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Doutrina Trump anuncia um Vietnã na Venezuela

O cerco militar à Venezuela repete a lógica das guerras preventivas do século XX. Mas, no século XXI, o espetáculo é tão importante quanto o alvo.

O cerco à Venezuela revela a nova face da Doutrina Monroe — rebatizada pelo professor Richard D. Wolff como ‘Doutrina Trump’ — e anuncia um ciclo de intervenção política e militar que o Brasil sob Lula reage em nome da soberania latino-americana.

O “ensaio” de invasão à Venezuela 

Enquanto os Estados Unidos reativam o velho princípio de “América para os americanos” (do Norte), Donald Trump transforma a América Latina em laboratório de sua própria doutrina e põe na cabeça a coroa de “Imperador do mundo.” O ensaio de invasão à Venezuela é um recado direto a Lula e aos governos soberanos do continente.

Quase duzentos anos depois da Doutrina Monroe (1823), o velho lema ganhou nova tradução: “America First” (do Norte). Sob o comando de Donald Trump, a retórica de defesa da liberdade reaparece travestida de “guerra ao narcoterrorismo”. A extrema-direita e a direita liberal brasileira, órfãs de Bolsonaro, já se movem para oferecer ao império um novo “capataz tropical.” 

Vietnã na América Latina

O cerco militar à Venezuela — oficialmente sob o pretexto de “combater o narcoterrorismo” — repete a lógica das guerras preventivas do século XX. Mas, no século XXI, o espetáculo é tão importante quanto o alvo. Cada movimentação de porta-aviões e navios de guerra próximos da Venezuela e da Colômbia, cada bombardeio de pequenos barcos de pesca no Caribe, cada ameaça pública de Trump funciona como mensagem cifrada a governos que insistem em manter soberania sobre seus recursos e suas alianças.

Em entrevista recente, o professor João Cezar de Castro Rocha advertiu: “Podemos estar assistindo a um Vietnã na América Latina, chamado Venezuela”, ao comentar o deslocamento de tropas e bombardeios de barcos de pesca ordenados por Trump sob o pretexto de combater ‘narcoterroristas’. Para Castro Rocha, a escalada militar dos EUA evidencia a possibilidade real de uma invasão terrestre com o objetivo de derrubar o governo de Nicolás Maduro.

A Venezuela é o laboratório da Doutrina Trump

O professor Richard D. Wolff, economista norte-americano e analista crítico do imperialismo, também alertou que o Caribe se tornou o Vietnã simbólico da era Trump. Em entrevista ao portal geopolítico Glenn Diesen, Wolff descreve uma operação silenciosa — mas não menos sangrenta — conduzida por Washington sob a bandeira do “combate ao narcoterrorismo”.

O alvo imediato é a Venezuela; o objetivo mais amplo, restaurar a hegemonia militar dos Estados Unidos sobre o hemisfério. Segundo Wolff, o que se apresenta como “campanha antinarcoterrorista” é, na prática, uma ofensiva geopolítica com fins de controle territorial e energético.

Desde setembro, a região do Caribe vem sendo palco de ataques letais contra embarcações venezuelanas e caribenhas, alguns deles barcos de pesca identificados por comunidades locais como civis, abatidos por drones e mísseis de precisão norte-americanos. A Casa Branca fala em “barcos suspeitos”; Caracas denuncia uma “matança em alto-mar”, levada ao Conselho de Segurança da ONU como violação do direito internacional.

Doutrina Trump: o imperialismo de nova geração

Wolff interpreta esses ataques como um ensaio da chamada Doutrina Monroe 2.0 — ou, em suas palavras, “a Doutrina Trump”. É a reedição do princípio colonial que, há dois séculos, autorizava os EUA a se considerarem “donos naturais” da América Latina, agora revestido de novas narrativas: “narcoterrorismo”, “combate ao crime transnacional” e “defesa da democracia”. Sob esse manto moral, a violência torna-se preventiva, o ataque vira política de segurança, e o mar do Caribe, um campo de testes para futuras intervenções na América Latina.

“A retórica do narcoterrorismo é o novo passaporte da guerra”, afirma Wolff. “Substitui o anticomunismo da Guerra Fria e serve ao mesmo propósito: justificar o uso da força para conter qualquer governo que ouse agir de forma soberana.”

Ao relacionar esses episódios ao passado vietnamita, o economista sublinha que, assim como no Vietnã dos anos 1960, o inimigo é antes ideológico que militar. A Venezuela cumpre, neste roteiro, o papel de exemplo: uma nação que insiste em manter o controle de suas reservas de petróleo e que, por isso, deve ser “disciplinada”.

A Doutrina Trump, conclui Wolff, é a Doutrina Monroe reprogramada pela inteligência artificial e pela indústria bélica do século XXI — um imperialismo de nova geração que opera simultaneamente no campo militar, financeiro e digital.

Bukele, o ditador-modelo para a América Latina

Em El Salvador, Nayib Bukele converteu o Estado de direito em laboratório de um autoritarismo com estética importada. Prisões em massa, censura, culto à personalidade e manipulação digital. O “modelo Bukele” é hoje o preferido de Trump para exportação na América do Sul.

