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Cidades fragmentárias: muros e sistemas de vigilância marcam ocupação dos espaços urbanos no país

Estamos tão acostumados à ideia de que nossas cidades são estruturadas segundo uma lógica centro-periférica que é provável que muitos de nós não tenhamos parado para observar que os espaços urbanos em que vivemos vêm passando por mudanças profundas, que estão em andamento há algumas décadas.

Ao falarmos centro, imediatamente são evocadas imagens urbanas de áreas de maior concentração comercial e de serviços, de presença expressiva de equipamentos públicos e privados, de vida cultural, de maior ou menor prestígio social e político.

Ao evocarmos periferia, é provável que as imagens sejam diametralmente opostas, pois, ao menos para a América Latina, essa expressão é associada a áreas residenciais em que as condições de vida urbana são precárias ou insuficientes, nas quais a pobreza domina e, ainda, sobre as quais se elaboram imaginários associados à violência ou ao crime.

Estas associações de valores e de representações não são desvinculadas de fatos, sejam eles relativos ao passado ou ao presente. No entanto, elas são bastante homogeneizantes e simplificadoras, porque as cidades, das menores às metropolitanas, são mais complexas e compostas por um conjunto de frações de territórios que não podem ser agrupados, apenas, como centro e periferia: trata-se da cidade fragmentária, cuja origem está vinculada à predominância da lógica neoliberal que se opõe à ideia de direito à cidade.

A cidade fragmentária

Para analisar essas transformações decorrentes da passagem da cidade centro-periférica para a cidade fragmentária está em andamento a pesquisa “Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: escalas, vetores, ritmos e formas – Fragurb”, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

A pesquisa analisa cinco dimensões empíricas desse processo de fragmentação socioespacial – habitar, trabalhar, consumir, lazer e mobilidade – em 10 áreas urbanas de diferentes formações socioespaciais: oito cidades médias – Chapecó/SC, Dourados/MS, Ituiutaba/MG, Marabá/PA, Maringá/PR, Mossoró/RN, Presidente Prudente/SP e Ribeirão Preto/SP – e dois distritos metropolitanos – Cidade Tiradentes em São Paulo e Pimentas em Guarulhos.

O estudo aponta, nas últimas décadas, para investimentos imobiliários maiores em parcelas do anel de expansão urbana, voltados à implantação de novas formas de habitat (especialmente espaços residenciais fechados) e novos espaços de consumo e lazer (principalmente shopping centers), ambos dotados de sistemas de controle e vigilância que não são mais exclusivos a eles.

Esses investimentos alteraram a lógica anterior, levando à ampliação de preços e aumento de prestígio social de frações deste território de expansão periférica, ao mesmo tempo em que provocam perda relativa de importância do centro principal da cidade, por meio da promoção de novas áreas de concentração comercial e de serviços, compondo novas centralidades.

Se essas tendências são notórias é preciso estudá-las, o que muitos pesquisadores vêm fazendo, a partir de diferentes pontos de vista, que representam muito mais prismas segundo os quais é possível olhar para um dado processo, dando mais ênfase a um aspecto do que outro, do que divergências quanto aos fatos ou processos que os originam e os impulsionam.

De um modo ou de outro, olhando de luneta ou de óculos, alterando escalas ou vetores, privilegiando formas ou processos, a urbanização contemporânea pode ser sintetizada pela sobreposição da lógica centro-periférica pela fragmentária, gerando contradições, combinações e tensões de várias naturezas, que se expressam de modo singular em cada espaço urbano, mesmo que os interesses que os presidem sejam, no geral, os mesmos.

Divisão social e econômica do espaço

O processo de fragmentação socioespacial também tem sua divisão social e econômica do espaço, é evidente, afinal estamos tratando de cidades sob o capitalismo. A diferença decorreria de que, agora, algumas dinâmicas mais recentes têm ocorrido, de modo semelhante, em diversas cidades, tanto no Brasil quanto em países com urbanização similar:

  • o afastamento socioespacial dos estratos de renda média e elite, ao mesmo tempo em que, em algumas situações, estratos sociais menos favorecidos se deslocam para áreas centrais e pericentrais;
  • o aparecimento de áreas comerciais e de serviços que atendem de modo mais direto às elites, à medida em que esse afastamento ocorre.

O resultado dessas tendências é a composição de um mosaico de proximidade espacial entre classes sociais diferentes entre si e de distância social entre elas, que é expressa por muros e sistemas de controle e vigilância.

