O alerta a Tóquio.
Na próxima quarta-feira, Pequim será palco de uma das maiores cerimônias internacionais de memória histórica dos últimos anos. Segundo o China Daily (29/08), vinte e seis chefes de Estado e de governo, incluindo o presidente da Federão Russa, Vladimir Putin e Kim Jong-um – neto de Kim Il-sung, o primeiro líder da Coreia do Norte de 1948 a 1994 – participarão dos eventos que marcam o 80º aniversário da vitória chinesa na Guerra de Resistência contra a agressão japonesa (1931-1945) e da vitória mundial sobre o fascismo.
Memória e identidade nacional
A escolha da data não é apenas simbólica. A China celebra o Victory Day em 3 de setembro, um dia após a assinatura da rendição japonesa em 1945. Trata-se de um marco que reafirma a narrativa de que a resistência chinesa foi um dos pilares centrais da derrota do fascismo global.
O custo humano dessa guerra foi imenso: mais de 35 milhões de chineses, entre militares e civis, perderam a vida. Esse trauma coletivo moldou a identidade da China moderna. É por isso que, ao contrário de outros países que relativizam ou suavizam a memória de 1939-1945, Pequim faz questão de manter viva a lembrança do sacrifício de seu povo e da centralidade de sua luta.
Esse esforço de memória é também um esforço político. Ao relembrar a vitória contra o Japão imperial e seus aliados, a China reforça não só sua legitimidade interna, mas também sua posição no mundo como herdeira de uma vitória civilizatória contra o fascismo.
Geopolítica da memória
A presença de Putin em Pequim é altamente simbólica. Sua visita acontece após a reunião com Donald Trump no Alasca sobre a guerra da Ucrânia, e às vésperas da cúpula da Organização de Cooperação de Xangai em Tianjin. O encontro de Xi e Putin carrega um recado claro: a história da Segunda Guerra Mundial não pode ser reescrita ao sabor dos interesses atuais.
A mensagem conjunta dos dois líderes — já repetida em maio, quando Xi esteve em Moscou — é de que “os resultados da vitória não podem ser negados, e a ordem internacional do pós-guerra não deve ser desafiada”. Isso é mais do que uma lembrança histórica. É uma forma de contestar os movimentos contemporâneos de revisionismo, vindos especialmente de Washington, Tóquio e algumas capitais europeias.
Nesse sentido, o desfile militar em Pequim não é apenas uma mostra de armamentos de última geração, mas uma encenação de poder voltada para dentro e para fora: reafirma a coesão nacional e envia ao mundo a mensagem de que a China não renunciará a sua soberania, de sua integridade territorial e de seu papel como potência guardiã da paz.
O alerta a Tóquio
Um ponto particularmente sensível da celebração é o recado dirigido ao Japão. Nos últimos anos, setores do governo japonês vêm pressionando por mudanças constitucionais para ampliar o papel das forças armadas, além de tentativas de minimizar responsabilidades históricas da Segunda Guerra.
Para Pequim, tais atitudes equivalem a “um desafio à consciência humana e a todos que amam a paz”. O convite a Yukio Hatoyama, ex-primeiro-ministro japonês crítico ao revisionismo, é estratégico: mostra que, dentro do próprio Japão, ainda existem vozes que defendem o enfrentamento honesto do passado.
Mais do que uma disputa de memória, trata-se de uma batalha pela legitimidade. A China se coloca como guardiã da verdade histórica diante do que chama de “esquecimento seletivo” do Japão, apoiado pelos Estados Unidos (EUA) em sua estratégia de conter o poder chinês no Pacífico.
O Brasil e o legado antifascista
Para o Brasil, esse evento deveria soar como um lembrete. Nossa participação na Segunda Guerra, com a Força Expedicionária Brasileira (FEB), foi um marco de inserção internacional. Milhares de brasileiros tombaram nos campos de batalha, lutando contra o nazi-fascismo.
