatível”. Ninguém é culpado. Ninguém é responsabilizado. Todos os corpos indesejados são simplesmente otimizados para o esquecimento.
O laboratório da reprodução: a biotecnologia da supremacia.
Se o dispositivo de filtragem algorítmica define quem pode permanecer, o novo campo da biotecnologia reprodutiva quer determinar quem deve nascer. Aqui, a engenharia social e a engenharia genética se encontram sob o mesmo princípio eugenista: o de que é possível, desejável — e agora financeiramente viável — selecionar os seres humanos “melhores”, eliminando o acaso, o desvio e a diversidade como defeitos de fábrica.
A elite do Vale do Silício, obcecada pela longevidade, pela performance e pela “melhoria da espécie”, vem investindo massivamente em tecnologias que visam transformar a reprodução humana em um processo de curadoria algorítmica. Não se trata mais de apoiar famílias ou garantir acesso à saúde reprodutiva — trata-se de transformar a procriação em plataforma, com modelos preditivos que escolhem quais embriões merecem vir ao mundo.
Startups como Orchid Health e Genomic Prediction oferecem serviços de fertilização in vitro com seleção embrionária baseada em polygenic risk scores (PRS) — algoritmos que estimam a propensão de um embrião desenvolver doenças crônicas, distúrbios cognitivos, ou de apresentar desempenho abaixo do desejável em traços como QI e estabilidade emocional. Os pais não estão apenas escolhendo o nome ou o sexo da criança — estão sendo incentivados a descartar embriões considerados inferiores estatisticamente.
A ideia de “procreative beneficence” — isto é, o suposto dever moral dos pais de escolher o “melhor embrião possível” — vem sendo defendida por setores da bioética neoliberal como uma atualização benigna da eugenia. Mas essa moral é profundamente perversa: converte a vida humana em variável de performance, legitima a exclusão pré-natal e abre caminho para a criação de uma elite genética otimizada, com acesso a tratamentos, filtros e oportunidades que reforçam a desigualdade desde o zigoto.
Não por acaso, esse tipo de tecnologia tem sido financiado por os mesmos bilionários que estão fundando cidades privadas e laboratórios de IA. Peter Thiel, Marc Andreessen, Sam Altman, Elon Musk e outros vêm investindo em empresas de longevidade, criopreservação de gametas, surrogacy de luxo, biologia sintética e bancos de genoma. Não se trata apenas de mercado — trata-se de poder. Poder sobre o tempo, sobre o corpo e sobre a reprodução da própria elite.
Esse novo biocapitalismo da fertilidade está reconfigurando as estruturas da família, do afeto e da transmissão geracional. O filho se torna um produto com garantia estatística. A gestação é terceirizada. O material genético é triado, embalado e transportado como investimento. E a prole das elites passa a ser programada com base em modelos de sucesso e produtividade — reforçando um darwinismo de laboratório, onde só sobrevive quem é capaz de escalar no mercado genético.
Esse projeto não visa curar a doença — visa remover os que poderiam tê-la. Não quer garantir diversidade — quer domar a variabilidade. Não propõe democratizar o acesso à reprodução — propõe hierarquizar quem pode gerar e ser gerado.
É o mesmo princípio que orienta a construção das cidades privadas, a filtragem por IA e o desmonte do Estado: o de que a sociedade deve ser otimizada como um sistema fechado, habitado apenas por quem corresponde aos padrões definidos pelas elites cognitivas e financeiras.
A reprodução, nesse novo paradigma, deixa de ser um evento biológico ou social — e passa a ser uma etapa do design estratégico da elite tecnocrática. Quem nasce, quando nasce, com quais atributos e sob quais protocolos — tudo passa a ser definido por capital, código e controle.
E quem foge a esse padrão? Ou não nasce, ou nasce para a margem. A margem do genoma, a margem do score, a margem do futuro.
O poder por trás do código: fundos, Big Techs, think tanks.
Nada disso — nem cidades privadas, nem reprodução seletiva, nem triagem algorítmica — acontece espontaneamente. O novo projeto tecnolibertário e eugenista está sendo cuidadosamente financiado, promovido e articulado por uma teia global de fundos de investimento, corporações tecnológicas e institutos ideológicos, que operam como a nova infraestrutura do poder supranacional. Não elegem presidentes — moldam futuros. Não governam territórios — redesenham ontologias.
Esse poder é descentralizado na forma, mas absolutamente coeso no conteúdo. A elite da tecnologia, das finanças e da biotecnologia compartilha um mesmo objetivo estratégico: substituir os mecanismos da democracia por mecanismos de cálculo, os sistemas públicos por sistemas proprietários, os direitos por contratos, os cidadãos por perfis. Eles não querem mais disputar a hegemonia dentro do Estado — querem substituí-lo por plataformas geridas como carteiras de ativos.
