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Breves Observações sobre Alguns Conflitos

Trump resolveu “abrir o jogo” e afirmar que as forças dos EUA e a CIA deverão fazer “operações terrestres” para conter o “narcotráfico”.

Venezuela

Que os governos dos EUA querem derrubar o regime de Maduro só é novidade para os ignorantes.

Trata-se de uma pauta geopolítica que está em vigor, com intensidade variada, há pelo menos 15 anos.

Quem não se lembra do patético Juan Guaidó? Quem não se lembra das sinistras “guarimbas”, incentivadas, ente outros, por María Corina Machado, e que provocaram a morte de dezenas de venezuelanos?

Quem não sabe que que a Venezuela está submetida a, ao menos, 542 diferentes sanções econômicas pelos EUA, pelo Canadá, pela União Europeia etc.?

Agora, contudo, Trump resolveu “abrir o jogo” e afirmar que as forças dos EUA e a CIA deverão fazer “operações terrestres” para conter o “narcotráfico” supostamente vindo da Venezuela e derrubar Maduro, que seria o chefe de um grande cartel de drogas, o Cartel de Los Soles.

Ora, o Cartel de Los Soles, que seria composto por militares e autoridades venezuelanas (inclusive Maduro) é um mito criado, ente outras fontes, por um livreco publicado em 2014, intitulado “Chavismo, Narcotráfico y Militares”, escrito por um jornalista antichavista chamado Héctor Landaeta, o qual teria entrevistado, nessa obra, a Juíza Antichavista Mildred Camero. Camero inventou que o narcotráfico na Venezuela era tocado por militares bolivarianos, daí o Cartel de Los Soles, pois o símbolo do Sol é um símbolo do oficialato bolivariano.

Porém, as instituições bem-informadas sabem perfeitamente que isso é falso.

Mapa sobre Venezuela
Mapa sobre Venezuela(Photo: Divulgação)Divulgação

Esse Mapa, feito pelo United Nations Office on Drugs and Crime (UNODOC) e que consta no seu Relatório de 2025, mostra como a Venezuela participa apenas tangencialmente do tráfico de drogas. Venezuela é somente rota, que movimenta apenas cerca de 7% da cocaína distribuída. A maioria da cocaína, bem como de outras drogas, chega aos EUA via Colômbia, Peru, Equador, México etc.

Mesmo assim, os EUA dobraram a recompensa por informações que levem à prisão do presidente venezuelano Nicolás Maduro para US$ 50 milhões (£ 37,2 milhões), acusando-o de ser “um dos maiores narcotraficantes do mundo”, o que algo ridículo.

A afirmação pública de Trump sobre as operações que os EUA pretenderiam fazer contra a Venezuela são também um tanto ridículas.

Operações desse tipo nunca são anunciadas ao público, por motivos óbvios. Quando são feitas, são realizadas de modo surpreendente e em absoluto sigilo.

Isso não quer dizer que elas não serão realizadas.

Duvidamos, contudo, de uma invasão terrestre tout-court, que seria muito custosa e arriscada.

Mas operações de sabotagem em infraestruturas críticas e bombardeios seletivos, visando criar pânico e caos, são perfeitamente factíveis, e não são muito caros.

Marco Rubio, que odeia toda a esquerda latino-americana, deve estar convencendo Trump a fazê-lo.

Duvidamos, porém, que isso venha a derrubar Maduro, que tem forças preparadas e milícias populares armadas.

Uma guerra aberta contra a Venezuela, com ampla ocupação territorial, parece estar fora de cogitação.

Maduro conta com o apoio decidido da Rússia e da China e boa parte do Maga não quer saber de novas guerras custosas e longas.

Não obstante, em se tratando do mercurial Trump, previsões são difíceis.

Gaza e Palestina

O cessar-fogo vai se sustentar e progredir?

Pouco provável, infelizmente.

Só haverá paz duradoura e estável em Gaza e na Palestina como um todo, quando for implantada a “solução dos Dois Estados”, determinada pela ONU desde 1948.

O governo Netanyahu rejeita totalmente essa hipótese. Quer, na realidade, criar o “Grande Israel” e promover uma limpeza étnica tanto em Gaza quanto na Cisjordânia. Infelizmente, boa parte da população israelense apoia essa agenda, que inviabiliza qualquer paz sólida e duradoura.

Agora mesmo, Netanyahu já está procurando desculpas para voltar a atacar Gaza, alegando que o Hamas precisa devolver os corpos restantes dos reféns. Ora, há milhares de corpos debaixo dos escombros de Gaza. Achar os corpos dos reféns e identificá-los em meio a esse caos macabro será muito difícil, sem ajuda qualificada e técnica externa.

Também é pouco provável que o Hamas venha a se desarmar efetivamente com trapas israelenses ainda em Gaza.

