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Deus, Jesus e a justiça social

A fé só faz sentido quando promove o bem, e não quando serve de pretexto para a injustiça, o fanatismo ou a crueldade em nome de Deus.

As razões que me levam a escrever as seguintes linhas não têm nada a ver com intransigência ou intolerância em relação a pessoas que se sintam vinculadas a crenças religiosas. Não há nenhuma possibilidade de que eu me indisponha com alguém apenas devido à sua religiosidade.

Ao vasculharmos a memória histórica, encontramos muitos exemplos de pessoas que, inspiradas em sua fé em Deus, não hesitaram em arriscar e entregar suas próprias vidas para fazer o bem aos necessitados. Contudo, há também inúmeros casos em que pessoas foram levadas a matar de modo cruel e impiedoso outros seres humanos em função dessa mesma fé.

A dedução que consigo extrair do que acabo de mencionar é que a crença e a fé em Deus, por si só, não tornam ninguém digno, bondoso e virtuoso, nem, tampouco, seu oposto. Na realidade, tudo depende de qual é o entendimento que cada um tem do significado de Deus. Para mim, quando esse entendimento induz pessoas a se dedicarem à luta por causas do bem, bendita seja essa fé. No entanto, essa regra jamais deveria valer no sentido contrário.

Embora eu agora não tenha crença religiosa, nasci e cresci no seio de uma família católica, frequentei assiduamente as aulas de catecismo, fiz a primeira comunhão e permaneci sendo um convicto jovem religioso até bem avançada a adolescência. Até que, num certo momento, passei a me questionar. E o interessante é que esse questionamento começou a ocorrer a partir de meu relacionamento com outros jovens, colegas de trabalho que faziam parte de movimentos católicos de base daquele tempo.

Assim, pela primeira vez, ouvi falar de Jesus sob outro ponto de vista. Tomei conhecimento de uma figura humana sobre a qual pouco sabia até então. E, devo confessar, essa nova imagem de Jesus se apoderou de minha mente e, em consequência, também exerceu um papel determinante em meu afastamento da religião.

Na verdade, à medida que me sentia capturado pelos ensinamentos de um ser inteiramente dedicado à luta por justiça e solidariedade, aqui mesmo em nosso espaço terrenal e com prioridade inequívoca para com os mais carentes e necessitados, fui me dando conta de que o que menos importava era o fator de crer, ou não, na existência de um ser supremo a quem chamaríamos Deus.

Portanto, curiosamente, foi por meio da intensificação de meus contatos com gente comprometida com as causas de Jesus que comecei a refletir sobre a existência de Deus e sobre a importância ou necessidade de nutrir tal crença. É com base no aprendizado que fui desenvolvendo a partir daí que pretendo dar seguimento ao restante deste texto.

Das lições extraídas do legado de vida de Jesus, cheguei à conclusão de que o que realmente deveria ser considerado desejável e obrigatório por todo e qualquer ser humano é empenhar-se na prática do bem, lutar para que no mundo venha a imperar a justiça, a solidariedade e a fraternidade entre todos; e, por outro lado, combater tudo o que se contraponha a isso. Em decorrência, o que menos importaria seria as pessoas acreditarem ou não numa divindade superior.

Nada poderia ter sido mais impactante do que entender que Jesus não admitia que os escritos do Velho Testamento fossem tomados ao pé da letra, como palavras determinantes, decisivas e definitivas do próprio Deus, cuja validade seria universal e eterna. Pude me dar conta de sua enorme capacidade de refletir e ponderar sobre o significado dos textos, aceitando-os ou rechaçando-os em conformidade com os critérios de justiça e bondade derivados de suas reflexões lógicas. Analisando o comportamento de Jesus ao longo de sua vida, aprendi que não podemos abdicar do uso da razão sob nenhuma hipótese.

Se exercitarmos a exclusiva capacidade humana de raciocinar, jamais aceitaremos que medidas nitidamente de caráter maligno sejam acatadas, ainda que nos sejam apresentadas em nome de Deus. Seria uma absurda contradição com a consistência lógica admitir que o Supremo Ser da Bondade se dispusesse a transmitir diretivas abertamente caracterizadas por sua maldade. Por isso, não encontramos nos Evangelhos passagens nas quais Jesus apareça dando sua concordância a esse tipo de incoerência. Abundam, sim, exemplos do oposto, com sua recusa a seguir preceitos que não lhe pareciam justos ou adequados.

Como em nosso país predominam ramificações do cristianismo, vou citar alguns casos extraídos dos textos sagrados veterotestamentários nos quais há flagrantes violações da coerência esperada de um Deus merecedor de nosso respeito e adesão. De modo algum pretendo ofender os sentimentos de quem segue com sinceridade essas religiões. Minha intenção é mostrar que tais contradições derivam unicamente da atuação dos seres humanos em seus constantes embates na luta social. Por mais que insistam em dizer que os textos foram produzidos pelo próprio Deus, eles são, na verdade, fruto da atividade humana. Evidentemente, discrepâncias semelhantes poderiam ser detectadas em religiões de outras matrizes; porém, em função de nosso contexto específico, essas não serão abordadas.

