Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 16 anos lutando pelos jornalistas

Dez dias que abalarão o Brasil

‘A história nos convocou, e fugir dela não é mais opção’, afirma a colunista Paola Jochimsen.

O Brasil está diante de um daqueles momentos raros em que a História respira mais fundo. Estamos vivendo um tempo que parecia improvável, quase inconcebível: o julgamento de um ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, por crimes contra o Estado Democrático de Direito. Para além dos aspectos jurídicos, trata-se de um ato de retratação histórica. Pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, o país encara, de frente, fantasmas que por décadas foram varridos para baixo do tapete.

Se Hannah Arendt escreveu sobre a “banalidade do mal” em Eichmann em Jerusalém, poderíamos dizer que agora assistimos a algo semelhante em escala nacional: o julgamento de Bolsonaro em Brasília. Antes mesmo da Argentina, o julgamento de Adolf Eichmann, em 1961, foi um marco global de responsabilização histórica: mostrou ao mundo que existem crimes tão graves que nenhum “cumprimento de ordens” pode absolver seus autores. No Brasil, a essência é outra, mas o simbolismo é semelhante: um país inteiro olhando para os olhos de quem tentou subverter as suas bases democráticas.

Eichmann foi julgado por arquitetar a destruição de um povo; Bolsonaro, por tentar implodir as bases de uma democracia jovem, frágil e frequentemente ameaçada. Em ambos os casos, o que está em jogo é mais do que a punição individual. É o ato civilizatório de um país que precisa olhar para si mesmo.

Entre a anistia e a memória histórica

Após o fim da ditadura militar, em 1985, o Brasil optou por não enfrentar diretamente os crimes cometidos pelo regime. A Lei da Anistia (1979) concedeu perdão não só aos perseguidos políticos, mas também a torturadores e a agentes do Estado que violaram direitos humanos. Foi uma escolha prática, mas que cobrou seu preço: uma transição lenta, negociada, marcada por silêncios e por uma memória coletiva que preferiu esquecer em vez de encarar os horrores da ditadura.

Essa escolha teve um preço. Ao não punir crimes de Estado, o país naturalizou a ideia de que golpistas podem tudo. Os quartéis nunca foram totalmente afastados da política, e figuras que defendiam a ditadura seguiram ocupando espaços de poder, entre elas Bolsonaro.

Por isso, o julgamento atual carrega um peso histórico imenso: ele representa uma espécie de justiça tardia. Não apenas para os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram vandalizadas, mas para tudo o que Bolsonaro simboliza: o flerte com a ruptura institucional, a disseminação de fake news, a desmoralização das instituições e a tentativa explícita de sabotar o sistema eleitoral.

Se o Brasil demorou 40 anos para dar esse passo, nossos vizinhos argentinos foram mais rápidos. O filme Argentina, 1985 retrata o julgamento dos comandantes da ditadura logo após o fim do regime. Na época, muitos diziam que seria impossível processar os militares ou que a sociedade não estava pronta, que poderia haver retaliações. Ainda assim, contra tudo e todos o fizeram.

E fizeram rápido. Em apenas dois anos após o fim da ditadura, a Argentina levou seus generais ao banco dos réus. O Brasil, neste momento, repete com pressa histórica: apenas dois anos após os ataques de 8 de janeiro, Bolsonaro e seus outros sete réus da trama golpista vão ser julgados.

O resultado, espera-se, pode ser semelhante ao argentino: mais do que a condenação de um homem, a reafirmação da democracia. Houve dores, divisões e ameaças, mas nossos vizinhos enfrentaram seus fantasmas e saíram mais fortes. Ao julgar Bolsonaro, o Brasil olha para a Argentina com um misto de admiração e atraso. Estamos, enfim, diante da chance de fazer o que eles fizeram há décadas: dizer que não há perdão para quem atenta contra a democracia.

Mas há uma diferença crucial entre os anos 1980 e 2025. Vivemos na era das redes sociais, em que a verdade disputa espaço com narrativas fabricadas. Bolsonaro não governou apenas com decretos e discursos: ele governou com memes, correntes de WhatsApp e desinformação em escala industrial. Por isso, o julgamento tem um caráter ainda mais complexo. Não se trata apenas de reconstruir os fatos, mas de romper com a ilusão

Não por acaso, o julgamento acontece perto do 7 de setembro, data apropriada pela extrema direita como palco de convocações antidemocráticas. Nos últimos anos, vimos atos que mais lembravam ensaios golpistas do que celebrações da independência. Em 2021, Bolsonaro subiu num palanque para ameaçar o Supremo Tribunal Federal; em 2022, transformou a data nacional em comício. Julgar Bolsonaro neste contexto é mais do que um processo jurídico; é um gesto político, histórico e, talvez, catártico.

O julgamento

O que John Reed viu na Rússia de 1917, ao escrever Dez Dias que Abalaram o Mundo, ecoa simbolicamente no que vivemos agora. Não se trata, claro, de uma revolução socialista, mas da percepção de que certos períodos condensam o peso de décadas.

Esses dias de julgamento podem, sim, abalar o Brasil. Não apenas porque decidirão o destino de um ex-presidente, mas porque obrigam a sociedade a se perguntar: que país queremos ser? Continuaremos flertando com o autoritarismo ou reafirmaremos que a democracia é cláusula pétrea?

Não podemos esquecer do que aconteceu durante a pandemia de Covid-19.  Mais de 700 mil brasileiros morreram enquanto Bolsonaro debochava de pacientes com falta de ar, promovia medicamentos ineficazes, atrasava a compra de vacinas e propagava a desinformação de forma deliberada. A CPI da Pandemia expôs omissões graves e corrupção nos mais variados setores, revelando um governo que fez da tragédia um palco político. Ainda que esses crimes não estejam formalmente no centro do julgamento, eles devem ser relembrados constantemente, afinal o projeto de poder da extrema direita é baseado na desinformação, na negligência e no desprezo pela vida. Será que vamos, enfim, lavar nossa alma? Veremos a justiça ser feita ou repetiremos o velho roteiro da impunidade?

O fato é que não estamos lendo sobre Eichmann na Alemanha do pós-guerra nem assistindo a um filme sobre a Argentina dos anos 1980. É aqui, é agora, é o nosso Brasil. A história nos convocou, e fugir dela não é mais opção. Que esses dez dias não sejam apenas os que abalarão o Brasil, mas aqueles que o reconstruirão definitivamente.

Foto: Ton Molina / STF

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/dez-dias-que-abalarao-o-brasil#google_vignette