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Capitalistas contra o capitalismo

A crise tarifária oferece ao país a justificativa política interna para retomar uma agenda desenvolvimentista.

Vivemos um momento histórico de profunda ironia geopolítica. Os Estados Unidos, arquitetos da ordem econômica internacional do pós-guerra, tornaram-se seus principais demolidores. As tarifas de 50% impostas ao Brasil representam mais que uma disputa comercial: simbolizam o ataque sistemático dos próprios criadores contra as instituições multilaterais que definiram o século americano.

O Projeto Hegemônico em Ruínas – Durante oito décadas, Washington investiu trilhões de dólares e décadas de planejamento estratégico para construir uma arquitetura global que consolidasse sua hegemonia através do consenso, não apenas da força. O Plano Marshall custou US$ 150 bilhões em valores atuais. Bretton Woods criou o sistema monetário internacional centrado no dólar. A NATO, o GATT, depois a OMC, o G7, o G20 – cada instituição representava um tijolo na construção de uma ordem onde os Estados Unidos liderariam através de regras que eles mesmos estabeleceram.

Esse não foi apenas um projeto econômico, mas civilizacional. Gerações de diplomatas, economistas e estrategistas americanos dedicaram suas carreiras a convencer o mundo de que a prosperidade global dependia da liderança benevolente de Washington. Universidades como Harvard, Chicago e MIT exportaram modelos econômicos. O soft power americano custou mais que muitos orçamentos militares nacionais.

O paradoxo MAGA: destruindo a própria herança – Agora, Donald Trump e o movimento “Make America Great Again” dinamitam sistematicamente essa construção histórica. Ao impor tarifas unilaterais de 50% ao Brasil, Washington abandona décadas de trabalho diplomático para construir legitimidade internacional.

O paradoxo é evidente: Trump afirma defender o capitalismo americano destruindo as regras que tornaram possível a expansão global desse mesmo capitalismo. As empresas multinacionais americanas, que se beneficiaram por décadas das cadeias globais de valor que os EUA ajudaram a criar, agora enfrentam retaliações, custos crescentes e mercados fechados. A própria competitividade americana, construída sobre a integração (exploração) global, é solapada pelo isolacionismo tarifário.

Os custos da autodestruição hegemônica – As consequências internas são previsíveis e devastadoras. Consumidores americanos pagarão mais caro por produtos brasileiros essenciais – do petróleo da Petrobras ao aço para a infraestrutura americana. A inflação, que Trump prometeu controlar, será alimentada pelo encarecimento artificial de insumos importados. Empresas americanas perderão competitividade global ao enfrentar custos de produção inflacionados e retaliações comerciais de parceiros históricos.

Mais grave ainda: ao politizar relações comerciais com critérios ideológicos, Washington destrói a credibilidade das instituições multilaterais que ela própria criou. Se os Estados Unidos podem impor tarifas de 50% por discordar da política interna de um país democrático, qual a utilidade da OMC, do G20, dos acordos bilaterais que custaram décadas para construir?

A janela brasileira: autonomia no caos hegemônico – Para o Brasil, paradoxalmente, esse momento de autodestruição americana representa uma oportunidade histórica única. Décadas de dependência da “relação especial” com Washington, que limitou nossa margem de manobra geopolítica e constrangeu nossas ambições de desenvolvimento autônomo, evaporam diante do unilateralismo trumpista.

A crise tarifária oferece ao país a justificativa política interna para retomar uma agenda desenvolvimentista que havia sido descartada durante os anos de financeirização e neoliberalismo. Quando Washington taxa arbitrariamente nossos produtos, torna-se politicamente viável – e economicamente necessário – diversificar parcerias comerciais, fortalecer o Mercosul, aprofundar relações com China, Índia e África, e desenhar políticas industriais que reduzam nossa vulnerabilidade externa.

Lula e a legitimação da autonomia – Internamente, as tarifas trumpistas podem representar um divisor de águas para o governo Lula. A hostilidade americana contra o Brasil democrático – explicitamente justificada pela defesa do ex-presidente investigado Jair Bolsonaro – expõe a natureza antinacional da oposição bolsonarista. Quando Trump taxa produtos brasileiros para defender Bolsonaro, fica evidente que o projeto bolsonarista subordina os interesses nacionais aos caprichos de potências estrangeiras.

Essa clareza geopolítica pode converter-se em legitimidade doméstica para políticas que antes enfrentavam resistência. Investimentos em ciência e tecnologia, fortalecimento de empresas estatais estratégicas, parcerias Sul-Sul, políticas de substituição seletiva de importações – todas ganham justificativa diante da hostilidade americana. O nacionalismo desenvolvimentista, antes atacado como “populismo”, torna-se patriotismo defensivo.

O momento da virada – Estamos, portanto, diante de um momento de inflexão histórica. Os Estados Unidos, na tentativa desesperada de preservar uma hegemonia em declínio, destroem os próprios fundamentos que sustentaram seu poder global. Para o Brasil, isso representa não apenas um desafio, mas a maior oportunidade em décadas para recuperar autonomia estratégica e retomar um projeto de desenvolvimento nacional.

A ironia histórica é completa: ao tentar enfraquecer o Brasil e outros países emergentes do Sul Global, Trump oferece-lhes exatamente a justificativa política de que precisavam para escapar da tutela americana e construir alternativas ao sistema que Washington já não consegue liderar com legitimidade.

FOTO: Ricardo Stuckert/PR // Wikimedia Commons

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/capitalistas-contra-o-capitalismo