Reunião em Buenos Aires expõe a militarização da América do Sul sob comando dos EUA, com apoio europeu, e escancara as ameaças à soberania do Brasil e da região.
O encontro SOUTHDEC 2025, liderado pelo Comando Sul dos EUA e realizado em Buenos Aires, revela muito mais do que cooperação militar: trata-se de um movimento estratégico que envolve Washington, a OTAN e o governo Milei para reposicionar a América do Sul no tabuleiro global. Declarações intervencionistas do futuro embaixador Peter Lamelas completam o quadro de guerra híbrida, cultural e psicológica que ameaça diretamente a soberania dos povos do Sul.
O tabuleiro em Buenos Aires
Buenos Aires foi escolhida como palco para a conferência SOUTHDEC 2025, organizada pelo Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM). À primeira vista, trata-se de mais uma reunião multilateral de chefes militares para debater “segurança regional”. Mas, quando se examina o contexto político e geoestratégico, o encontro se revela como parte de uma engrenagem muito maior: a consolidação da América do Sul como área de interesse direto dos Estados Unidos e, agora, também da OTAN.
O próprio site oficial do SOUTHCOM explica muito sobre essa engrenagem. Não é apenas um portal informativo; é a vitrine pela qual o Pentágono legitima sua presença militar no hemisfério Sul. Ali, cada exercício, cada missão humanitária e cada conferência são narrados como gestos de “cooperação” e “parceria”. Na prática, trata-se de um instrumento de comunicação estratégica que cumpre um papel de operações psicológicas (psyops): vender à opinião pública a ideia de que o aumento da presença militar estrangeira é sinônimo de segurança, quando, na verdade, traduz interesses geopolíticos claros.
O encontro em Buenos Aires não se resume a discursos diplomáticos. Ele sinaliza uma militarização crescente da América do Sul, num momento em que a Argentina se coloca como um aliado fiel de Washington. Mais do que coordenar ações contra crimes transnacionais, o SOUTHDEC projeta um futuro de integração forçada sob liderança norte-americana, com apoio de parceiros europeus. Isso insere o Cone Sul em uma dinâmica de guerra híbrida que combina narrativas, diplomacia e força militar para redesenhar os eixos de poder no continente.
SOUTHCOM e a narrativa da “cooperação”
O Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM) é um dos dez comandos unificados do Pentágono. Sua jurisdição cobre 31 países e 16 territórios no hemisfério ocidental, incluindo toda a América Latina e o Caribe. Oficialmente, sua missão é “proteger os interesses de segurança dos EUA, fortalecer parcerias e combater ameaças transnacionais”. Na prática, isso significa projetar poder militar, político e informacional sobre a região, moldando agendas de defesa e segurança de acordo com as prioridades de Washington.
O site do SOUTHCOM é o espelho dessa lógica. Ali, cada operação é descrita sob a ótica da “cooperação”: exercícios conjuntos viram “parcerias para a paz”; missões navais de projeção de poder são apresentadas como “apoio humanitário”; e encontros como o SOUTHDEC 2025 aparecem como simples fóruns de diálogo. Essa linguagem funciona como ferramenta de guerra cultural, criando uma narrativa de legitimidade e necessidade para a presença militar norte-americana no Sul global.
Mas a retórica de “cooperação” esconde um dado fundamental: trata-se de um projeto de disciplinamento geopolítico. Quando o SOUTHCOM fala em “ameaças transnacionais”, não se refere apenas a narcotráfico ou terrorismo. Inclui nesse pacote a expansão da China, a busca por autonomia tecnológica da América do Sul e até mesmo movimentos sociais que escapam ao controle de Washington. A cooperação, nesse sentido, é apenas a face aceitável de uma lógica de contenção e alinhamento.
O SOUTHDEC 2025, portanto, deve ser lido não como um simpósio técnico, mas como mais um ato na construção de uma arquitetura de dependência. Ao institucionalizar a presença militar dos EUA e de seus aliados europeus na região, cria-se o alicerce narrativo e político para justificar futuras intervenções — abertas ou disfarçadas — sempre sob o argumento de proteger a “estabilidade regional”.
