Como nos transformamos em cobaia econômica enquanto a Ásia rejeitava as receitas de Washington.
Você sabia que o Brasil se tornou o “menino prodígio” do FMI nos anos 90?
Enquanto seguíamos à risca todas as receitas do Consenso de Washington – privatização acelerada, liberalização financeira, abertura comercial indiscriminada e Estado mínimo – os países asiáticos olharam para as mesmas propostas e disseram: “não, obrigado”. Eles mantiveram pensamento próprio e trajetórias nacionais baseadas em suas realidades.
O resultado? Viramos laboratório perfeito do neoliberalismo, uma verdadeira cobaia econômica global. E hoje temos exatamente a mesma renda per capita que tínhamos em 1995, enquanto a Ásia se transformou na fábrica e no centro tecnológico do mundo.
Hoje vou mostrar exatamente como nos transformamos em cobaia de experimentos econômicos externos, enquanto países asiáticos rejeitaram a colonização intelectual e construíram seus próprios caminhos.
Vamos aos fatos.
Receita de Washington #1: “Privatizem tudo”. Brasil obedeceu, Ásia ignorou.
O primeiro mandamento neoliberal era simples: Estado não deve ter empresas, o mercado resolve tudo.
O Brasil abraçou essa receita como verdade absoluta. Privatizamos 70 empresas federais e 55 estaduais por apenas 105 bilhões de dólares – um valor irrisório considerando o câmbio de 1:1 da época. Vendemos empresas estratégicas que funcionavam como provedoras de externalidades positivas: ofereciam insumos em condições adequadas, faziam investimentos autônomos em infraestrutura, e começavam a se constituir em centros de inovação tecnológica.
A tragédia maior? Desmontamos sistematicamente nossos centros de P&D. O Centro de Pesquisas da Telebras, que desenvolvia tecnologia de ponta, foi praticamente desativado. As empresas “exportaram” seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento. Capacidade tecnológica acumulada em décadas simplesmente desapareceu.
Os asiáticos fizeram exatamente o contrário – rejeitaram completamente essa receita:
- China: Mantém hoje 95-100 empresas estatais controlando setores estratégicos, criando o “socialismo de mercado”
- Coreia do Sul: O Estado criou campeões como POSCO (siderúrgica estatal) antes de qualquer liberalização
- Singapura: Usa fundos soberanos (Temasek, GIC) para criar e financiar gigantes nacionais
Resultado da nossa obediência às receitas: produzimos hoje praticamente o mesmo aço de 20 anos atrás. Resultado da desobediência asiática: criaram multinacionais que dominam mercados globais.
Receita de Washington #2: “Abram a economia imediatamente”. Brasil cumpriu, Ásia desobedeceu.
A segunda receita era a “terapia de choque”: liberalizem tudo de uma vez, o mercado livre fará a alocação eficiente.
Como bons alunos aplicados, fizemos uma abertura comercial violenta com câmbio valorizado e juros altos. O resultado? Desaparecimento de elos inteiros das cadeias produtivas, perda de valor agregado, elevação dos coeficientes de importação sem ganhos nas exportações. Para completar o desastre, nos afastamos das cadeias produtivas globais justo no momento em que elas se consolidavam.
O investimento estrangeiro que tanto comemorávamos veio principalmente para comprar nossas empresas no “festival de privatizações”, não para construir nova capacidade produtiva. Fomos literalmente vendidos.
A Ásia rejeitou essa receita e fez abertura seletiva e estratégica:
- China: Criou zonas econômicas especiais, obrigou joint ventures, transferência tecnológica compulsória
- Coreia: Protecionismo seletivo para indústrias nascentes, abertura gradual apenas após desenvolver competitividade
- Singapura: Abertura direcionada para se tornar hub regional, não submissão cega ao mercado
Resultado da nossa obediência: viramos exportadores de commodities. Resultado da desobediência asiática: China saltou de 2% para 10,4% das exportações mundiais, tornando-se maior exportador global.
Receita de Washington #3: “Foquem apenas na estabilização”. Brasil internalizou, Ásia rejeitou.
A terceira receita era psicológica: países em desenvolvimento devem se contentar com estabilidade de preços, desenvolvimento vem “naturalmente” depois.
O trauma da hiperinflação nos fez abraçar essa receita como dogma. Substituímos literalmente a ideia de projeto nacional por obsessão com metas de inflação. Nossa única ambição passou a ser “não ter inflação”. Ficamos 30 anos aplicando sucessivos planos de estabilização enquanto o mundo avançava na fronteira tecnológica.
Como bem disse nosso colega Bresser-Pereira: ficamos “enxugando gelo” – fazemos política industrial de um lado e damos choque de juros do outro, deixando o câmbio super apreciado. Uma política macroeconômica que anula qualquer tentativa de desenvolvimento.