E nem o Hamas e nem os palestinos de um modo geral aceitarão, por muito tempo, que o destino de Gaza seja decidido por Israel e pelo EUA, sem que eles tenham qualquer participação nas decisões que definirão suas vidas.

É provável que as coisas se mantenham relativamente calmas por um tempo, por pressão de Trump, que jogou seu prestígio e sua imagem nesse cessar-fogo. Mas os EUA jamais romperão com Israel ou o obrigarão a se desviar de sua agenda de limpeza étnica do Grande Israel. Esse é o problema.

Os antecedentes não são bons.

Todas as intervenções feitas pelos EUA e o Ocidente no Oriente Médio e no Magreb resultaram em mortes, sofrimento, fome e caos.

Pioraram muito a situação dos países que foram objeto das garras estúpidas e destrutivas do Império.

Foi assim no Iraq, que até hoje não se recuperou do caos trazido pela intervenção. Foi assim na Líbia, que se transformou em um território anômico dominado por gangs diversas. Foi assim no Afeganistão, que voltou às mãos do Talebã, após mais de duas décadas de dura intervenção imperial.

É assim na Síria, que caiu nas mãos de membros da Al-Qaeda.

Muito provavelmente, espero estar errado, acontecerá a mesma coisa em Gaza.

O Hamas, goste-se ou não do grupo, era o governo, o Estado em Gaza.

A simples eliminação do Hamas, como querem Netanyahu e Trump, sem uma legítima força palestina que o substitua, vai transformar Gaza em território disputado por grupos diversos, em anomia violenta.

Uma força de paz internacional poderá moderar conflitos, durante algum tempo, mas jamais será uma solução estável e eficiente.

E sem um modus-vivendi entre EUA, Israel e o Irã, a situação só tende a se complicar.

Netanyahu só aceita pressão de um único país: os EUA, de quem dependem. Despreza todos os demais. Os EUA poderiam, se quisessem, impor uma solução próxima à dos Dois Estados. Mas não querem: a influência israelense no Aparelho de Estado estadunidense é muito grande.

Já os palestinos.,,,,, Os palestinos só têm os seus mortos e a invisibilidade dos que estão condenados ao extermínio.

Ucrânia

O aviso parece não ter chegado ao Zelenski e à Europa, mas essa guerra, na prática, acabou.

A Ucrânia não tem mais reservas humanas para persistir na guerra de atrito contra a Rússia.

Todos os aspectos e fatores do Estado e da sociedade ucranianos — a economia, a opinião pública, as próprias forças armadas — exibem sinais claros e inequívocos de esgotamento crescente.

A mobilização militar, por exemplo, estagnou. Há muitas brigadas subdimensionadas e a deserção nas fileiras é um problema crescente. O incremento do recurso a mercenários, inclusive brasileiros, não resolve a questão.

Segundo a Associated Press, “unidades inteiras estão abandonando seus postos, deixando a linhas defensivas vulneráveis e acelerando as perdas territoriais”. Desde o início do conflito, teriam ocorrido mais de cem mil deserções.

E há uma grande dificuldade para se repor as grandes baixas.

Existe também intensa preocupação, nos círculos de defesa em Kiev, quanto a um colapso ou mesmo a uma desintegração das forças armadas ucranianas, com implicações drásticas para a segurança do país a longo prazo.

Qualquer analista sério sabe, há tempos, que a Ucrânia não tem condições de ganhar essa guerra.

Além disso, a população ucraniana cansou do conflito.

No início da guerra, segundo o Instituto Gallup, 73% dos ucranianos queriam que a guerra continuasse até a “vitória final” da Ucrânia. Apenas 22% queriam que se negociasse uma paz rápida.

Agora, em pesquisa feita há cerca de 2 meses, a situação se inverteu totalmente. Quase 70% dos ucranianos (69%) querem a paz o mais rapidamente possível. Somente 24% continuam a apoiar o esforço de guerra.

Trump, mais sagaz, já percebeu isso e procura se distanciar do conflito, jogando o “abacaxi” para os europeus, que vivem em constante delírio geopolítico francamente paranoico.

Assentados no desvario de uma nova Guerra Fria, tais delírios sustentam que a Rússia, uma “terrível autocracia”, representa “ameaça imperialista” contra toda a Europa e seus valores democráticos.

Tal crença não tem embasamento empírico sólido.

Embora existam ideólogos russos que defendam a necessidade geopolítica de que a Rússia expanda sua influência para o Oeste, como Alexander Dugin, por exemplo, que sonha com a construção de um Império Euroasiático, Putin e o establishment russo têm uma visão bem mais pragmática e racional da posição da Rússia no mundo. O discurso da grande influência de Dugin e de outros ideólogos no Estado russo parece-nos grosseiramente exagerado.

