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Entre a Paz e o Abandono: O Dilema de Zelensky

A paz que Trump deseja alcançar não é a paz baseada na segurança europeia ou no direito internacional, mas a paz segundo o cálculo estratégico.

A guerra da Ucrânia entrou, neste fim de 2025, em seu momento mais delicado desde a invasão russa em fevereiro de 2022. A paisagem geopolítica que sustentava Kiev — apoio militar norte-americano, coesão europeia e uma percorrida narrativa de resistência heroica — começa a mudar diante dos olhos do mundo. E não muda por causa de Moscou, mas por decisão de Washington. Ao apresentar um plano de paz de 28 pontos e exigir que Volodymyr Zelensky o aceite até o Dia de Ação de Graças (quinta feira, 27), Donald Trump inaugura uma nova fase do conflito: não a fase do cessar-fogo, mas a fase do ultimato.

Uma guerra que se alongou além das expectativas

Por três anos, a Ucrânia viveu uma guerra que alterou o sistema de segurança europeu e exauriu suas capacidades econômicas, demográficas e militares. No Ocidente, a euforia inicial de “derrotar Putin” há muito evaporou. Os custos financeiros explodiram, a fadiga da opinião pública cresceu e a percepção de que a Rússia resistiu — militarmente, economicamente e geopoliticamente — mudou o cálculo das grandes potências.

Trump, ao retornar à Casa Branca, não escondeu sua prioridade: reduzir drasticamente o envolvimento dos Estados Unidos na Europa, liberar recursos para o confronto estratégico com a China e reorganizar a política externa em torno de interesses transacionais. A Ucrânia, nesse quadro, deixa de ser missão de segurança coletiva e passa a ser um custo geopolítico que o governo norte-americano deseja encerrar rapidamente — ainda que à custa de Kiev.

O resultado dessa mudança foi a apresentação, na última quinta-feira, de um plano de paz elaborado por dois enviados pessoais — Steve Witkoff (dos EUA) e Kirill Dmitriev (da Rússia). O plano exige que a Ucrânia renuncie a território, aceite severas limitações às suas forças armadas e proíba presença de tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em seu território. Não é apenas uma proposta: é um redesenho da Ucrânia pós-guerra, moldado fora da OTAN, fora da União Europeia e fora das instituições multilaterais.

A pressão pública sobre Zelensky

As declarações de Trump neste sábado, dadas diante da Casa Branca, foram mais que um aviso: foram uma tentativa explícita de constrangimento. Deu ao presidente ucraniano dois caminhos — aceitar o pacote até quinta-feira ou “continuar lutando com todas as suas forças”, desta vez sem garantias de apoio norte-americano.

Mesmo ao afirmar que o plano “não é final” e que deseja “paz há muito tempo”, Trump reforçou o caráter unilateral da iniciativa. Ao transformar um acordo de dimensões históricas em uma corrida contra o relógio, o governo coloca Zelensky entre duas escolhas impossíveis: ceder em pontos considerados intocáveis pela sociedade ucraniana ou arriscar o abandono de seu principal aliado militar.

A vulnerabilidade política do presidente ucraniano fica exposta. O país enfrenta desgaste interno, perdas militares constantes, fuga de mão de obra, frustrações com o comando político e um cansaço profundo da população. Nada disso passou despercebido por Washington. Zelensky sabe que resistir ao ultimato pode significar perder não apenas armas e financiamento, mas sua própria base de sustentação interna.

A resposta europeia: a primeira fissura aberta entre EUA e Europa

A Europa reagiu com uma velocidade rara. À margem da reunião do G20 em Johanesburgo, líderes como Emmanuel Macron e Friedrich Merz articularam uma contraproposta — não para desafiar Putin, mas para desafiar Trump. A versão europeia devolve à Ucrânia controle de infraestruturas críticas como Zaporizhzhia e Kakhovka, assegura navegação plena pelo Dnieper e, sobretudo, não impõe limitações às Forças Armadas de Kiev.

