Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 16 anos lutando pelos jornalistas

Entre o portão de ferro e o portão eletrônico

O caminho da punição no Brasil passa pela miséria das prisões e pelo conforto dos privilegiados — dois países separados pela mesma sentença.

Nem toda sentença judicial no Brasil termina em cela. A lei prevê que um condenado pode cumprir pena em regime fechado, semiaberto, aberto — ou, em casos excepcionais, em prisão domiciliar. A definição depende da gravidade do crime, do histórico do réu e da decisão judicial fundamentada na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).

O país possui mais de 1.500 unidades prisionais entre estaduais e federais. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e do World Prison Brief, o Brasil registra 672.696 pessoas presas para uma capacidade total de 490 mil vagas, um déficit de 182 mil e uma taxa de superlotação de 137%. A média nacional é de 319 presos por 100 mil habitantes, a terceira maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Nos EUA, há cerca de 1.254.200 presos sentenciados em prisões estaduais e federais, o equivalente a 541 por 100 mil habitantes — a mais alta taxa entre países desenvolvidos. Já a China divulga oficialmente 1,7 milhão de presos, embora estimativas independentes indiquem até 2,3 milhões, com taxa aproximada de 119 por 100 mil habitantes. O Brasil ocupa uma posição intermediária, mas com condições de encarceramento muito piores que as das duas potências.

As cinco penitenciárias federais brasileiras — Catanduvas (PR), Campo Grande (MS), Mossoró (RN), Porto Velho (RO) e Brasília (DF) — abrigam pouco mais de 1.000 presos. São unidades de segurança máxima, destinadas a criminosos de alta periculosidade. Já as prisões estaduais concentram 96% da população carcerária e enfrentam colapso: superlotação, escassez de agentes, violência endêmica, doenças e ausência de trabalho ou estudo.

A rotina no regime fechado é a tradução física da punição: acordar antes das seis, revista, contagem, alimentação sob vigilância. O preso cumpre dias que não passam. Em muitos casos, há três pessoas em celas projetadas para uma. O tempo se torna castigo e o castigo, sobrevivência.

A prisão domiciliar, em contraste, oferece um regime brando. O condenado permanece em casa, sob vigilância eletrônica e restrição de deslocamento. A lei permite esse benefício apenas em casos específicos — idade avançada, doença grave, gestação, deficiência física — ou quando não há vagas no regime aberto. Mas a execução é falha: faltam fiscais, sobram brechas. O resultado é um regime desigual, aplicado de forma generosa aos poderosos e severa aos anônimos.

A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 11 de setembro de 2025, reacendeu o debate. Sentenciado a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, tornou-se o primeiro ex-mandatário brasileiro a enfrentar pena tão longa. O caso levanta a questão essencial: seria legítimo cumprir uma condenação dessa gravidade no conforto do lar? A resposta jurídica pode ser complexa; a ética, não.

A lei é clara — a prisão domiciliar não se destina a quem tenta subverter a democracia. No entanto, cresce o discurso de que o ex-presidente deveria permanecer em casa “por segurança”. Essa justificativa, mais política que jurídica, ameaça transformar a lei em cortina moral para encobrir privilégios.

Há outro fator que acende o alerta: quatro filhos do ex-presidente exercem mandatos eletivos — um senador, um deputado federal e dois vereadores. Caso o pai cumprisse pena domiciliar, o que impediria um deles de levar um celular pessoal e permitir comunicações políticas disfarçadas de conversas familiares? Nenhum monitor eletrônico é capaz de conter a influência simbólica de quem foi chefe de Estado.

A democracia se sustenta sobre o princípio da isonomia penal: o mesmo crime deve gerar a mesma consequência, independentemente de sobrenome ou cargo. Quando o prestígio substitui a punição, a justiça deixa de ser balança e torna-se vitrine.

Outros países enfrentam dilemas semelhantes, mas respondem com firmeza. Na França, o ex-presidente Nicolas Sarkozy foi condenado em 25 de setembro de 2025 a cinco anos de prisão, sendo dois em regime fechado, por corrupção e financiamento ilegal de campanha. Em 21 de outubro, ingressou na prisão de La Santé, em Paris, e, semanas depois, obteve liberdade provisória sob supervisão judicial rigorosa (Reuters, 2025). Nenhuma menção a “prisão domiciliar” por conveniência política.

Nos Estados Unidos, figuras públicas condenadas — de ex-governadores a assessores presidenciais — cumprem pena em prisões federais comuns, com condições adequadas, mas sem privilégios. Na Alemanha, o princípio é o mesmo: o poder passado não isenta o condenado da lei presente.

A experiência internacional inspira soluções concretas. O Brasil poderia criar duas ou três celas especiais em penitenciárias federais para abrigar ex-autoridades com doenças graves ou fragilidade física. Seriam espaços com infraestrutura médica e vigilância reforçada — preservando a dignidade humana, sem transformar a punição em conforto.

Outra hipótese expõe o risco extremo: imagine um sequestrador condenado há mais de 20 anos de prisão, de 70 anos e com múltiplas cirurgias. Se for beneficiado com prisão domiciliar e fugir para uma embaixada estrangeira, cria-se impasse diplomático, impossibilitando o cumprimento da sentença judicial e lesando a sociedade. Para evitar isso, seria necessário estabelecer cooperação internacional imediata, revogação automática da domiciliar e monitoramento permanente.

A desigualdade no cumprimento de penas é uma ferida aberta. No andar de cima, tornozeleiras discretas; no andar de baixo, algemas enferrujadas. O Brasil vive entre dois extremos: a miséria e o privilégio. A cada caso emblemático, a justiça revela se está a serviço da República ou dos seus donos.

O equilíbrio entre humanidade e punição define o caráter de uma nação. Quando o cárcere se torna símbolo de desigualdade — e a pena se transforma em extensão do poder —, o país todo cumpre uma sentença moral.

A Constituição de 1988 assegura que todos são iguais perante a lei. O desafio é fazer com que essa igualdade sobreviva ao portão de ferro das prisões — e também ao porteiro eletrônico dos condomínios.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/entre-o-portao-de-ferro-e-o-portao-eletronico