Análise de uma guerra híbrida urbana: como oligarquias e o crime organizado usam a tecnologia e a lei para sequestrar a mobilidade no Brasil
A suspensão abrupta de 25 linhas de ônibus em Fortaleza, em setembro de 2025, não foi apenas um transtorno para milhares de cidadãos. Foi a manifestação mais recente e explícita de uma crise estrutural que revela a natureza do transporte público no Brasil: um direito social, garantido pela Constituição, operado como um feudo privado por um pequeno círculo de oligarquias familiares.

A manobra do sindicato patronal Sindiônibus, justificada por um “desequilíbrio financeiro” atribuído à concorrência com aplicativos, expôs como a interrupção de um serviço essencial é usada como ferramenta de barganha para proteger um modelo de negócio predatório. Trata-se de uma tática de guerra assimétrica, onde um ator privado utiliza sua posição em uma infraestrutura crítica para chantagear o poder público e a sociedade, travando uma batalha que é, ao mesmo tempo, econômica e informacional.
O episódio na capital cearense é o fio condutor de uma história que começa décadas antes e se espalha por todo o país. É uma narrativa sobre como decisões políticas tomadas nos anos 1970, durante a urbanização acelerada do país, cimentaram a hegemonia do ônibus e entregaram as chaves da mobilidade urbana a empresários que se tornariam os “barões do ônibus”. Este arranjo, fortalecido por um subinvestimento público crônico que minguou de 1,5% do PIB nos anos 1970 para medíocres 0,3% nas décadas seguintes, criou uma dependência mútua e assimétrica. O Estado precisava das empresas para mover a população, mas as empresas passaram a ditar as regras, transformando concessões públicas em heranças familiares. Nesse processo, o Estado abdicou de sua soberania sobre a mobilidade, entregando a gestão de um dos principais fluxos de dados e de vida da cidade, o ir e vir das pessoas, a interesses privados que operam sem transparência.
A crise de 2025 em Fortaleza não é um evento isolado, mas o clímax de um embate ideológico de longa data. Durante a Gestão Luizianne Lins (2005-2012), o poder municipal buscou ativamente confrontar o modelo de negócio corporativo do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Ceará (Sindiônibus).
Nessa gestão, o transporte público foi tratado como um serviço essencial e um instrumento de distribuição de renda. A principal política adotada foi o controle tarifário, que resultou na Tarifa Social – uma passagem mais acessível –, garantindo que o acesso à cidade funcionasse como uma política pública. Essa abordagem, que chegou a congelar a tarifa por quatro anos e garantir a meia passagem ilimitada para estudantes, transformou Fortaleza em uma capital de tarifas relativamente baixas no cenário nacional.
Contudo, a decisão unilateral do Sindiônibus de suspender 25 linhas em setembro de 2025, sob a alegação de “desequilíbrio financeiro”, expôs a fragilidade do sistema: a insustentabilidade financeira de um modelo que depende exclusivamente da receita da catraca. Embora a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) tenha declarado a ação ilegal, a manobra patronal, que capitalizou na queda de passageiros devido à concorrência dos aplicativos, ilustrou como a crise de financiamento é usada para pressionar o poder público e proteger o oligopólio, configurando a capital cearense como um estudo de caso vívido do dilema nacional.
A anatomia do poder
O poder desses conglomerados não é abstrato. Ele tem nome e sobrenome. Em São Paulo, o império foi erguido por José Ruas Vaz, que a partir de uma única empresa de viação em 1961, construiu um conglomerado que chegou a controlar mais da metade da frota da maior cidade do país. O segredo do Grupo Ruas não está apenas na quantidade de ônibus, mas em uma sofisticada estratégia de integração vertical. O grupo tem participação na Caio Induscar, que fabrica as carrocerias; é sócio do Banco Luso-Brasileiro, que financia a compra de frotas para os concorrentes; e, antecipando o futuro, diversificou para concessões de metrô e até para o controle da publicidade nos pontos de ônibus.