O Founders Fund, criado por Peter Thiel, é talvez o exemplo mais explícito. Seu portfólio inclui empresas de inteligência artificial, biotecnologia reprodutiva, cidades privadas, segurança digital e vigilância preditiva. Thiel não oculta sua visão: ele quer uma sociedade que funcione como uma empresa, com decisões centralizadas, competição darwinista e exclusão dos ineficientes. Ele já declarou que “a liberdade não é compatível com o voto de todos”.
Outro ator-chave é o fundo Andreessen Horowitz (A16Z), que investe simultaneamente em ferramentas de IA generativa, infraestrutura cripto para governança autônoma e startups de fertilidade premium. A lógica de suas apostas é clara: o futuro será governado por dados, tokens, contratos inteligentes e genética de mercado. Eles querem estar em todos os pontos da cadeia: desde o embrião até o algoritmo de crédito que julgará sua vida adulta.
SoftBank Vision Fund, por sua vez, injeta bilhões em projetos de smart cities, automação urbana e plataformas de controle comportamental. Seus investimentos não apenas financiam tecnologias — definem como os corpos circularão, como os dados serão coletados e como as decisões públicas serão automatizadas.
Paralelamente, think tanks e institutos de fachada — como o Effective Altruism, o Center for Long-Term Resilience, o Cato Institute ou o Manhattan Institute — fornecem a roupagem moral e intelectual para o projeto. Disfarçados de centros de pesquisa, eles naturalizam a desigualdade como “eficiência”, transformam políticas de exclusão em “otimizações” e propõem uma ética do cálculo que reduz vidas a custos-benefícios. Muitos desses espaços são diretamente financiados pelas mesmas Big Techs que operam os dispositivos de vigilância global.
E há ainda a infraestrutura técnica: Microsoft, Amazon AWS, Google Cloud, Palantir. São elas que hospedam os dados, fornecem os algoritmos, vendem as APIs de predição e constroem os dashboards com os quais gestores, prefeituras e governos tomam decisões automatizadas. Essas empresas não apenas participam do processo — elas o regulam, o aceleram e o tornam inescapável.
Esse arranjo não é apenas econômico. Ele representa o surgimento de um novo modo de dominação, no qual o Estado se torna subsidiário de plataformas, e as decisões fundamentais sobre a vida humana são tomadas por conselhos corporativos globais, baseados em métricas de rentabilidade e governança algorítmica.
Estamos diante de uma espécie de G20 da tecnocracia eugenista, cujas decisões impactam bilhões de pessoas que nunca ouviram falar deles, que nunca votaram neles e que jamais terão chance de participar de seus projetos — a não ser como exceção estatística, externalidade ou erro de previsão.
É esse o poder que constrói o mundo de amanhã. Um mundo sem política, sem povo, sem conflito — mas com muitos dados, muitas métricas, muitos filtros. E nenhuma justiça.
O desaparecimento da política e o triunfo do algoritmo.
A política é, por definição, o campo da incerteza, da disputa, do dissenso. Ela existe porque os seres humanos são plurais, imperfeitos, imprevisíveis — e porque a convivência entre diferentes requer negociação, escuta, lentidão e até contradição. É justamente essa complexidade que as elites tecnolibertárias querem suprimir. Para elas, o que chamamos de política é ineficiência, ruído, instabilidade. E por isso, deve ser substituída por aquilo que consideram superior: a racionalidade algorítmica.
O projeto das cidades inteligentes privadas, da gestão por IA e dos territórios autônomos baseados em blockchain não é apenas técnico. Ele é, acima de tudo, ontológico: propõe uma nova definição de humanidade, de sociedade, de pertencimento — e de governo. Nesse modelo, não há mais lugar para a política como esfera pública de decisão. O que se propõe é uma substituição da política por sistemas autônomos, automatizados, padronizados e otimizados para operar sem conflito.
Na prática, isso significa o seguinte: em vez de orçamento participativo, temos plataformas que alocam recursos com base em “dados objetivos”. Em vez de conselhos populares, temos painéis de controle geridos por IA. Em vez de tribunais e jurados, temos sistemas preditivos que avaliam risco com base em históricos. Em vez de processo político, temos código, ranking, métrica. A política vira interface. O governo vira um produto. E o cidadão vira usuário.
Essa lógica elimina a tensão fundadora da democracia: a tensão entre interesses contraditórios, entre classes em disputa, entre visões inconciliáveis do mundo. A IA não negocia — ela calcula. O algoritmo não escuta — ele corrige. A plataforma não escuta a rua — ela coleta dados passivos e os transforma em comando. O resultado é uma democracia de superfície, onde as decisões já foram tomadas antes que o debate comece.
