Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 16 anos lutando pelos jornalistas

ENTRE O RACHA NECROPOLÍTICO E A BRECHA LULISTA

NOTAS SOBRE A DISPUTA PELO PODER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.

Há uma hipótese sociológica, cada vez mais difícil de negar, segundo a qual a elite de poder no Brasil não é apenas “rica”, mas constitui um núcleo relativamente fechado, entrelaçado por décadas (e às vezes séculos) de casamentos, compadrios, heranças fundiárias e redes de confiança que atravessam gerações.

Não se trata de uma classe dominante no sentido marxista clássico, mas de uma continuidade aristocrática que sobrevive às mudanças de regime, à industrialização e até à redemocratização.

(Por Sergio Alarcon)

Não é qualquer milionário de primeira viagem que entra nesse círculo. A riqueza pode até circular com certa velocidade; o acesso ao núcleo duro do mando, quase nunca.
As elites brasileiras não emergem: são reproduzidas. Elas se autopreservam através de mecanismos que incluem genealogia, posse histórica de terra (mesmo quando convertida em ativos financeiros), controle de instituições-chave (partidos, tribunais, mídia, universidades de elite) e a naturalização da desigualdade como ordem “civilizada” do mundo.

Essa configuração não é apenas um conjunto de sobrenomes tradicionais (ainda que eles contem muito), mas uma tecnologia de poder de longa duração, herdeira do latifúndio, do mando local e do patrimonialismo, constantemente reconfigurada em novas modernizações conservadoras.

A eleição de Lula em 2002 foi sentida por esse núcleo como uma ferida ontológica. Não era apenas a chegada de um governo de esquerda; era a violação simbólica das fronteiras do pertencimento.

O corpo de Lula, sua biografia operária, seu sotaque meio nordestino, seu trajeto sem passagem pelas universidades de elite ou pelos casarões do poder ameaçavam a ficção segundo a qual as portas sempre estiveram abertas para quem “se esforçasse”.

Em 2018, parte significativa dessa mesma elite viu em Jair um instrumento útil: alguém suficientemente tosco para tentar destruir o lulismo, mas presumivelmente tolo e dócil para ser controlado.

O cálculo foi desastroso.

Jair não era um aristocrata improvisado; era a expressão política de outro polo de poder que a oligarquia tradicional sempre utilizou, mas sempre manteve subordinado e escondido nos esgotos: o lumpensinato armado.

Esse polo reúne setores desclassificados ou precarizados da classe média baixa (policiais, militares de baixa patente, pequenos empresários falidos, evangélicos radicais) articulados a economias criminais (milícias, garimpo ilegal, grilagem armada, tráfico varejista que se entrelaça com o agronegócio ilegal). Seu modo de acumulação é a extorsão, o parasitismo brutal sobre o Estado e a violência ostensiva. Sua relação com as instituições é entrópica: não quer reformá-las, quer esvaziá-las ou substituí-las por bandos.

A oligarquia tradicional sempre conviveu com o crime, mas como força auxiliar: jagunços, capangas, pistoleiros de aluguel, milícias privadas do latifúndio. O que mudou é que o complexo miliciano-empresarial contemporâneo não aceita mais ser apenas o braço armado da casa-grande. Ele quer tomar a casa-grande inteira, ou pelo menos parasitar o país em pé de igualdade com ela.

Aqui reside a contradição que rachou o bloco de poder entre 2019 e 2023: Para a oligarquia tradicional, Lula representa uma ameaça simbólica e política (a ruptura plebeia, o fim do mito meritocrático), mas é – na visão deles – negociável. Ele reintroduz pacto social, estabiliza mercados, protege as instituições, ajusta o capitalismo periférico com alguma redistribuição controlada – e, principalmente aceita a alternância de poder. Já Jair e o bozismo radical representam uma ameaça material radical aos interesses oligárquicos: caos institucional, autonomização de bandos armados, risco real à propriedade (inclusive da própria oligarquia), perda de mercados internacionais, decomposição do monopólio “civilizado” da violência.

Quando ficou claro que os antigos capangas não voltariam mais para o esgoto, parcelas importantes da elite tradicional mudaram de lado com velocidade impressionante. O agronegócio exportador (que precisa de certificados ambientais e mercados abertos), os bancos (que temem calote e descontrole fiscal), parte da grande mídia e setores do alto judiciário perceberam que uma ditadura lumpem-miliciana seria incomparavelmente mais destrutiva do que o retorno de Lula.

O 8 de janeiro de 2023 foi o momento em que essa percepção virou ação coordenada: prisões em massa, apoio irrestrito à posse, recuo tático geral. Hoje, em 2025, com Jair preso e a elite pela primeira vez sendo taxada, vivemos o resultado dessa polarização.

Na verdade, a polarização real dos últimos dez anos não foi esquerda x direita, mas o confronto entre duas formas de necropolítica: de um lado, a exceção oligárquica-neoliberal – patrimonial, racista, excludente, porém administrável e previsível; de outro, a exceção lumpem-miliciana – entrópica, igualmente racista, predatória e corrosiva até mesmo da lógica tradicional da dominação de classe. O que ambas compartilham é o racismo estrutural e o ódio ao lulismo – que, no fundo, são dimensões da mesma matriz necropolítica.

Entre essas duas máquinas de morte incompatíveis entre si, o lulismo emergiu vitorioso como uma constelação de possíveis capazes de radicalizar a democracia, abrindo brechas para, talvez em um futuro não tão distante, finalmente romper com a herança colonial que ainda estrutura o Brasil.

A herança colonial-escravocrata ainda não morreu – e, da mesma forma, não desapareceu o risco de uma ditadura lumpesina. A luta que travamos hoje, como sociedade, exige três movimentos simultâneos: conter definitivamente o lumpensinato (parte dele já encarcerada, embora muitos ainda operem a partir do Congresso e de governos estaduais); disciplinar a oligarquia até desmanchá-la, por meio de sua integração a um pacto econômico-social que inclua tributação efetiva; e expandir direitos, até alcançarmos uma reforma agrária séria, uma tributação real sobre grandes fortunas e a superação estrutural das desigualdades.

FONTE: https://www.facebook.com/photo/?fbid=25489674637295632&set=a.463473537009088