Este ecossistema fechado torna a concorrência uma miragem. Quando a prefeitura exige ônibus melhores, negocia com um operador que é também o fabricante. Novos entrantes precisam buscar financiamento em um banco controlado pelo incumbente. A licitação se torna uma formalidade, um teatro para legitimar o poder de quem já domina toda a cadeia de valor. Essa arquitetura de negócios funciona como uma tecnologia de poder, um ecossistema fechado desenhado para anular o mercado e a regulação estatal, configurando uma forma de soberania corporativa privada sobre um bem público.
Este padrão se repete nacionalmente. A família Constantino, originária de Minas Gerais, usou a fortuna dos ônibus para fundar a companhia aérea Gol. No Rio de Janeiro, a dinastia Barata, liderada pelo patriarca Jacob Barata, o “Rei dos Ônibus”, domina o setor há mais de meio século. Em Curitiba, a família Gulin mantém uma hegemonia de 70 anos. Em Salvador, o Grupo Evangelista (GEVAN) controla mais de um terço da frota, ainda que a operação seja mascarada por uma estrutura de consórcios.
As rotas da corrupção
A manutenção desse poder não se limita a estratégias de mercado. Ela é cimentada por uma corrupção sistêmica, cuja capilaridade se estende do poder municipal ao federal. A Operação Ponto Final, um desdobramento da Lava Jato, desvendou no Rio de Janeiro um esquema de propina institucionalizada. A federação das empresas, a Fetranspor, mantinha uma “caixinha” que movimentou mais de 260 milhões de reais para agentes públicos, incluindo 122 milhões de reais para o ex-governador Sérgio Cabral, em troca de tarifas favoráveis e benefícios fiscais. O clã Barata era uma peça central do esquema. Embora as investigações e condenações em primeira instância tenham confirmado esse esquema, as sentenças contra Sérgio Cabral e Jacob Barata Filho foram posteriormente anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por questões de incompetência de juízo, resultando na redistribuição dos processos para a Justiça Estadual do Rio de Janeiro.
Em Brasília, Henrique Constantino admitiu em delação premiada o pagamento de propina a Eduardo Cunha para garantir a liberação de recursos do FGTS para suas empresas. Em São Paulo, o “Trensalão” Tucano revelou um cartel de multinacionais que fraudava licitações do metrô e dos trens metropolitanos. Enquanto Constantino teve sua delação homologada, que resultou em multas e ressarcimentos milionários, o caso do “Trensalão” resultou na condenação de 11 empresas e multas de R$ 515 milhões pelo CADE por formação de cartel, mas os processos na esfera criminal (corrupção) tiveram um avanço mais lento na Justiça.
A face mais alarmante dessa criminalidade, no entanto, foi exposta em 2024 pela Operação Fim da Linha. As investigações revelaram como o Primeiro Comando da Capital (PCC) se infiltrou e passou a controlar duas empresas de ônibus em São Paulo, a Transwolff e a UpBus. A facção teria injetado dezenas de milhões de reais do tráfico para lavar dinheiro, vencendo licitações e recebendo quase 5,5 bilhões de reais em recursos públicos enquanto servia de fachada para o crime organizado. De Cabral ao PCC, a lógica é a mesma: o transporte é um ativo a ser explorado, seja para o enriquecimento ilícito por meio da corrupção política, seja para a lavagem de dinheiro do crime. A diferença crucial é a natureza do ator que captura o sistema, transitando da corrupção política tradicional para a infiltração direta de uma organização criminosa, que opera com lógicas de guerra não convencional para expandir seu poder e lavar seus ativos dentro da institucionalidade.
A resistência na outra ponta da catraca

Contra esse poder entrincheirado, a resistência mais constante vem do outro lado da catraca: os trabalhadores. Motoristas e cobradores, organizados em sindicatos, enfrentam uma luta desigual contra conglomerados com imenso poder financeiro e político. Suas greves, frequentemente, transcendem a pauta salarial e se tornam um termômetro das tensões sociais.
A greve dos rodoviários de Brasília em 1985, por exemplo, foi um ato político que ajudou a acelerar o fim da Ditadura Militar. Em Campinas, em 1986, uma paralisação garantiu não apenas ganhos salariais, mas o fim da prática abusiva de descontar prejuízos de assaltos e acidentes dos salários dos trabalhadores. Mais recentemente, no Rio de Janeiro, trabalhadores denunciaram jornadas de 12 horas com pagamento por apenas 7, expondo um modelo de operação que busca o lucro máximo pela sobrecarga de funcionários e veículos.