A Rússia está empregando boa parte dos seus recursos econômicos e militares para manter uma guerra de degaste parcial com a Ucrânia. Pretende manter sob seu domínio apenas os 4 oblasts conquistados no Leste da Ucrânia e a Crimeia, que foi reincorporada ao território russo, já em 2014.

Também deseja a celebração de um tratado de paz, envolvendo os EUA, que assegure a neutralidade do território ucraniano.

A Rússia simplesmente não tem condições e nem a vontade de “invadir” e “dominar” a Europa, ou parte dela.

O domínio da União Soviética sobre o Leste Europeu foi consequência direta da Segunda Guerra Mundial. Saliente-se que essa divisão de influências sobre a Europa foi negociada em Yalta, entre Roosevelt e Stálin. Churchill, que se opunha a esse entendimento, foi colocado de escanteio. Foi, portanto uma decisão bilateral entre as duas superpotências da época.

Vivemos, contudo, hoje, uma situação completamente diferente. A Europa superou as grandes vulnerabilidades políticas e econômicas do pós-guerra e a União Soviética colapsou.

Trata-se de correlação forças e circunstância históricas completamente diferentes.

Hoje, a União Europeia, sem a Grã-Bretanha, tem uma economia de US$ 18,6 trilhões. A Rússia, em contraste, tem um PIB de cerca de US$ 2 trilhões. Ou seja, a União Europeia tem um PIB 9 vezes maior que o da Rússia. Ademais, a população europeia, sem a Rússia, é de 650 milhões. Já a Rússia, isolada, tem apenas 144 milhões de habitantes.

Claro está que a Rússia tem notáveis forças armadas e um arsenal nuclear de 5.580 ogivas atômicas, o maior do mundo.

Porém, a Europa, incluindo a Grã-Bretanha, tem cerca de 1,5 milhão de militares na ativa, um número nada desprezível. Além disso, os EUA têm cerca de 100 mil militares estacionados em numerosas bases militares europeias. A Rússia tem cerca de 1 milhão de homens na ativa e cerca de 2 milhões na reserva.

O gasto militar russo ascendeu a US$ 109 bilhões, em 2023. Já os gastos dos membros da Otan foram de US$ 1.341 bilhões. Excluindo os gastos feitos pelos EUA (US$ 908 bilhões), ainda assim sobrariam US$ 433 milhões. Ou seja, os demais membros da Otan, sem os EUA, já gastam cerca de 4 vezes mais que a Rússia com seus militares. O segundo maior orçamento militar do mundo, que fica apenas atrás do EUA, é o da Europa. Não é o da Rússia, nem o da China.

Por conseguinte, achar que a Rússia é um gigante ameaçador e que a Europa e uma região muito desprotegida e desvalida, sem recursos econômicos, tecnológicos e militares é algo que não corresponde aos fatos. A Europa de hoje está muito distante da Europa reduzida a cacos do pós-guerra, quando a Otan foi criada.

Por conseguinte, mesmo nas atuais circunstâncias, uma guerra convencional de alcance parcial entre a Rússia e a Europa, envolvendo a Ucrânia, ainda que sem o envolvimento direto dos EUA, seria um movimento de extremo-risco para Moscou. Mas também, por outro lado, um movimento muito arriscado para a Europa. Se envolver diretamente na Ucrânia, como sugeriu Macron, seria um erro de cálculo monumental.

Além disso, gastar 5 % do PIB em armamentos e atividade militares é uma loucura para a grande maioria dos países da Europa, que passam por dificuldades financeiras e crescentes problemas de estrangulamentos do Estado de Bem-Estar.

Ao contrário do conflito em Gaza, o conflito da Ucrânia tem potencial para se internacionalizar e, pior ainda, se nuclearizar. É uma guerra, portanto, que representa um perigo potencial, porém concreto, para todo o mundo.

Quanto mais dure, maior a probabilidade de um descontrole de consequências imprevisíveis.

As provocações recentes sobre supostas penetrações em espaços aéreos de outros países podem conduzir a um incidente de “falsa bandeira”, o qual intensificaria e expandiria um conflito potencialmente mundial.

Os ucranianos, cuja economia é a mais pobre da Europa e que teve uma queda de 35% do seu PIB, em 2022, não aguentam mais a guerra. Só a Europa insiste em um sacrifício inútil, que impede o desenvolvimento de um país que tem muito potencial de crescimento. A perspectiva de uma guerra de atrito interminável, na qual a Ucrânia continuaria a “sangrar” inutilmente, seria um desastre para todos.

Em vez de investir em guerra, os europeus deveriam investir em paz e em um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável na Ucrânia.

O Sul Global e o Brasil esperam que esse seja o desfecho de um conflito do qual todos estão cansados.

Como já se disse, a pior paz é preferível à “melhor” guerra.

FOTO: The White House

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/breves-observacoes-sobre-alguns-conflitos