Milei, alinhamento e a Argentina como plataforma
A escolha de Buenos Aires como sede do SOUTHDEC 2025 não é acidental. A Argentina ocupa uma posição geográfica estratégica no tabuleiro do Cone Sul: controla o acesso a gargalos marítimos de enorme valor geopolítico, como o Estreito de Magalhães e a Passagem de Drake, rotas de ligação entre o Atlântico e o Pacífico. Esses corredores são vitais não apenas para o comércio global, mas para o deslocamento de frotas militares em um cenário de competição entre grandes potências.
Do ponto de vista político, o governo de Javier Milei oferece aos Estados Unidos um terreno fértil. Milei assumiu uma postura declaradamente pró-Washington, alinhando-se a agendas econômicas e militares que fragilizam a autonomia regional. Esse alinhamento converte a Argentina em plataforma privilegiada para a estratégia norte-americana de contenção e projeção de poder no Sul do continente.
O simbolismo é evidente: ao realizar o encontro em Buenos Aires, o SOUTHCOM transforma a capital argentina em vitrine da “parceria” hemisférica. Mas, na prática, esse gesto consolida a subordinação de um governo que abre mão de sua própria margem de manobra em troca de proximidade com Washington. Milei, nesse sentido, não apenas legitima a presença militar estrangeira; ele entrega ao Pentágono e à OTAN um palco político para reconfigurar a lógica de segurança regional.
A Argentina, que historicamente desempenhou papéis de mediação e liderança autônoma em foros latino-americanos, aparece agora como elo frágil, funcionando como extensão da estratégia atlântica. Esse movimento tem um significado poderoso: o Cone Sul, antes protegido pela distância geográfica, passa a ser integrado de forma explícita ao teatro estratégico dos EUA. E isso abre caminho para uma escalada de pressões sobre o Brasil e os demais países da região.
Europa entra no jogo: a sombra da OTAN
A presença de observadores do Canadá, França e Reino Unido no SOUTHDEC 2025 pode parecer, à primeira vista, apenas um gesto diplomático. Mas seu significado vai muito além. Trata-se da formalização de um interesse atlântico-norte em incorporar a América do Sul dentro da lógica de segurança da OTAN.
O Canadá, como parceiro natural dos EUA, reforça a dimensão hemisférica da iniciativa. França e Reino Unido, por sua vez, projetam a marca europeia da OTAN para o Cone Sul. Essa participação não é simbólica: ela indica que os corredores marítimos, os cabos submarinos e os portos da região já são vistos como parte da infraestrutura crítica da aliança atlântica. Em outras palavras, o SOUTHDEC deixa de ser um fórum “regional” e se transforma em peça de um jogo global.
Essa articulação amplia os riscos para a soberania latino-americana. Quando a OTAN se aproxima, não se trata apenas de cooperação militar, mas de integração de doutrinas, padronização de procedimentos e acesso a informações sensíveis. É a tradução concreta da guerra híbrida: sem disparar um tiro, os EUA e seus aliados constroem dependência estrutural, enfraquecendo a autonomia dos países do Sul.
No caso da Argentina, o alinhamento pleno ao eixo Washington–Londres–Paris significa renunciar à sua tradição de política externa autônoma. Para o Brasil e os demais vizinhos, o recado é claro: o Cone Sul está sendo progressivamente incorporado ao teatro estratégico da OTAN. E isso não é apenas uma mudança de cenário militar — é a preparação de terreno para novas pressões diplomáticas, econômicas e informacionais, que buscarão enquadrar a região dentro dos interesses atlânticos.
O fator Peter Lamelas: diplomacia como arma
Se o SOUTHDEC 2025 representa a face militar da nova estratégia para o Cone Sul, as declarações de Peter Lamelas, indicado por Donald Trump para a embaixada norte-americana na Argentina, revelam o braço diplomático e cultural da mesma engrenagem.
Durante sua sabatina no Senado dos EUA, Lamelas adotou um tom abertamente intervencionista. Criticou a autonomia das províncias argentinas, insinuou que acordos feitos com a China facilitariam a corrupção e, em seguida, prometeu apoiar diretamente o governo de Javier Milei até o fim do mandato. Essas palavras foram recebidas em Buenos Aires como humilhantes, uma afronta à soberania argentina e um sinal de que Washington não vê a Argentina como parceira, mas como território sob tutela.