Segundo reportagem exclusiva do The Washington Post — corroborada por diplomatas europeus ouvidos pelo Político EuropeDer Spiegel e Le Monde — a França e a Alemanha elaboraram uma contraproposta que corrige os pontos mais sensíveis do plano norte-americano. O documento europeu devolve à Ucrânia o controle de duas infraestruturas estratégicas cuja importância raramente é compreendida em toda a sua dimensão: a Usina Nuclear de Zaporizhzhia e a Barragem de KakhovkaAmbas se tornaram, ao longo da guerra, símbolos da vulnerabilidade estrutural do país.A Usina Nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa, está ocupada por tropas russas desde março de 2022. Além do óbvio risco nuclear, seu controle significa gerir parte substancial da energia elétrica do sul da Ucrânia — inclusive para regiões anexadas por Moscou. Devolver Zaporizhzhia a Kiev é, portanto, restaurar soberania energética e evitar que a Rússia utilize a usina como instrumento permanente de pressão.Já a Barragem de Kakhovka, localizada no Rio Dnieper, era responsável por abastecer de água a Crimeia, irrigar vastas áreas agrícolas e regular o fluxo hídrico que sustenta o Canal da Crimeia do Norte. Sua destruição em 2023 — uma das cenas mais dramáticas da guerra — inundou cidades inteiras e devastou ecossistemas, deixando a região sob disputa até hoje. Recolocar Kakhovka sob administração ucraniana significa recuperar capacidade hídrica, retomar controle territorial e reconstruir um eixo vital para a navegação interior.O documento preparado por Paris e Berlim vai além disso. Ele garante à Ucrânia “passagens desimpedidas” ao longo do Rio Dnieper, artéria central que corta o país de norte a sul, e devolve a Kiev o controle da Bacia de Kinburn, um estreito fundamental para o acesso marítimo a Mikolaiv e Odessa. Em vez de impor limitações às Forças Armadas ucranianas, como propõe o plano elaborado pela Casa Branca com mediação russa, a versão europeia preserva a capacidade defensiva do país — premissa vista como não negociável por Bruxelas, Paris e Berlim.Trata-se, em essência, de uma reação política clara: a Europa não aceita um acordo que deixe a Ucrânia desarmada e dependente, tampouco um plano que seja percebido como concessão direta aos interesses estratégicos de Moscou. A contraproposta representa a tentativa de evitar que o “acordo de paz” de Trump se converta, na prática, numa tutela geopolítica sobre um país devastado pela guerra e à beira do isolamento diplomático.

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É um gesto político significativo. Pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as potências europeias se veem obrigadas a formular uma estratégia de segurança que não coincide com a dos Estados Unidos. A era em que Washington ditava o rumo da política no continente parece estar encerrando, não por vontade europeia, mas pela nova orientação dos EUA: custo, transação, pragmatismo, pressa.

A reunião marcada para domingo (23), em Genebra, com França, Alemanha e Reino Unido, é mais um sinal de que a Europa tentará negociar uma solução que preserve algum grau de soberania ucraniana — mesmo sabendo que seu peso militar é insuficiente sem o apoio norte-americano.

Moscou observa — e ganha

O comportamento russo diante do plano de Washington, confirma uma realidade incômoda: a guerra deixou a Rússia mais forte do que quando começou. Putin afirmou que o documento pode servir “como base para um acordo definitivo”, deixando claro que Moscou já obteve ganhos significativos.

Desde 2022, a economia russa se reorientou para a autossuficiência industrial, ampliou laços com a China e com o Sul Global, diversificou comércio, expandiu investimentos militares e provou que suporta sanções de longo prazo. A narrativa ocidental de “asfixia” se revelou ilusória. Hoje, quem se encontra pressionada por prazos, custos e desgaste diplomático não é Moscou — é Kiev, seguida de perto pelos europeus.

A Rússia sabe disso. E sabe que o ultimato de Trump enfraquece a frente ocidental. Ao apoiar a ideia de que o plano pode servir de “ponto de partida”, Putin sinaliza disposição para negociar a partir de uma posição de vantagem ampla, conquistada no campo de batalha e consolidada pela erosão do consenso ocidental.

A diplomacia transacional e o futuro da segurança global

O que está em jogo não é apenas o destino da Ucrânia — é a redefinição da arquitetura de segurança internacional. Ao pressionar Zelensky publicamente, Trump envia um recado ao mundo: os EUA não mais assumem compromissos indefinidos com seus aliados e não pretendem financiar guerras prolongadas em nome de princípios políticos. A lógica agora é negocial, pragmática e imediatista.

Isso tem implicações profundas. Em Tóquio, Seul e Taipei, cresce o temor de que a aliança norte-americana seja igualmente contingente. Na Europa, o cenário de uma política externa fragmentada deixa de ser hipótese e se torna realidade. Para o Sul Global, confirma-se a leitura de que o mundo caminha para um sistema multipolar onde o poder se distribui por coalizões fluidas, interesses circunstanciais e acordos bilaterais informais, muitas vezes opacos.

Nesse contexto, a Ucrânia se converte em símbolo: não da resistência heroica, mas dos limites do apoio ocidental em guerras prolongadas.

Entre a paz e o abandono

O dilema de Zelensky é, na verdade, o dilema do Ocidente. A paz que Trump deseja alcançar não é a paz baseada na segurança europeia ou no direito internacional, mas a paz segundo o cálculo estratégico momentâneo dos Estados Unidos.

A Ucrânia entra nessa negociação mais frágil do que jamais esteve. A Rússia, mais forte. A Europa, mais desunida. E os EUA, mais impacientes.

Quando um acordo emerge nesses termos, ele não encerra a guerra — apenas redefine sua forma. O risco é que, ao buscar “pôr fim ao conflito”, Washington esteja inaugurando uma era de instabilidade maior, com fronteiras indefinidas, ressentimentos profundos e uma Europa lançada à tarefa inédita de se defender sem o guarda-chuva americano.

Zelensky talvez aceite o plano. Talvez consiga adiar. Talvez tente resistir. Mas, qualquer que seja a escolha, o fato já está consumado: a Ucrânia está sozinha como nunca esteve. E o Ocidente vive, diante de si, a revelação desconfortável de que os Estados Unidos não pretendem mais pagar o preço de liderar a ordem internacional que eles mesmos criaram.

FOTO: Wikimedia Commons

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/entre-a-paz-e-o-abandono-o-dilema-de-zelensky