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Cem anos de Globo, cem anos de alienação coletiva

O centenário de O Globo escancara sua herança: transformar memória em propaganda, confundir público com plateia e perpetuar alienação como destino coletivo.

Em O Ser e o Nada, Jean-Paul Sartre nos lembra que o vazio não é mera ausência, mas presença corrosiva, capaz de se disfarçar em sentido. O nada, escreve o filósofo, é a negação da autenticidade, a recusa de assumir a liberdade e o compromisso diante da realidade. Essa leitura existencial parece traduzir com precisão o que a Globo, ao celebrar os cem anos de O Globo, oferece ao país: uma festa de slogans que anuncia futuro, mas apenas reedita o passado.

A mensagem publicitária, veiculada com pompa e vozes conhecidas — Regina, Tadeu, Chico, Jô, Paulo —, gira em torno de uma palavra-chave: “futuro”. Contudo, o que chega ao espectador é apenas uma colagem de frases desconexas, que falam do porvir como quem revisita um álbum de fotografias antigas.

O futuro, nesse discurso, é preto e branco, é colorido, é lido, é ouvido. Mas jamais é pensado. Muito menos vivido.

A Globo transformou o futuro em souvenir do passado.

Há, nesse enredo publicitário, um contrassenso escandaloso: falar de futuro exibindo o passado. O recurso, em vez de iluminar a imaginação coletiva, desnuda a incapacidade da emissora de se conectar ao presente do país.

O texto, com sua cadência de marketing, não oferece um gesto concreto sobre o que esperar nem sobre como enfrentar as urgências nacionais — desigualdade, violência, degradação ambiental, polarização política.

O futuro que a Globo projeta não passa de um amontoado de memórias que ela própria ajudou a fabricar e, agora, tenta revender para ver se cola.

Essa é a essência da alienação que a Globo cultiva. Ao falar de futuro sem ancoragem na realidade, promove o engodo de que imaginar é suficiente, de que slogans substituem ideias.

A mensagem confirma o papel que a empresa desempenhou ao longo de um século: manter o brasileiro entretido com espelhos, longe de sua brasilidade, de sua identidade cultural, de sua condição social.

Enquanto a vida real pulsa em favelas, sertões e periferias, o “futuro” da Globo é um roteiro higienizado, embalado em sotaques convenientes e criatividade domesticada com seus improvisos ensaiados.

Alienação é o produto mais duradouro que a Globo exporta ao Brasil. O mais perturbador não é o marketing se esvaziar em frases sem substância — isso já é esperado. O mais grave é a naturalização da desconexão com o Brasil profundo.

Ao falar em “um futuro cheio de sotaques”, a Globo tenta suavizar a diversidade, reduzindo-a a acessório estético, e não a uma força transformadora.

Quando anuncia que o futuro “começou com você”, não fala do povo brasileiro real, mas do espectador passivo, moldado ao gosto da publicidade, treinado a consumir imagens e esquecer causas. Ainda confunde grosseiramente opinião pública com opinião publicada. Deu no que deu.

A comemoração centenária, que poderia suscitar reflexão sobre o papel de um jornal na democracia brasileira, termina como um aplauso de 100 anos ao vazio.

O slogan ressuscitado na atual campanha informa que “A Globo, acima de tudo, ao seu lado”. Isso mostra o lugar de fala da empresa plim-plim: a confissão de que o grupo sempre colocará seus interesses acima dos interesses do país que diz representar.

O futuro, afinal, não é preto e branco, nem colorido; não é lembrança de programas passados nem galeria de ídolos televisivos. O futuro, para o Brasil, é o que ainda precisa ser construído — e isso a Globo, com seu engodo centenário, insiste em ocultar.

Hannah Arendt advertia que a mentira sistemática destrói a própria experiência da realidade, enquanto Guy Debord descreveu a sociedade moderna como espetáculo que transforma tudo em imagem. Entre ambos, o diagnóstico se completa: a Globo encena o futuro como farsa visual, despojando-o de substância. Sartre já havia mostrado que o nada se traveste de plenitude — aqui, a plenitude televisiva.

O resultado é o mesmo: alienação como destino e manipulação como linguagem.

O centenário da Globo não celebra a imprensa: celebra o poder de manipular a memória coletiva; trata-se de um projeto de poder reafirmando sua lógica.

O centenário não homenageia a memória do jornalismo brasileiro, mas canoniza a própria Globo como centro de uma narrativa que exclui a nação real. Aliás, são peritos em autolouvação…

Só que, ao trocar o futuro pela lembrança de si mesma, a Globo perpetua o maior dos engodos: vender a alienação como se fosse destino coletivo.

Foto: Reprodução

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/cem-anos-de-globo-cem-anos-de-alienacao-coletiva#google_vignette