O efeito prático desse discurso é claro: ao pintar os governadores e líderes locais como atores corruptos e incapazes, Lamelas legitima a necessidade de “supervisão” externa. É a lógica clássica da guerra cultural e psicológica: minar a confiança das populações em suas próprias instituições para justificar a presença e o controle de potências estrangeiras.
Nesse sentido, a fala de Lamelas não é um deslize isolado, mas parte de uma arquitetura coordenada. Enquanto o SOUTHCOM oferece a narrativa de “cooperação” militar pelo site southcom.mil, a diplomacia norte-americana abre o flanco político, disseminando a ideia de que os povos do Sul não são capazes de governar-se sozinhos. É a velha lógica colonial travestida de discurso de segurança pública e combate à corrupção.
Ao articular a dimensão militar do SOUTHDEC com a retórica política de Lamelas, os EUA constroem um ciclo perfeito de guerra híbrida: ocupação narrativa, diplomática e militar. O recado para a região é inequívoco: a soberania latino-americana será constantemente questionada e submetida, seja pela força dos navios de guerra, seja pela força das palavras de seus representantes diplomáticos.
Brasil no alvo: riscos concretos
Se a Argentina se converteu em vitrine de alinhamento com Washington, é o Brasil que ocupa o centro real das preocupações estratégicas dos EUA e da OTAN. Não apenas pela dimensão territorial e demográfica, mas pelo peso econômico, pelo papel regional e pelo potencial de liderança em agendas de autonomia tecnológica, energética e diplomática. Para o Pentágono, um Brasil soberano e independente é o verdadeiro obstáculo à consolidação da América do Sul como área de influência incontestada.
Os riscos imediatos para o Brasil dentro dessa arquitetura de guerra híbrida são múltiplos.
1. Interoperabilidade forçada e vigilância regional
Sob a narrativa de cooperação contra crimes transnacionais, cresce a pressão para integrar o Brasil em redes de compartilhamento de dados e vigilância marítima e cibernética. O problema é que, na prática, isso significa abrir as portas de nossas infraestruturas críticas ao monitoramento externo, reduzindo a autonomia operacional das Forças Armadas e expondo dados sensíveis a potências estrangeiras.
2. Pressão narrativa contra a soberania
O discurso do SOUTHCOM, amplificado pelo site do comando, insiste em tratar a região como incapaz de lidar sozinha com “ameaças globais”. Para o Brasil, isso se traduz em campanhas que questionam sua governança interna, suas políticas ambientais, seu sistema judicial e sua política externa. É a guerra cultural em ação: enfraquecer a legitimidade interna para abrir espaço à tutela externa.
3. Lawfare e desinformação como instrumentos
A estratégia híbrida se manifesta também no campo político. Ações de lawfare, desinformação massiva e campanhas de ódio — já testadas no Brasil desde meados dos anos 2000 — são parte integrante desse tabuleiro. A integração militar hemisférica funciona como cobertura para operações de influência que minam a coesão social e corroem a democracia por dentro.
4. Cooptação de elites e think tanks
Ao mesmo tempo, os EUA ampliam a cooptação de elites militares, políticas e acadêmicas por meio de programas de intercâmbio, cursos de doutrina e parcerias com fundações alinhadas. O objetivo é formar um consenso interno pró-Washington, neutralizando resistências dentro do próprio Brasil.
Em síntese, o Brasil é o ponto de maior atrito desse projeto. Não se trata apenas de um risco abstrato, mas de ameaças concretas à soberania informacional, territorial e política. O SOUTHDEC em Buenos Aires, com Milei como anfitrião submisso, foi um recado direto: ou o Brasil se alinha ao eixo atlântico, ou será alvo de operações cada vez mais intensas de desestabilização híbrida.
O espectro da guerra híbrida e cultural
O SOUTHDEC 2025 não deve ser lido apenas como um encontro militar. Ele é parte de um ecossistema de guerra híbrida que combina, de forma coordenada, dimensões militares, diplomáticas, informacionais e culturais. É nesse entrelaçamento que se desenha a verdadeira ameaça para a soberania dos povos do Sul.
