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Caribe em chamas: como o terrorismo marítimo e o tarifaço dos EUA miram o Brasil e a multipolaridade

A escalada no Caribe marca a volta da coerção norte-americana na região e testa a capacidade do Brasil de defender sua soberania e a zona de paz.

A combinação explosiva entre o alarme de “regime change” em Cuba, o memorando jurídico que amplia o conceito de terrorismo para enquadrar embates marítimos, a resistência bolivariana sitiada na Venezuela, o tarifaço seletivo contra o Brasil e o posicionamento firme de Lula na multipolaridade revela um novo tabuleiro: o Caribe se tornou o laboratório avançado da guerra híbrida dos EUA. O comércio virou coleira política, a categoria “terrorismo” passou a caber em qualquer disputa, e a América do Sul enfrenta o maior teste de soberania desde o fim da Guerra Fria.

A nova doutrina de coerção dos EUA: terrorismo, comércio e contenção multipolar

A política externa dos Estados Unidos para o Caribe e para a América Latina entrou em uma nova fase, mais explícita e menos constrangida do que no pós-Guerra Fria. A principal inflexão não está em um gesto isolado, mas na combinação inédita entre três ferramentas que agora operam em sincronia: a expansão do conceito jurídico de terrorismo para justificar ações extraterritoriais; o uso estratégico do comércio como mecanismo de punição política; e a instrumentalização da narrativa de “segurança regional” para conter iniciativas multipolares, especialmente quando associadas ao Brasil de Lula e ao eixo China–Rússia. O resultado é uma espécie de doutrina híbrida que reconcilia antigas práticas de regime change com instrumentos modernos de guerra econômica e informacional.

A ampliação artificial do conceito de terrorismo — que, desde o pós-11/9, é uma obsessão normativo-discursiva dos EUA — funciona como chave universal capaz de abrir portas jurídicas para quase tudo: intervenção, sanção, bloqueio, restrição de vistos, congelamento de bens, enquadramento de embarcações e jurisdição extraterritorial. Essa elasticidade, que durante duas décadas se expandiu para o Oriente Médio, agora começa a ser aplicada com ênfase renovada no Caribe. O memorando jurídico que serviu de base para a tese de “terrorismo marítimo”, usado recentemente para justificar respostas agressivas contra embarcações, é mais do que um parecer técnico: é uma carta branca para converter qualquer incidente local em ameaça global. No tabuleiro estratégico, isso significa que fronteiras soberanas podem ser reinterpretadas conforme a conveniência de Washington.

Em paralelo, o comércio deixou definitivamente de ser um instrumento neutro de interdependência econômica e passou a operar como coleira política. As tarifas seletivas impostas ao Brasil são o exemplo mais recente de uma tática que combina “aviso” e coerção: punem o desalinhamento, testam a resiliência diplomática e tentam forçar o país a abandonar agendas multipolares. É o retorno da lógica do “ou está conosco, ou está contra nós”, agora repaginada em um contexto de competição tecnológica e disputa por cadeias de valor. E, diferentemente das intervenções militares clássicas do século XX, essa modalidade de coerção é mais limpa, mais silenciosa e mais eficaz no curto prazo — porque visa diretamente setores produtivos, investidores e fluxos de exportação, produzindo inquietação interna sem disparar um único tiro.

Tudo isso converge para um objetivo central: impedir que o Caribe e a América do Sul se tornem uma zona de influência multipolar capaz de desafiar a hegemonia dos EUA. A ascensão diplomática de Lula, o fortalecimento do BRICS ampliado, a penetração da China em infraestrutura e tecnologia e a construção de agendas energéticas independentes criaram uma janela inédita de autonomia continental. A resposta dos EUA foi rápida: enquadramento econômico, reativação de narrativas de ameaça regional, aproximação seletiva com governos alinhados e ampliação do aparato jurídico que permite ações punitivas. A linguagem é nova, mas a lógica é velha — a contenção, que antes se expressava em golpes e intervenções militares, agora se manifesta em documentos jurídicos, tarifas cirúrgicas, doutrina de segurança inflada e lawfare transnacional.

Essa nova doutrina híbrida opera em um limiar perigoso: ao mesmo tempo em que evita mecanismos tradicionais de intervenção direta, cria condições estruturais para disciplinar governos, manipular percepções e interferir na autonomia regional. É um poder mais difuso, mais sofisticado e mais difícil de denunciar publicamente — justamente porque se apresenta travestido de “legalidade”, “segurança” e “proteção ao comércio internacional”. No fundo, porém, trata-se da continuidade da mesma estratégia histórica: a manutenção da ordem hemisférica sob supervisão norte-americana, agora reconfigurada para um mundo em disputa, no qual a multipolaridade deixou de ser hipótese e passou a ser realidade concreta.