Os asiáticos rejeitaram essa receita de conformismo:
- China: Mesmo enfrentando 25% de inflação em 1988-89, nunca perdeu foco no desenvolvimento de longo prazo
- Coreia: Combinou estabilidade com estratégia agressiva de educação, tecnologia e exportações
- Singapura: Usou estabilidade como base para projetos ambiciosos, não como fim em si mesma
Resultado da nossa conformidade: mesma renda per capita de 1995. Resultado da ambição asiática: economias multiplicadas por 10, 15, 18 vezes.
Receita de Washington #4: “Confiem nos especialistas externos”. Brasil acreditou, Ásia desconfiou.
A quarta receita era a mais perigosa: países periféricos não sabem se desenvolver, precisam seguir modelos prontos de países centrais.
Viramos o laboratório perfeito dessa experiência. Importamos consultores, seguimos cartilhas do FMI, replicamos políticas testadas em outros lugares. Terceirizamos nosso pensamento estratégico. O próprio Gustavo Franco, principal arquiteto das privatizações, chegou a dizer que vender estatais para estrangeiros foi uma “jogada esperta” porque entregamos “sucatas” para eles.
A tragédia é que não eram sucatas – eram ativos estratégicos funcionando como coordenadores da economia nacional. E os “experts” sabiam disso.
A Ásia desenvolveu profunda desconfiança dessa colonização intelectual:
- China: Manteve centros de pensamento próprios, rejeitou “terapia de choque” mesmo sob pressão
- Coreia: Desenvolveu modelo próprio baseado em chaebols e Estado desenvolvimentista
- Singapura: Criou estratégias únicas combinando elementos diversos sem seguir cartilhas
Os asiáticos entenderam uma verdade fundamental: quem oferece receita pronta tem seus próprios interesses, não os seus.
Receita de Washington #5: “O gotejamento funciona”. Brasil esperou, Ásia não acreditou.
A quinta receita prometia que benefícios no topo da pirâmide “gotejam” para a base naturalmente.
Acreditamos piamente nessa fantasia. Achamos que enriquecendo banqueiros e compradores de estatais, os benefícios chegariam aos trabalhadores. Focamos em políticas sociais “focalizadas” enquanto desmontávamos a estrutura produtiva que realmente gera renda e emprego de qualidade.
Trinta anos depois: a desigualdade continua brutal, a pobreza persiste, e ainda por cima perdemos densidade industrial.
A Ásia nunca comprou essa conversa:
- China: Combinou crescimento econômico com redução direta da pobreza, tirando 800 milhões da miséria
- Coreia: Priorizou educação universal e industrialização que gera empregos de qualidade em massa
- Singapura: Foco em políticas que criam oportunidades reais, não apenas transferências
Resultado: eles construíram sociedades prósperas de verdade, não apenas “estáveis”.
Como analisamos em nosso curso sobre o desenvolvimento chinês, as reformas de 1978 priorizaram exatamente isso – criar capacidades produtivas que gerassem renda diretamente para milhões de pessoas, não esperar que benefícios eventualmente “gotejassem” do topo.
A grande ironia: as cobaias falharam, os rebeldes triunfaram.
Hoje a ironia é gritante: todos os países que serviram de laboratório para o neoliberalismo – Brasil, Argentina, Rússia, México – estagnaram ou entraram em sucessivas crises.
Enquanto isso, os países que rejeitaram as receitas de Washington – China, Índia, Coreia, Vietnã – se tornaram as economias mais dinâmicas do mundo.
A China virou a maior economia mundial. A Coreia domina tecnologia de ponta. Singapura é hub financeiro global. A Índia desponta como potência de serviços e manufatura.
E nós, as cobaias perfeitas? Continuamos com a mesma renda per capita de três décadas atrás, esperando que algum novo “plano de estabilização” nos salve.
O preço da submissão intelectual.
A verdadeira tragédia não foi econômica – foi psicológica.
Perdemos a capacidade de pensar estratégias próprias. Naturalizamos a ideia de que somos país periférico condenado a seguir receitas externas. Abandonamos completamente a perspectiva de projeto nacional.
Os asiáticos mantiveram algo que perdemos: orgulho intelectual. A coragem de dizer “nossa realidade é diferente, vamos construir nosso próprio caminho”.
Eles provaram que quando há pensamento próprio, ambição nacional e recusa à colonização intelectual, há desenvolvimento real.
A pergunta que fica é: quando vamos parar de ser laboratório de experimentos alheios e começar a ser protagonistas da nossa própria história?
POR Paulo Gala / Graduado em Economia pela FEA-USP | Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo | Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY | Autor com +10,000 cópias de livros vendidas | Geriu carteiras de +R$ 3,000,000,000 | Professor na FGV/SP há 20 anos.
FONTE: https://open.substack.com/pub/paulogala/p/brasil-laboratorio-neoliberalismo-asia-rejeitou-washington?utm_campaign=post&utm_medium=web