No entanto, ao contrário da China, o Brasil raramente atualiza essa memória no debate público. As lições do passado são minimizadas, enquanto setores autoritários da sociedade relativizam o fascismo ou até tentam reabilitá-lo.
Além da memória coletiva da FEB, há também relatos individuais que não podem ser esquecidos. No livro O Brasil e a Segunda Guerra Mundial: testemunho e depoimento de um soldado convocado (Editora UnB, 1999), o jornalista e escritor João da Costa Falcão narra sua experiência pessoal como convocado, oferecendo um registro humano das esperanças, medos e impactos daquele momento histórico. Sua narrativa mostra que a memória antifascista não é feita apenas de grandes batalhas e discursos oficiais, mas também de histórias individuais que revelam o preço humano da guerra.
Esse testemunho reforça a necessidade de resgatar nosso legado antifascista. A presença do Brasil na nova arquitetura global, simbolizada pelo BRICS ampliado, exige mais do que diplomacia: exige memória, soberania e compromisso ativo com os valores pelos quais tantos brasileiros sacrificaram suas vidas.
Fascismo no século XXI: ecos perigosos
O mais inquietante, contudo, é constatar que, em pleno século XXI, voltam a emergir sinais de ideias fascistas que a humanidade acreditava sepultadas em 1945. Movimentos de extrema direita, alimentados pelo nacionalismo excludente, pela negação da ciência, pela manipulação da fé religiosa e pela intolerância contra minorias, têm conquistado espaço político em diferentes países. O uso sistemático da mentira, das fake news e da violência simbólica contra adversários políticos reproduz métodos de propaganda fascista, agora turbinados pelas redes sociais. Não se trata apenas de um debate ideológico. A reabilitação desses valores representa uma ameaça direta à democracia, aos direitos humanos e à cooperação internacional.
Ao lembrar a vitória contra o nazifascismo, a China denuncia o revisionismo histórico do Japão e os novos autoritarismos que se apresentam como soluções fáceis em um mundo em crise. É um chamado à vigilância: permitir a naturalização de ideias fascistas hoje é trair o sacrifício de milhões que tombaram para derrotá-las ontem.
Paz, mas com força
Um ponto central do discurso oficial chinês é que a celebração não tem caráter belicista, mas pedagógico. Como declarou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Hong Lei: “Realizamos o desfile para mostrar nossa determinação em seguir o caminho do desenvolvimento pacífico, nossa vontade de defender a soberania nacional e nossa capacidade de salvaguardar a paz mundial”.
Essa combinação de paz e força é típica da estratégia chinesa. Ao mesmo tempo em que insiste em sua retórica de não intervenção e cooperação internacional, Pequim moderniza aceleradamente seu aparato militar, enviando um recado inequívoco: só é possível falar em paz mundial se houver equilíbrio real de poder.
As comemorações do 80º aniversário da vitória sobre o fascismo em Pequim não são apenas uma lembrança do passado. São um ato de política externa, de diplomacia da memória e de afirmação de poder.
Enquanto o Ocidente vive um processo de esquecimento seletivo, em que crimes de guerra de aliados são silenciados e responsabilidades relativizadas, a China constrói sua narrativa como herdeira da resistência e como pilar da ordem internacional surgida em 1945.
No palco da história, a memória é também uma arma política. E Pequim, neste setembro de 2025, a maneja com precisão.
Foto: VCG
AUTORA:
MARIA LUIZA FALCÃO SILVA
Maria Luiza Falcão Silva é economista com mestrado em Economia pela University of Wisconsin-Madison e doutorado em Economia pela Heriot Watt – Escócia. É professora aposentada da Universidade de Brasília e foi assessora da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Seus trabalhos são voltados para as áreas de Economia Internacional, Economia Monetária e Financeira e Desenvolvimento Econômico . É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed).
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/china-celebra-os-80-anos-da-vitoria-contra-o-fascismo-com-presenca-de-lideres-mundiais