Cuba como gatilho: o retorno explícito do regime change

O alarme soou no Caribe quando Cuba voltou a ocupar o centro da retórica de Washington. Não se trata apenas de mais um capítulo da longa história de hostilidades; o que está em curso é a reabilitação explícita do regime change como instrumento legítimo de política externa. O modo como os EUA voltaram a enquadrar a ilha — ora como foco de instabilidade regional, ora como epicentro de uma suposta ameaça “transnacional” — revela algo maior do que um ajuste discursivo: é a tentativa de reinstalar, em pleno século XXI, a lógica de substituição de governos sob o manto jurídico do combate ao terrorismo.

Cuba se torna, nesse tabuleiro, a válvula de teste. A ilha funciona como laboratório político em que Washington experimenta a nova engenharia de coerção que pretende aplicar de maneira escalonada na região. Se a narrativa pegar ali, se a opinião pública norte-americana aceitar o enquadramento da ilha como “Estado que patrocina ameaças”, se o aparato jurídico sobreviver ao escrutínio doméstico e internacional, então todo o Caribe estará pavimentado como zona de intervenção ampliada. É um ensaio geral — e, como em qualquer ensaio, há margem para calibrar discurso, medir reações e testar limites.

A escolha de Cuba não é aleatória. É simbólica e estratégica. Simbólica porque remete ao trauma persistente do establishment norte-americano: a única derrota geopolítica incontornável dos EUA no hemisfério ocidental permanece sendo a permanência de um governo revolucionário a 150 quilômetros da Flórida. Estratégica porque Cuba é articuladora diplomática no Caribe, tem redes históricas com a Venezuela e mantém aproximações com China e Rússia em áreas sensíveis como telecomunicações, segurança e energia. Atacar Cuba é atacar o elo mais emblemático da multipolaridade regional.

Ao recolocar a ilha no alvo, os EUA tentam reposicionar a América Latina no mapa mental da segurança nacional. O enquadramento recente da situação cubana como ameaça “regional” — em vez de bilateral — é uma jogada calculada: ativa automaticamente o sistema interamericano, pressiona governos caribenhos, dá munição para pedidos de sanção e permite criar “coalizões ad hoc” para isolar Havana. Em bom português: abre a porta para operações indiretas, lawfare transfronteiriço, pressões econômicas e campanhas de desinformação com a chancela de “responsabilidade coletiva”.

Esse movimento se articula com uma estratégia mais ampla: transformar o Caribe em zona de contenção antecipada. Se o Golfo Pérsico foi, durante décadas, o laboratório da guerra contraterrorista e o Leste Europeu se tornou o laboratório das guerras híbridas contra a Rússia, agora é o Caribe que assume o papel de plataforma de experimentação contra a China, contra a Rússia e contra qualquer país latino-americano que resolva escapar do raio gravitacional de Washington. Cuba é o gatilho porque é o símbolo, mas o alvo final é muito maior: é a arquitetura multipolar que começa a emergir com a aproximação entre América do Sul, Caribe e BRICS.

O ponto crítico é que tudo isso ocorre enquanto os EUA precisam recriar coerência ideológica interna. O país vive polarização extrema, desgaste institucional e perda de hegemonia internacional. Nessas condições, a doutrina de “ameaças externas” sempre reaparece como instrumento de unificação doméstica. Cuba serve, então, como inimigo conveniente para produzir um arco narrativo interno: disciplinar eleições, coesionar a opinião pública, justificar gastos militares e criar sensação de vigilância permanente. É o velho expediente do inimigo externo, reciclado para a era dos algoritmos e da guerra informacional.

No final, o retorno do regime change no Caribe não é apenas sobre Cuba. É sobre a mensagem enviada ao continente: a de que qualquer país que tentar abrir caminhos alternativos — seja pela via da multipolaridade, seja pela via da soberania energética, seja pela via da integração regional — será enquadrado primeiro no discurso, depois no comércio, depois no direito. Cuba é o aviso; o Caribe é o laboratório; a América do Sul é o objetivo estratégico.