Mas o problema não é apenas a perda da política como prática. É a emergência de uma racionalidade tecnocrática totalizante, onde tudo o que não pode ser modelado matematicamente é tratado como problema. A dor não quantificada vira histeria. A indignação que não cabe no dashboard vira radicalismo. O sujeito que resiste à modelagem vira ruído.
Esse apagamento da política serve a um projeto maior: o da desmobilização social por substituição técnica. Se tudo é automatizado, não há mais por que organizar, protestar, deliberar. O contrato substitui a Constituição. A nota reputacional substitui o direito. O algoritmo substitui o processo legislativo. A única política possível nesse novo mundo é a política da adequação: ser o tipo de pessoa que o sistema gosta.
E quem define esse gosto? Não é a comunidade, nem o coletivo. São as empresas que constroem os sistemas. São os investidores que definem os KPIs. São os engenheiros de produto que determinam os limites do possível. É a elite do capital e do código que decide quem tem voz — e quem será silenciado por despriorização algorítmica.
Essa é a vitória do algoritmo sobre a política. Uma vitória que não vem com tanques, nem com censura formal — mas com modelos de previsão que silenciam, com interfaces que disciplinam, com contratos que anulam o dissenso pela lógica do uso.
O fascismo 4.0 não precisa mais proibir. Basta que ele filtre. E ele filtra por design.
As vítimas do novo mundo: nós.
Na utopia dos bilionários, o futuro não será para todos — será apenas para os adequados. Serão aceitos os que performam sem fricção, os que nasceram com os genes “certos”, os que habitam corpos rastreáveis, previsíveis, eficientes. Os demais — nós — seremos excluídos sem barulho, sem decreto, sem julgamento: seremos apenas incompatíveis.
As vítimas desse projeto já existem — mas ainda não foram todas nomeadas. São os trabalhadores cuja força de trabalho não interessa mais à automação, os estudantes que não se adaptam aos modelos adaptativos de ensino por IA, as mães solteiras que não conseguem manter a produtividade esperada pelo algoritmo de RH, os corpos com deficiência que não se encaixam no design otimizado das cidades inteligentes, os racializados que acumulam penalizações invisíveis por vieses algorítmicos não corrigidos.
São os idosos, cujo tempo já não é valorizado pelo capital. São os jovens periféricos, constantemente classificados como ameaça por sistemas de vigilância preditiva. São as mulheres não reprodutivas, os corpos trans, os indocumentados, os que não produzem dados monetizáveis. São todos aqueles que não cabem no dashboard da elite tecnocrática.
Esse novo mundo não será violento da forma tradicional. Ele não colocará tanques nas ruas nem disparará sirenes. Ele será frio, silencioso, asséptico. Os indesejáveis não serão presos — serão desconectados. Os pobres não serão deportados — serão despriorizados. Os desviantes não serão punidos — serão omitidos das bases de dados que definem quem existe.
Essa exclusão não é residual. Ela é projetada. As cidades eugenistas não têm espaço para o acaso. Seus algoritmos não toleram desvio. Suas infraestruturas não comportam lentidão. Elas são desenhadas para funcionar como ecossistemas higienizados, onde tudo flui — menos a diferença, menos o conflito, menos a dissonância.
E o mais perverso: essas vítimas serão responsabilizadas por sua própria exclusão. Afinal, o sistema apenas calculou. Se alguém foi rejeitado, é porque não teve “bom comportamento”. Se não conseguiu um benefício, é porque o score era insuficiente. Se o filho foi preterido, é porque o algoritmo viu algo no seu genoma. A lógica meritocrática do ultraliberalismo digital transforma toda injustiça em autodeficiência.
Essa máquina não oprime — ela recalcula. Ela não pune — ela reclassifica. Ela não precisa matar — ela apenas invisibiliza. A morte social dos indesejáveis será processada em silêncio, com interface limpa, relatórios de impacto, e um botão verde escrito “eficiência aumentada”.
Mas a verdade permanece: as vítimas desse novo mundo somos nós. Nós que não temos uma startup para chamar de nossa. Nós que não podemos congelar embriões premium. Nós que não fomos investidos por um fundo. Nós que resistimos a viver como produto. Nós que desejamos a cidade como lugar do encontro — e não da triagem.
O mundo que eles estão construindo não é apenas um futuro alternativo. É uma tentativa de nos excluir do futuro enquanto tal. De nos impedir de existir em qualquer horizonte em que a vida ainda tenha conflito, corpo, política, cuidado, tempo e contradição.
E é por isso que a luta é agora.
Fricção é resistência: como romper com o ethos eugenista.