Gostaria de iniciar com a conhecida passagem bíblica na qual Deus se dirige a Abraão e lhe exige uma prova de fidelidade mediante a disposição de sacrificar seu primogênito, Isaac. Embora Abraão tenha se sentido enormemente constrangido diante daquela ordem tão cruel, sua fé e lealdade absolutas o impeliram a acatá-la, e ele se dispôs a cumpri-la. No entanto, antes que a executasse, foi interrompido por um anjo enviado por Deus. Assim, aquele horrendo crime não se consumou.

No tocante a essa situação, deveríamos fazer uma profunda reflexão e nos questionar: seria admissível que um Deus do bem, o expoente máximo da justiça e da solidariedade, exigisse de uma de suas criaturas uma demonstração de total submissão por meio da prática de um ato tão monstruoso, inegavelmente maligno e perverso? Coisa bem diferente teria sido se a exigência fosse para que Abraão aceitasse entregar sua própria vida para salvar algum inocente.

Ninguém dotado da capacidade de raciocinar e em condições de discernir entre o bem e o mal poderia deixar de refutar uma ordem como aquela. Seria impossível não perceber que semelhante determinação só poderia corresponder a um ser eivado de egolatria, insensibilidade e perversidade.

Uma divindade do bem jamais agiria daquela maneira. Consequentemente, para não deixar dúvidas sobre sua fidelidade ao espírito emanado da bondade de Deus, a prova a ser dada por Abraão teria necessariamente de ser um rotundo e categórico rechaço à obediência cega da ordem criminosa que havia recebido. E, seguramente, esse seria o comportamento que um Deus verdadeiro esperaria dele.

Também não podemos ignorar os textos que fazem referência às orientações que teriam sido dadas por Deus a Josué sobre como tratar a população amalequita em sua invasão para a tomada das terras de Canaã. Devemos recordar que, nessa empreitada bélica, as recomendações expressas transmitidas a Josué foram para que suas forças exterminassem completamente toda a população local, sem poupar nem mesmo as crianças.

Como entender que alguém que acredita sinceramente estar comprometido com o espírito do bem aceite passivamente a determinação de executar uma medida tão diabólica como uma matança generalizada, inclusive de crianças, como algo que possa realmente provir de Deus? Só mesmo com a abdicação total de seu raciocínio crítico, assim como por absoluta ausência de sentimento humanitário.

Outra aberração constante nos textos do Velho Testamento refere-se à alegação de que Deus teria um povo escolhido, ao qual teria oferecido certos privilégios e para o qual teria planos e propostas especiais, como a entrega das terras de certa região.

Tais características, em vez de representar um ser justo e equânime, que respeita, ama e se dedica por igual a todos os seus filhos, indicariam um deus racista, exclusivista, que favorece uns em detrimento de outros. É evidente que um deus desse tipo estaria muito próximo das feições que costumam ser associadas ao diabo. Não à toa, Jesus jamais aceitou essa história de haver um povo escolhido por Deus. Para Jesus e para todos os seus seguidores sinceros que cultivam o uso da razão, o povo de Deus é composto por todos os que almejam e praticam o bem, a justiça e a solidariedade.

Certamente, só após nossa morte física será possível dirimir a dúvida sobre a existência de Deus e a continuidade da vida em um plano espiritual. Entretanto, pessoalmente, não albergo temor ou angústia ante a possibilidade de estar equivocado em meu entendimento atual e que, em vista disso, venha a ser chamado para prestar contas de meus atos.

Tenho plena convicção de que só um Ser que tenha como meta prioritária a conquista e a prevalência da fraternidade, da justiça, da bondade e da solidariedade entre todos os seres humanos merece ser enaltecido, seguido e apoiado. Nenhuma orientação que nos conduza ao caminho da maldade jamais, nunca, em nenhuma hipótese, deve ser acatada, ainda que nos seja transmitida embalada como se fosse de Deus. Um ser que nos ordenasse praticar o mal para fazer valer seu nome não se diferenciaria muito do diabo e, por isso, deveríamos rejeitá-lo sem medo de punições. Não devemos seguir a Deus por medo de punições, e sim por ter o bem como nosso objetivo.

Levando em conta os argumentos que apresentei mais acima e no caso de que eu esteja equivocado e venha a saber que Deus de fato existe, não me atemoriza a possibilidade de ser castigado por minha falta de crença em sua existência. Espero estar preparado para me submeter, resignadamente, a um julgamento que procure avaliar se, durante o transcurso de minha vida, eu me dediquei, ou não, como deveria ter feito, a lutar pelas causas do bem. O Deus verdadeiro jamais me julgaria em função de minha crença, ou descrença, em sua existência. Ele não poderia ser tão egoísta a tal ponto.

Em resumo, não há nenhum impedimento para que pessoas de fé religiosa e os que não tenham religião possam marchar irmanadas na luta por construir um mundo onde prevaleça o bem maior da humanidade. Para os que se inspiram nos exemplos de Jesus, isso deveria ser algo ainda mais fácil de assimilar. Basta esforçar-se para encarar sua própria vida e a vida de seus semelhantes com o mesmo espírito com que Jesus encarava.

FOTO: Pixabay

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/deus-jesus-e-a-justica-social