A extrema-direita brasileira acompanha e manifesta seu apoio, amplo, geral e irrestrito. Recentemente, parlamentares bolsonaristas organizaram uma missão oficial a San Salvador para “estudar” o sistema carcerário salvadorenho. O discurso é o mesmo: “tolerância zero”, “guerra ao narcoterrorismo”, “Deus acima de todos”. Mas o que está em jogo não é segurança — é controle político e medo social.

O “modelo Bukele” é a versão latino-americana do que Steve Bannon nominou de “democracia iliberal”, exemplo consagrado por Levitsky e Ziblatt em ‘Como as democracias morrem’: controle ditatorial sobre os três poderes e eleições formalmente livres, mas dirigidas. Tudo isso somado a invasão e prisões arbitrárias em comunidades periféricas, rajadas de metralhadora, tiro de fuzil, bomba, tortura, morte, sangue e lágrimas.

O Brasil como peça-chave

Com Jair Bolsonaro condenado e inelegível, o império precisa de um novo operador local. Atento às eleições presidenciais brasileiras de 2026, Trump preferiria ter em Brasília um “brother”, alguém que combine fidelidade ideológica e submissão estratégica.

Por enquanto, as fichas da extrema-direita se voltam para Tarcísio de Freitas — o governador de São Paulo, que usa o boné do MAGA (Make America Great Again) e tenta se equilibrar entre a imagem de gestor técnico e o aceno ao eleitorado radical.

A extrema-direita e a direita liberal ainda não decidiram se enfrentam Lula com candidato único ou não. Esperam o 31 de março, prazo máximo para desencompatibilização de candidatos rumo à eleição de outubro de 2026, As pesquisas apontam para a reeleição de Lula — o que preocupa, e muito, o “imperador Trump”. Ele prefere algum Bukele, mas pode ser um Milei também, enquanto ameaça a Venezuela e todo o continente latino-americano com invasão no estilo Vietnã dos anos 1960.

O que está em disputa

O Brasil, com suas imensas reservas de petróleo e terras raras, é visto em Washington como a joia estratégica do hemisfério sul. Controlar o Brasil é controlar o acesso a recursos vitais para a nova economia tecnológica e, ao mesmo tempo, conter a influência da China no Atlântico Sul. Por isso, a Doutrina Trump combina diplomacia coercitiva, pressão comercial, desinformação e tentativa de desestabilização política. E, é claro, o uso do porrete “Big Stik” da mais poderosa nação militar do planeta.

O discurso de “combate ao narcoterrorismo” serve como código moral para justificar intervenções diretas ou por procuração. A cada vez que um político brasileiro repete essa retórica, reproduz a linguagem do império e ajuda a preparar o terreno simbólico para uma nova forma de dependência.

Lula reage: “Somos uma região de paz e queremos permanecer assim”

Durante a IV Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia (UE), realizada neste domingo (9) em Santa Marta, Colômbia, o presidente Lula reagiu às recentes ameaças de Trump contra a Venezuela. E reforçou o compromisso do Brasil e da região com a paz e o respeito ao direito internacional.

Lula ressaltou que a América Latina e o Caribe devem manter-se unidos diante de pressões externas.

“Ameaça de uso da força militar voltou a fazer parte do cotidiano da América Latina e do Caribe. Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar intervenções ilegais”, afirmou o presidente. E completou:

“Somos uma região de paz e queremos permanecer em paz. Democracias não combatem o crime violando o direito internacional”.

De mãos dadas com o mundo

Enquanto Trump sonha em redesenhar o mapa político da América Latina, Lula segue desenhando o mapa diplomático do planeta. Mais de 40 chefes de Estado e representantes de cerca de 140 países estão de mãos dadas na foto oficial da COP30, momento simbólico da conferência, que começou nesta segunda-feira, 10, e vai até o dia 21 de novembro.

Na conferência, realizada em Belém, no meio da Amazônia brasileira, o presidente Lula aparece entre líderes mundiais — seus convidados — reafirmando a centralidade do país nas discussões sobre clima, soberania e transição energética. Talvez uma resposta simbólica à prepotência bélica de Trump. A mensagem do presidente é clara: o Brasil não fala em guerra, destruição e morte. Fala na vida no Brasil, na América Latina, no planeta Terra, no futuro da humanidade.

Trump, convidado pessoalmente por Lula para comparecer ao encontro, recusou o convite. O anfitrião estará no centro da foto oficial — e no centro do mundo — de mãos dadas com os líderes globais e seus representantes.

Na abertura da COP30, nesta segunda-feira (10), em Belém, o presidente Luiz Ignácio Lula da Silva envia mais uma mensagem direta aos senhores da guerra:

“Se os homens que fazem guerra estivessem aqui nessa COP, eles iriam perceber que é muito mais barato colocar um trilhão e trezentos bilhões de dólares para a gente acabar com o problema que mata, do que colocar dois trilhões e setecentos bilhões de dólares para fazer guerra como fizeram ano passado.”

Foto: RS/Fotos Públicas

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/doutrina-trump-anuncia-um-vietna-na-venezuela