Na dimensão militar, a presença do Comando Sul e de observadores europeus projeta a ideia de que o Cone Sul precisa de tutela atlântica para se proteger de crimes e ameaças globais. Essa narrativa desarma politicamente qualquer resistência: quem poderia ser contra o combate ao narcotráfico ou à corrupção? Mas, por trás dessa retórica, o que se consolida é uma arquitetura de dependência operacional e estratégica.
Na dimensão diplomática, declarações como as de Peter Lamelas atuam como armas de guerra cultural. Ao desqualificar governadores e insinuar corrupção sistêmica, o diplomata não fala apenas à Argentina: fala ao continente inteiro, transmitindo a mensagem de que nossas instituições são frágeis e que apenas a tutela externa garante estabilidade. É a repetição do discurso colonial, adaptado à linguagem da segurança pública e da geopolítica contemporânea.
Na dimensão informacional, o site oficial do SOUTHCOM é peça central. Cada comunicado, cada imagem de soldados sorridentes em missões humanitárias, cada discurso sobre “cooperação” cumpre a função de operação psicológica. Não se trata de convencer apenas os militares e governantes locais, mas também de moldar a opinião pública global, apresentando a presença estrangeira como inevitável, natural e benéfica.
Na dimensão cultural, está a estratégia de longo prazo: infiltrar doutrinas, valores e práticas que deslocam a percepção de soberania. O “american way of war” se transforma em currículo militar. O “american way of life” infiltra-se em elites políticas, econômicas e midiáticas. Assim, a guerra cultural complementa a guerra híbrida, apagando lentamente a capacidade crítica das sociedades do Sul.
O SOUTHDEC 2025, portanto, é mais do que uma reunião. É uma engrenagem de uma onda longa de guerra híbrida que avança desde meados dos anos 2000, combinando lawfare, desinformação, cooptação de elites e presença militar. Cada peça — o discurso diplomático de Lamelas, o alinhamento de Milei, a presença da OTAN, o portal do SOUTHCOM — integra um mesmo tabuleiro, cujo objetivo final é a redução da soberania latino-americana a uma variável controlada pelos interesses do Atlântico Norte.
Conclusão — O Sul sob ameaça
O SOUTHDEC 2025 em Buenos Aires não foi apenas mais um encontro militar de rotina. Ele expôs de forma clara a ofensiva coordenada de Washington e seus aliados atlânticos para transformar o Cone Sul em um corredor estratégico controlado de fora para dentro. A presença do Comando Sul, a participação de observadores da OTAN e o alinhamento incondicional do governo Milei criam um cenário em que a América do Sul deixa de ser tratada como um bloco autônomo e passa a ser enquadrada como zona de influência direta dos interesses norte-atlânticos.
As declarações intervencionistas de Peter Lamelas, futuro embaixador dos EUA em Buenos Aires, apenas completam o quadro. Ao desqualificar governadores, questionar a soberania argentina e se colocar como tutor político, ele revela a face diplomática e cultural da mesma engrenagem que o SOUTHCOM apresenta como “cooperação militar”. São faces distintas de uma mesma guerra híbrida, onde a força bruta, a diplomacia agressiva e a propaganda institucional se entrelaçam para enfraquecer a autonomia dos povos do Sul.
Para o Brasil, a mensagem é inequívoca. O país é o principal alvo dessa arquitetura: seja pelo seu peso econômico, seja por sua capacidade de articular alternativas de soberania. O SOUTHDEC, realizado no coração de um governo alinhado como o de Milei, deve ser entendido como recado e alerta. Quem não se submeter à lógica atlântica será cercado por narrativas de incapacidade, por pressões diplomáticas e por uma presença militar que se expande sob a máscara da cooperação.
O Sul está sob ameaça. O que se desenrola hoje em Buenos Aires é um movimento estratégico poderoso, que ultrapassa fronteiras nacionais e projeta uma sombra longa sobre o futuro da região. Cabe às sociedades latino-americanas compreender que a guerra híbrida não se anuncia com tanques atravessando fronteiras, mas com discursos, tratados, conferências e sites oficiais que naturalizam a subordinação. E cabe aos povos do Sul decidir se aceitarão essa tutela disfarçada de cooperação ou se resistirão em nome da soberania e da dignidade.
FOTO: Tomaz Silva/Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/como-eua-e-otan-usam-milei-para-avancar-sobre-a-america-latina