O memorando jurídico dos barcos e a expansão perigosa do “terrorismo marítimo”

O memorando jurídico que enquadrou o incidente entre embarcações no Caribe como possível “ato de terrorismo” não é apenas um documento técnico: é uma mudança silenciosa na arquitetura legal da região. Ele funciona como uma espécie de ferramenta expansiva que, ao reinterpretar conflitos marítimos locais como ameaças globais, concede aos Estados Unidos um poder de intervenção que ultrapassa fronteiras, jurisdições e tratados internacionais. É, na prática, a transformação de um atrito náutico em justificativa para ações extraterritoriais — incluindo sanções imediatas, retaliações militares calibradas e imposição de corredores de segurança sob controle norte-americano.

A novidade não está na retórica, mas na engenharia jurídica. Desde o 11 de Setembro, os EUA vêm substituindo noções clássicas de soberania por categorias maleáveis como “território operacional” ou “zona de risco ampliado”. O memorando atualiza essa lógica para o contexto caribenho: qualquer incidente marítimo potencialmente vinculado a atores estatais ou paraestatais pode ser classificado como terrorismo, o que automaticamente aciona mecanismos internos como a IEEPA (que permite confiscar bens e bloquear transações) e dispositivos executivos que autorizam ações imediatas sem aprovação do Congresso. Em outras palavras: cria-se um atalho legal para intervir, punir, cercar e disciplinar governos.

Esse movimento é especialmente perigoso porque cria um precedente de elasticidade jurídica em uma região marcada por disputas históricas de fronteiras marítimas, narcotráfico, pesca ilegal e circulação de pequenas frotas armadas. Qualquer choque entre embarcações — antes entendido como conflito de baixa intensidade, resolvido por arbitragem, diplomacia ou tribunais internacionais — pode ser reinterpretado como ameaça ao “sistema internacional de comércio”, permitindo que os EUA se apresentem como árbitros, quando não como polícia marítima de fato. É a militarização de áreas civis sob o pretexto de proteger rotas estratégicas.

No plano geopolítico, o memorando abre um flanco para ingerências sucessivas no Caribe. Se um incidente é rotulado como terrorismo, cria-se a impressão de que o problema não é local, mas sistêmico — e, portanto, requer resposta “hemisférica”. Essa construção narrativa é familiar: foi usada no Afeganistão, no Iraque, no Chifre da África e, mais recentemente, na disputa pelo mar da China Meridional. Agora, reaparece a um passo do Brasil, justamente na zona em que Havana, Caracas e Pequim têm ampliado sua presença logística e diplomática. O conceito de “terrorismo marítimo” não surge para proteger civis; surge para proteger corredores geopolíticos contra o avanço de atores rivais.

Há também o componente de guerra jurídica. A qualificação de atos como terrorismo — mesmo quando se trata de choques militares convencionais ou conflitos entre guardas costeiras — cria uma camada adicional de vulnerabilidade para governos da região. Processos podem ser abertos em cortes norte-americanas; empresas podem ter bens congelados; oficiais podem ser impedidos de viajar; transações bancárias podem ser bloqueadas. Tudo isso com base em um único documento interpretativo, não em tratados multilaterais. Trata-se, portanto, de um mecanismo de lawfare transnacional, capaz de asfixiar diplomaticamente um governo sem a necessidade de um único soldado estadunidense no território.

No campo informacional, o memorando serve como munição para narrativas de “ameaça emergente” — um rótulo capaz de moldar percepções, orientar editoriais, influenciar organismos multilaterais e pressionar governos latino-americanos a adotar posições alinhadas. A lógica é perversa: se a imprensa internacional compra a narrativa, governos regionais passam a ser cobrados por “decisão” ou “omissão” diante de um suposto risco aos fluxos marítimos. E o que antes era um incidente localizado se transforma em argumento para militarização, sanções e enquadramento político.

O ponto é que o memorando não é sobre barcos. É sobre jurisdição. É sobre quem define o que é terrorismo. É sobre quem controla as rotas. Ele cria um poder de exceção permanente no Caribe — um dispositivo jurídico pronto para ser acionado conforme a conveniência estratégica. E, quando somado à pressão tarifária sobre o Brasil e à reativação do regime change em Cuba, revela o contorno completo da nova doutrina norte-americana para a região: coerção jurídica, intimidação militar, guerra narrativa e disciplina econômica operando como partes de uma mesma engrenagem.

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FOTO: Zauberhund 

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/caribe-em-chamas-como-o-terrorismo-maritimo-e-o-tarifaco-dos-eua-miram-o-brasil-e-a-multipolaridade