A luta sindical, vista por uma ótica de esquerda, não é uma disputa meramente corporativa. Ao lutar por condições dignas de trabalho, os rodoviários denunciam a precarização que afeta diretamente o passageiro. A briga contra jornadas exaustivas é uma briga contra acidentes. A exigência por manutenção adequada é uma exigência por segurança para todos. A resistência dos trabalhadores é, em essência, a linha de frente da defesa de um serviço público de qualidade, criando uma aliança natural, ainda que muitas vezes latente, com os usuários.
A encruzilhada: mercantilizar ou desmercantilizar
O colapso do modelo financiado pela catraca, acelerado pela concorrência dos aplicativos e pelo aumento das gratuidades, colocou o Brasil em uma encruzilhada. De um lado, a agenda neoliberal, inimiga do conceito de transporte como direito, propõe aprofundar a mercantilização. A solução seria a privatização de sistemas sobre trilhos, como o metrô e a CPTM. O argumento é o da suposta eficiência privada.
A realidade, porém, desmente o discurso. A experiência com as linhas 8 e 9 da CPTM em São Paulo, já concedidas à iniciativa privada, é marcada pelo aumento de falhas e pela piora do serviço. Sindicatos e movimentos sociais alertam que a lógica do lucro privado leva inevitavelmente a tarifas mais caras, precarização da manutenção e cortes em linhas menos rentáveis, excluindo a população mais pobre. A privatização, sob o lema “direito não é mercadoria”, significa tratar o acesso à cidade como um privilégio para quem pode pagar.
Do outro lado da encruzilhada, surge um projeto transformador: a desmercantilização radical do serviço por meio da Tarifa Zero. A proposta, que deixou de ser utopia para se tornar o centro do debate nacional, é elogiada e estudada pelo Governo do Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva solicitou estudos de viabilidade para a implementação da gratuidade em todo o país, reconhecendo a insustentabilidade do sistema atual.
O financiamento, desafio central, viria de um novo pacto social. Propostas em debate no Congresso incluem a reforma do vale-transporte, transformando-o em uma contribuição patronal para um fundo de mobilidade, o que poderia arrecadar cerca de 100 bilhões de reais, valor estimado para custear todo o sistema. Outras fontes incluem a taxação de aplicativos de transporte e a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), nos moldes do SUS, com financiamento tripartite entre União, estados e municípios.
A proposta representa, em última análise, um projeto de retomada da soberania urbana e digital. Trata-se de reconquistar o controle público sobre os fluxos, os dados e a infraestrutura que definem o acesso à cidade, tratando a mobilidade não como um algoritmo de lucro, mas como a base para a cidadania.
A viabilidade não é apenas fiscal, mas econômica e social. Um estudo da UFMG para Belo Horizonte concluiu que cada 1 real investido na gratuidade geraria um retorno de 3,89 reais para a economia local, além de um impacto deflacionário positivo para as famílias de baixa renda. A experiência de mais de 100 municípios que já adotaram a medida, como Caucaia, vizinha a Fortaleza, mostra um aumento expressivo no número de passageiros e um aquecimento do comércio local.
A crise em Fortaleza não é o fim da linha, mas um chamado à ação. A trajetória que vai dos esquemas de Cabral à infiltração do PCC demonstra o fracasso de um modelo que privatizou um bem público e o entregou à lógica do lucro e do crime. Continuar nesse caminho é aprofundar a desigualdade. O futuro exige uma mudança de paradigma: desmantelar os oligopólios, fortalecer o controle público e, principalmente, reconceituar o transporte como um direito social fundamental, financiado por toda a sociedade. A Tarifa Zero não é apenas uma política pública, é a via mais coerente para construir cidades mais justas, democráticas e, finalmente, acessíveis a todos.
FONTE: https://www.codigoaberto.net/post/de-cabral-ao-pcc-o-feudo-sobre-rodas-que-sequestrou-o-direito-%C3%A0-cidade