Eles querem um mundo sem fricções. Sem conflito, sem ruído, sem pobres, sem velhos, sem ineficiência, sem política. Um mundo onde tudo funcione como o Excel de uma venture capital: métrico, escalável, previsível, “limpo”. Mas a fricção — essa que eles tentam deletar — é exatamente o que nos torna humanos. E mais do que isso: é o que pode nos salvar.
A fricção é o espaço da pausa. É a dúvida antes do clique, o tropeço antes da certeza, a discordância que impede o automatismo. É o tempo que resiste ao tempo do capital. É o corpo que insiste em respirar, mesmo quando o algoritmo já decidiu que ele é inútil.
Romper com o ethos eugenista não é apenas recusar suas ferramentas. É interromper sua lógica. É dizer não à ideia de que eficiência é um valor em si, de que performance define valor humano, de que nascer pode ser um privilégio reservado aos adequados.
Para isso, precisamos recuperar e reinventar a política — não como gestão, mas como confronto, como invenção coletiva, como prática do comum. Precisamos defender a cidade como espaço de encontro, de erro, de conflito legítimo. Precisamos reverter o sequestro do futuro, que hoje está nas mãos de fundos especulativos que decidem quem viverá, onde, como e por quanto tempo.
Isso passa por reconstruir um campo ético-material da resistência, que una os trabalhadores da tecnologia com os precarizados do cuidado, os estudantes desajustados com os corpos racializados, os pobres urbanos com os agricultores expulsos por cidades inteligentes que prometem “sustentabilidade” sem gente. A aliança contra o eugenismo não será ideológica — será existencial.
Precisamos denunciar cada termo técnico que disfarça violência: “smart”, “eficiência”, “otimização”, “comportamento de risco”, “melhoramento genético”, “governança algorítmica”. Cada uma dessas expressões serve para naturalizar um projeto de extermínio social sem tanques nem censura — mas com dashboards, whitepapers e algoritmos que matam pela ausência.
É hora de construir trincheiras cognitivas. Educação crítica em massa. Letramento algorítmico. Contra-informação. Frentes amplas de resistência tecnopolítica. Sindicatos de dados. Plataformas públicas de código aberto. Ocupações urbanas digitais. Intervenções nos imaginários. Reencantamento do comum.
Porque onde eles enxergam ruído, nós veremos potência. Onde veem desvio, veremos reinvenção. Onde veem fricção, veremos vida.
A batalha não será fácil. Eles têm o código, o capital e a antecipação. Mas nós temos a história, a dor e a linguagem. E isso ainda importa.
Conclusão – Contra o futuro deles, a urgência do nosso presente.
Este não é um texto sobre o futuro. É um alerta sobre o presente em curso — e sobre o apagamento planejado de milhões de vidas pela máquina eugenista que já opera entre nós. Já não se trata de prever o que pode vir, mas de entender o que já está sendo construído, implementado e testado: uma nova ordem mundial não proclamada, não deliberada e não eleita, mas financiada, programada e silenciosamente imposta.
Cidades privadas, algoritmos de triagem, contratos que substituem direitos, reprodução seletiva, plataformas que governam sem política, bilionários que legislam com tokens e dados — tudo isso não é ficção científica. É engenharia social aplicada. É fascismo digital de alta performance. É apartheid cognitivo travestido de inovação. É o velho eugenismo dos campos de exclusão, agora refeito em linguagem Python e pitch de investidor.
Esse projeto não é neutro. Não é inevitável. Não é técnico. É profundamente ideológico — e incompatível com qualquer ideia de humanidade coletiva. Sua linguagem suave, seus slogans de “eficiência”, sua estética minimalista, sua lógica de plataforma: tudo isso serve para mascarar o fato de que, no centro de seu funcionamento, há uma máquina de exclusão ontológica que decide quem importa e quem será deletado da história.
É por isso que este artigo é também um chamado: à resistência crítica, à construção de frentes populares tecnopolíticas, à insurgência epistemológica contra a tecnocracia que quer nos convencer de que desigualdade é falha de performance, pobreza é dado natural, e privilégio é resultado do mérito.
Contra o mundo dos bilionários, queremos o mundo dos comuns. Contra a utopia deles, que prevê a nossa ausência, afirmamos a urgência de um presente com fricção, com política, com corpos errantes, com vida real. Um presente onde o dissenso seja força, onde a vulnerabilidade seja reconhecida como potência de cuidado, e onde o futuro não seja código fechado, mas horizonte aberto.
Eles querem um mundo limpo. Nós queremos um mundo justo.
Eles querem eficiência. Nós queremos existir.
Eles querem cidades sem pobres. Nós queremos povos com cidades.
E por isso lutamos. Porque há muita gente no mundo — e o mundo é de todas elas.
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
Foto: Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/bem-vindo-ao-apartheid-digital