Em Ribeirão Preto, por exemplo, com seus cerca de 700 mil habitantes, essas tendências geraram claramente o predomínio do setor norte para os mais pobres, onde estão os investimentos para habitação popular do Programa Minha Casa Minha Vida (vejam as áreas rosadas) e o sul para os mais ricos no sul (predomínio das manchas sombreadas de azul), quadrante onde também estão os maiores shopping centers da cidade (observem as estrelas verdes) e os condomínios e loteamentos horizontais fechados.

Mapa de Ribeirão Preto tem manchas vermelhas ao norte, onde se concentra a população de baixa renda, e manchas azuis ao sul, onde está a população mais rica e os shopping centers

Está claro, por esse cartograma, que a ideia de centro e periferia está em superação nesta cidade e isso não ocorre sem alterações importantes nas formas como a sociedade produz e vive o urbano, apropriando-se mais ou menos dos espaços públicos e redefinindo suas representações sobre ela.

Em Mossoró, outra entre as dez áreas urbanas estudadas pela pesquisa FragUrb, esse processo constitui-se de modo diverso, pois aparecem novos setores de valorização, mas o centro principal ainda é muito importante para todos os citadinos.

Nos dois distritos urbanos metropolitanos abarcados pela pesquisa – Cidade Tiradentes no município de São Paulo e Pimentas no município de Guarulhos – uma das faces perversas da fragmentação socioespacial, o estigma territorial, permanece e se redefine, mesmo que tenha havido melhorias nas condições de vida urbana nas duas últimas décadas.

O estigma territorial está associado, segundo Loïc Wacquant, à tendência de demonização de certas áreas, associadas à pobreza e à violência, atributos que são associados a seus moradores, os quais passam a não ter aceitação plena nas cidades em que vivem.

Por outro lado, a pesquisa tem mostrado que mudanças no processo de produção e financiamento de imóveis, voltados para diferentes estratos sociais é, sem dúvida, um dos motores do processo de fragmentação socioespacial, visto que a lógica de securitização de ativos imobiliários residenciais no Brasil unifica mercados e articula escalas geográficas, englobando no mesmo movimento cidades de diferentes tamanhos e importâncias na rede urbana.

A securitização imobiliária é uma das dinâmicas da financeirização do setor e se constitui na transformação da propriedade imobiliária em ativos mobiliários, ou seja, papéis que são comercializados como se fossem ações correspondentes aos imóveis, possibilitando antecipação dos financiamentos concedidos e reprodução do investimento feito mais rapidamente.

Que futuro queremos para nossas cidades?

Desde a Antiguidade, as cidades estiveram estruturadas por um elemento articulador das funções e usos do espaço, que era o centro principal; cresceram absorvendo e transformando o espaço adjacente a ela, de modo mais ou menos intenso, gerando arrebaldes, subúrbios ou periferias. Ainda assim, mantiveram a tendência de se estruturar segundo uma variação gradativa de condições urbanas e de prestígio que ia do centro para as áreas de expansão urbana mais recentes.

Essa passagem atual da cidade centro-periférica para a cidade fragmentária não se faz de modo completo, nem a cidade do presente apaga a do passado. Ruas, avenidas e edificações não desaparecem do mapa; afinal, são investimentos públicos e privados de décadas ou séculos. Usos do espaço, formas de sua apropriação e funções econômicas do passado também não são varridos, de modo absoluto, do cenário urbano, porque ações, interesses, práticas e representações sobre elas permanecem ou se alteram muito lentamente. A cidade do presente contém as cidades do passado.

O que há de novo então? O reconhecimento de que estaríamos passando, nas décadas recentes, por um período de descontinuidades ou de rupturas, marcado por transformações profundas.

O que deveria estar em jogo, no momento atual, é a reflexão sobre o futuro que queremos para as nossas cidades. É fundamental que o debate político sobre a tendência de separação socioespacial e de constituição de efetivas fraturas urbanas seja feito em diferentes fóruns.

O poder público (Executivo, Legislativo ou Judiciário) pouco tem se posicionado na direção de defesa da preservação do interesse de todos. Movimentos sociais e coletivos de diferentes ordens lutam dando visibilidade à emergência dos problemas, mas ainda não há evidências claras de que, na pauta que comandará as próximas eleições municipais, alguns dos aspectos destacados neste texto sejam o foco central, embora essas transformações venham gerando mais tensões do que soluções para os problemas urbanos que enfrentamos.

FONTE: https://theconversation.com/cidades-fragmentarias-muros-e-sistemas-de-vigilancia-marcam-ocupacao-dos-espacos-urbanos-no-pais-224489