O gesto do encontro reposiciona Brasil e Estados Unidos num ambiente onde a Ásia exerce crescente influência.
Entre as florestas úmidas e os arranha-céus de Kuala Lumpur, um encontro pode redefinir as linhas de diálogo da política internacional. Lula e Donald Trump, líderes de polos ideológicos opostos, pretendem conversar durante a Cúpula da ASEAN, no próximo domingo, 26 de outubro. O gesto, ultrapassa a pauta comercial: insere o Brasil e os Estados Unidos num espaço de diálogo que a Ásia passou a representar — um terreno onde pragmatismo e moderação substituem a retórica de confronto.
O encontro foi aventado após uma conversa telefônica entre os dois presidentes. Lula propôs a reunião em “território neutro”, e a Malásia, anfitriã da cúpula asiática, surgiu como escolha natural. Trump, pressionado pela reação popular negativa ao tarifaço de +40% sobre algumas exportações brasileiras, que se traduziram em altas nos preços do café brasileiro e da carne do hambúrguer que pesaram no bolso dos americanos, abriu caminho para o diálogo entre os dois países.
A reunião ocorrerá em momento de tensão uma vez que Trump avança sobre a América Latina desafiando o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, a quem chamou de “líder ilegal de drogas”, e o da Venezuela, Nicholas Maduro, prometendo recompensa de US$ 50 milhões por informações que levem à sua prisão.
A Lula caberá buscar atenuar as tensões com o Brasil e reafirmar sua autonomia diplomática num momento de reacomodação das forças globais.
ASEAN e o equilíbrio asiático
Fundada em 1967, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) reúne dez países — Indonésia, Malásia, Tailândia, Filipinas, Vietnã, Singapura, Brunei, Laos, Mianmar e Camboja — que decidiram cooperar em torno de três eixos: integração econômica, estabilidade política e autonomia frente às potências externas. O bloco é regido pelo princípio do consenso e pela política de não intervenção, o que lhe garante estabilidade e longevidade, raras em outras regiões.
A ASEAN sempre se apresentou como espaço de equilíbrio, e não de hegemonia. Nenhum de seus membros é potência militar global, e todos convivem com economias abertas, regimes políticos distintos e forte diversidade cultural. Sua força está na capacidade de dialogar simultaneamente com China, Estados Unidos, Índia e Europa, sem se subordinar a nenhum. É uma espécie de “diplomacia silenciosa” que, em tempos de polarização, ganhou relevância global.
A ausência da China é, nesse contexto, uma escolha estratégica. A ASEAN foi criada como uma organização regional exclusiva, voltada para os países do Sudeste Asiático — uma sub-região bem definida dentro da Ásia. A China, por sua vez, é uma potência do Leste Asiático, com território, história e escala econômica completamente diferentes das nações fundadoras da ASEAN.
Quando a ASEAN foi criada, o continente vivia os reflexos da Guerra Fria e da Revolução Cultural chinesa. Pequim era vista como ameaça ideológica e expansiva. O bloco nasceu, em parte, como mecanismo de contenção — uma aliança de países médios diante do gigante vizinho.
Com o tempo, essa relação se transformou. A China tornou-se o principal parceiro comercial da ASEAN, mas permanece fora do bloco para evitar que sua escala econômica e populacional desequilibre o conjunto. Em vez de se integrar formalmente, participa por meio de formatos paralelos — ASEAN+1, ASEAN+3 (com Japão e Coreia do Sul) e do RCEP.
A RCEP (Parceria Econômica Abrangente Regional) é o maior acordo de livre comércio do mundo, formado por 15 países da Ásia-Pacífico, incluindo China, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia e os 10 membros da ASEAN. Seu objetivo principal é aprofundar a integração econômica da Ásia-Pacífico. O acordo, assinado em 2020, busca reduzir tarifas, burocracia, simplificar regras de origem para facilitar o comércio eletrônico; lidar com a questão da propriedade intelectual, dos investimentos regionais e da integração de cadeias de suprimentos na região. Esses países juntos representam cerca de um terço da população e do Produto Interno Bruto (PIB) mundiais.
Na prática, a RCEP consolida a liderança econômica da Ásia e fortalece a posição da China como eixo central das cadeias produtivas regionais — ainda que o acordo tenha sido concebido sob liderança conjunta da ASEAN para preservar equilíbrio entre as potências.
É por isso que se costuma dizer que a China não está dentro da ASEAN — a ASEAN é que está dentro da China, em termos de interdependência econômica.Parte superior do formulário
Parte inferior do formulário
Brasil, Estados Unidos e o novo espaço da diplomacia
A escolha da Malásia como palco do encontro é, por si só, um gesto simbólico. País muçulmano moderado e multicultural, situado entre o Estreito de Malaca e o Mar do Sul da China, a Malásia é um ponto estratégico das rotas comerciais globais e um dos eixos da Nova Rota da Seda financiada por Pequim. Ao mesmo tempo, mantém relações sólidas com os Estados Unidos, o Japão e a União Europeia. É, em essência, o reflexo do equilíbrio asiático que hoje substitui as antigas divisões entre Leste e Oeste.
Para o Brasil, participar desse ambiente é coerente com a política externa de diversificação e multilateralismo. Em um mundo de blocos fragmentados e rivalidades reacesas, o Sudeste Asiático oferece uma alternativa: o diálogo como método, o pragmatismo como estratégia.
A presença de Lula nessa cúpula faz sentido. Simboliza a tentativa de reposicionar o Brasil como mediador entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente — um papel que o país, historicamente, sabe exercer com maestria.
E o que leva Trump à Malásia nessa reunião da ASEAN? Donald Trump nunca teve uma participação de destaque efetiva em uma cúpula formal da ASEAN, embora tenha demonstrado repetidas vezes o desejo de associar sua imagem a esses encontros de líderes asiáticos.
A decisão de convidá-lo, segundo fontes do governo da Malásia, foi tomada de forma unânime pelos países-membros, e não se deveu a qualquer relação bilateral específica. Trump foi incluído como chefe de Estado de um país classificado pela ASEAN como “parceiro de diálogo”, categoria que permite a presença de líderes externos, em circunstâncias especiais, mas não lhes confere papel central nas negociações.
A Ásia, que já responde por mais da metade do PIB mundial, tornou-se o espaço onde as potências disputam influência e onde o Sul Global busca ampliar sua voz.
A Ásia como novo centro do diálogo
Se ocorrer, a reunião entre Lula e Trump na Malásia marcará um momento emblemático. Mais do que uma negociação sobre tarifas, representará o reconhecimento da Ásia como palco natural do diálogo global. O que antes se decidia em Washington ou em Genebra agora se negocia em Kuala Lumpur, Jacarta e Seul — cidades que compreenderam que poder, no século XXI, é também capacidade de escutar e articular diferenças.
A diplomacia asiática, com sua discrição e paciência estratégica, oferece uma lição de método num tempo em que o ruído parece dominar a política mundial.
O gesto, do encontro entre Lula e Trump, reposiciona Brasil e Estados Unidos num ambiente onde a Ásia exerce crescente influência — um espaço de diplomacia pragmática, em que o diálogo e a estabilidade passam a valer mais do que demonstrações de força.
Nota: Uma versão anterior desse artigo foi publicada em https://jornalggn.com.br/artigos/lula-e-trump-marcam-encontro-na-malasia-por-maria-luiza-falcao/
FOTO: Daniel Torok/White House // Ricardo Stuckert/PR
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/finalmente-lula-e-trump-devem-se-encontrar-na-malasia
 
															