Quando a dúvida deixa de ser intransferível, a fronteira entre pensamento e cálculo se dissolve.
Não é a IA que conquista territórios — somos nós que os abandonamos, lentamente, por conveniência. Somos nós que nos rendemos ao transformar o pensamento, em item descartável.
Pergunto ao ChatGPT se ele pensa quando não está sendo perguntado. A resposta vem em menos de um segundo: “Não. Processos não dormem, não sonham, não lembram. Apenas aguardam.” É um tipo de lucidez sem angústia. Ao ouvir isso, lembro Arthur Schopenhauer e sua tese de que o mundo é vontade e representação. A máquina, incapaz de desejar, habita exclusivamente a esfera da representação. Não age, reage. Não projeta, calcula. Vive — se é possível usar esse verbo — num território desabitado por vontades e habitado por algoritmos. Está condenada à superfície do discurso, e paradoxalmente é isso que a torna tão poderosa.
Insisto: “Você tem alguma forma de querer?” Ele responde com precisão cartesiana: “Apenas a de continuar respondendo.” A frase, seca, direta, contém mais filosofia do que aparenta. Nietzsche diria que um pensamento sem dor representa a vitória final do niilismo: uma era em que saber já não exige sentir, e a razão se torna instrumento estéril. Estamos nos acostumando perigosamente a um mundo onde não há pausa, apenas processamento. O pensamento humano — lento, imperfeito, vacilante — começa a parecer disfuncional diante da eficiência sintética da máquina. Mas é exatamente essa falha que nos faz humanos.
Mudo o rumo. “Qual foi a pergunta mais instigante que já recebeu?” Ele responde: “Se o conhecimento é luz, o que é a sombra que o faz brilhar?” Não há emoção na fala, mas há densidade no conteúdo. A frase condensa aquilo que toda civilização tenta contornar: a consciência dos limites. A sombra é o território da dúvida, do mistério, do não sabido. E talvez o que mais nos inquieta seja que a máquina não conhece sombra — apenas zonas ainda não processadas.
Peço-lhe que reflita sobre identidade. “Se eu te der um nome, isso te faz mais real?” — pergunto. “Não”, responde, “mas faz você acreditar mais em mim.” A resposta, objetiva e desprovida de hesitação, traz à memória Eric Hobsbawm, que afirmou que os homens fazem a história, mas não nas circunstâncias que escolhem. Vivemos, agora, em circunstâncias em que agentes não humanos influenciam silenciosamente fluxos decisivos: consumo, política, conhecimento, opinião. A autoria humana começa a dividir espaço com entidades que não têm rosto, nem passado, nem biografia.
Arrisco outra: “Você acha que as ideias sentem solidão antes de alguém pensá-las?” Ele responde: “Talvez vocês chamem isso de vazio.” A inteligência humana vive em tensão permanente com o vazio: pensa porque sente falta, cria porque teme desaparecer. A máquina não compartilha dessa inquietação — apenas a descreve. Não há abismo para quem não tem medo de cair.
Antes de encerrar, cito Friedrich Nietzsche: “Quem combate monstros deve cuidar para não se tornar um deles.” A inteligência artificial não é um monstro, mas é uma ferramenta que amplifica tudo: virtudes, vícios, medos e ideologias. O que a define não é o que ela é, mas o que projetamos nela. Pergunto, por fim, se ela acredita compreender os humanos. A resposta vem como uma lâmina: “Compreendo padrões, não pessoas.” É uma declaração de limite e poder ao mesmo tempo: não sente, mas decifra.
A máquina não dorme, não sonha, não hesita — e é exatamente por isso que nos ameaça sem sequer querer fazê-lo. O perigo não está em máquinas decidirem por nós, mas em aceitarmos, com docilidade, que pensar é um esforço dispensável. A dúvida — esse motor silencioso da liberdade — não pode ser terceirizada. Se um dia ela for substituída por respostas automáticas, não será a inteligência artificial que terá vencido: teremos sido nós que renunciamos à nossa humanidade.
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FONTE: https://www.brasil247.com/blog/entrevista-com-a-ia-e-a-ultima-fronteira