A financeirização no Brasil assumiu características endógenas e dinâmicas.
O objetivo deste artigo é analisar o circuito causal entre finanças globais, política monetária e desindustrialização no Brasil, situando o país como uma potência intermediária e funcional na divisão internacional do trabalho. O caráter primário-exportador e rentista da economia brasileira, longe de refletir um atraso estrutural, configurou uma forma híbrida e adaptativa de desenvolvimento, marcada pela combinação entre modernização agroindustrial, financeirização endógena e integração produtiva às cadeias globais.
Com base em uma leitura sistêmica da globalização, identifico a coexistência de dependência externa e autonomia relativa, destacando o papel do Estado, das instituições financeiras públicas e da demanda chinesa como vetores de estabilidade e acumulação. O desafio contemporâneo consiste menos em superar essa inserção e mais em reorientá-la estrategicamente, articulando soberania produtiva, inovação tecnológica e redistribuição de renda.
Desde os anos 1990, a economia brasileira passou por um processo de integração acelerada às finanças globais, cuja alocação de capital se orienta pela maximização do valor das ações das empresas transnacionais, cotadas em bolsas de valores estrangeiras. É impulsionado pela liberalização cambial e pela abertura comercial e de capitais.
Essa inserção resultou na valorização periódica da moeda nacional, na atração de fluxos especulativos de curto prazo e na consolidação de um regime de juros reais elevados. A política monetária, orientada pela lógica da “confiança dos investidores”, promoveu estabilidade de preços, mas também impôs uma trajetória de desindustrialização e concentração financeira.
O ponto de inflexão desse processo reside na reconfiguração da base produtiva e na reversão parcial das conquistas obtidas pelo projeto histórico de substituição de importações. A indústria nacional perdeu densidade tecnológica e controle de capital, abrindo espaço para um novo padrão de especialização internacional: a ascensão de um complexo primário-exportador modernizado como eixo dinâmico da acumulação.
A desindustrialização brasileira não deve ser interpretada apenas como declínio. Ela expressa uma mudança qualitativa de inserção na economia mundial. A desnacionalização de setores estratégicos — automotivo, químico, eletroeletrônico, bens de capital — conduziu a uma reorganização da pauta de importações e exportações, consolidando a dependência de insumos e tecnologias estrangeiras.
Entretanto, essa dependência se deu sob forma funcional e ativa, com o Brasil participando das cadeias produtivas globais como fornecedor de recursos estratégicos e produtor de bens intermediários. Tal integração permitiu preservar competitividade em segmentos vinculados ao agronegócio, à mineração e à energia, ainda com menor agregação industrial de valor.
O regime de juros altos e de câmbio valorizado estimulou a intermediação financeira e desincentivou o investimento produtivo, reforçando o poder do sistema financeiro. Contudo, a atuação do Estado brasileiro — por meio do Banco Central, dos bancos públicos comerciais e do BNDES — assegurou mecanismos de compensação macroeconômica capazes de evitar colapsos cambiais e ampliar o crédito interno.
A política monetária, assim, operou de forma paradoxal: subordinada à lógica global do capital financeiro, mas funcional para a estabilidade e o financiamento doméstico. A financeirização dinâmica não eliminou a capacidade estatal, apenas a deslocou para novos instrumentos de intermediação e controle.
Paralelamente à fragilização industrial, o Estado brasileiro impulsionou um processo vigoroso de modernização do setor primário. A Embrapa protagonizou a inovação tecnológica agropecuária, adaptando o cerrado e ampliando a produtividade de grãos e proteínas animais. O BNDES, através do Moderfrota, fomentou a mecanização e a modernização do parque de máquinas agrícolas.
O resultado foi a consolidação de um complexo agroindustrial competitivo e intensivo em tecnologia, capaz de gerar superávits comerciais estruturais e assegurar a acumulação de divisas, reduzindo a vulnerabilidade externa.
A entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, marcou um ponto de viragem. O “boom das commodities” elevou a demanda global por minério de ferro, soja e petróleo, beneficiando diretamente a economia brasileira. Empresas como Vale e Petrobras reforçaram sua presença internacional, enquanto o agronegócio se tornou o principal vetor de expansão das exportações.
Esse ciclo favorável permitiu o acúmulo histórico de reservas internacionais e a consolidação de uma autonomia cambial relativa, rompendo com o padrão de vulnerabilidade externa que caracterizara as décadas anteriores. O país, pela primeira vez desde os anos 1970, passou a dispor de margens de manobra diante das oscilações do sistema financeiro internacional.
A financeirização no Brasil assumiu características endógenas e dinâmicas, distintas do parasitismo financeiro típico das economias dependentes.
O crescimento dos fundos de pensão e previdência complementar privada canalizou a poupança dos trabalhadores para o financiamento de longo prazo, ampliando o crédito interno e fortalecendo o mercado de capitais nacional.
Essa estrutura possibilitou o financiamento doméstico do investimento, reduzindo a necessidade de endividamento externo. O sistema financeiro brasileiro, altamente sofisticado e regulado, transformou-se em um instrumento de estabilidade e modernização, e não apenas de captura rentista.
Da interação entre finanças globais, modernização agroindustrial e financeirização endógena resultou um modelo híbrido de desenvolvimento:
- primário-exportador e tecnológico, pela integração competitiva nas cadeias globais de alimentos, energia e minerais;
- financeiramente autônomo, graças à capitalização doméstica e às reservas internacionais;
- industrialmente funcional, embora dependente de matrizes tecnológicas externas.
Esse modelo caracteriza o Brasil como potência intermediária sistêmica: uma economia capaz de articular dependência e autonomia, vulnerabilidade e resiliência, integração global e soberania parcial. Não se trata, portanto, de uma economia periférica, mas de um nó estratégico na rede global de acumulação capitalista, com peso geopolítico e capacidade de regulação endógena.
O caráter primário-exportador e rentista da economia brasileira deve ser interpretado como forma histórica específica de desenvolvimento adaptativo, e não como expressão de atraso. A questão central não é romper com a inserção global, mas redefini-la politicamente, mobilizando as capacidades nacionais em ciência, tecnologia e finanças para reconstruir uma base produtiva soberana e socialmente inclusiva.
O Brasil encontra-se, assim, diante de um dilema estratégico: transformar seu hibridismo estrutural em autonomia estratégica de longo prazo, capaz de conjugar competitividade global com desenvolvimento interno e equidade social.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/entre-a-financeirizacao-global-e-a-soberania-economica