Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 16 anos lutando pelos jornalistas

“Fizeram um deserto e chamaram-lhe paz” — Tácito escreveu, dois milênios antes de Gaza

Do Império Romano à Faixa de Gaza, a História repete seu drama: chamar de paz o que, na verdade, é apenas a pausa entre duas imensas destruições.

A sentença-título deste artigo é do historiador romano Tácito, escrita há quase dois milênios, que permanece como uma lâmina moral atravessando o tempo. Era sua denúncia contra a brutalidade do Império Romano, que devastava terras inteiras em nome da ordem. Hoje, sobre as ruínas de Gaza, essas mesmas palavras soam menos como lembrança e mais como diagnóstico. Chamam de “paz” o que, na verdade, é apenas o intervalo entre duas destruições.

Não há paz quando o horizonte é um amontoado de destroços. Não há vitória quando o que resta é o silêncio mineral das cidades arrasadas.

O deserto a que Tácito se referia não era apenas geográfico, mas espiritual — o vazio que se instala quando o poder substitui a compaixão, e o cálculo político ocupa o lugar da consciência humana. Transformar a devastação em sinônimo de estabilidade é o triunfo da retórica sobre a verdade, do espetáculo sobre o humano. Gaza é hoje o reflexo moderno dessa antiga advertência: um território que implora reconstrução, mas recebe promessas com prazo de validade diplomática.

Foi nesse cenário que, no dia 13 de outubro de 2025, o mundo assistiu à assinatura do acordo de cessar-fogo entre Israel e Gaza — um daqueles raros momentos em que a História parece suspender o fôlego coletivo. As manchetes falaram em “nova era”, líderes trocaram cumprimentos e as Nações Unidas celebraram um “avanço inestimável”. Mas bastava observar o rosto exausto das famílias que regressavam ao pó de suas casas para perceber que, entre o anúncio e a realidade, ainda existe um abismo que a política não sabe preencher.

Desde janeiro, quando voltou ao poder, Donald Trump tem se empenhado em apresentar-se como artífice de acordos grandiosos — gestos rápidos, coreografias televisivas, palavras de impacto. Mas, na diplomacia, exuberância performática raramente substitui o cimento da consistência.

Basta lembrar a guerra comercial com a China: em 10 de outubro, anunciou tarifas de 100% sobre produtos chineses. Setenta e duas horas depois, recuou dizendo que “não era bem assim” e que “tudo ainda seria negociado”. Um ziguezague que deixou mercados em pânico, aliados perplexos e adversários sorrindo discretamente.

Essa volatilidade não é exceção.

No início de seu segundo mandato, Trump protagonizou sua reunião mais controversa com Volodymyr Zelensky, televisionada para o mundo. Foi ali que afirmou que “a Ucrânia deveria aceitar as condições da Rússia”, inclusive a perda de 20% do território. Palavras que abalaram a confiança de aliados europeus e projetaram a imagem de um Ocidente fraturado, confuso, descrente de si mesmo.

No caso de Israel e Gaza, as idas e vindas são ainda mais gritantes. Desde 21 de janeiro, Trump alterna entre prometer “apoio irrestrito” a Israel e acenar que “os palestinos também merecem um pedaço do paraíso”.

Em fevereiro, anunciou com pompa a ideia de uma “Riviera em Gaza” — um projeto bilionário de marinas e resorts que, segundo ele, seria “a joia do Mediterrâneo”. Nenhum estudo técnico, nenhuma garantia financeira, nenhuma coordenação internacional. Um sonho turístico sobre o terreno ainda coberto de ruínas.

Mas a realidade é inflexível.

Segundo a ONU e líderes ocidentais, a reconstrução de Gaza deverá levar setenta anos e custar cerca de 80 bilhões de dólares — o equivalente a quatro vezes o PIB conjunto da Faixa de Gaza e da Cisjordânia.

Esses números não são apenas estatísticas: são a medida da ferida. O custo da destruição foi tão colossal que o futuro se tornou um projeto para netos ainda não nascidos. Enquanto diplomatas discursam e políticos disputam holofotes, milhões aguardam por um teto, um copo d’água, uma chance de recomeçar. Nenhum resort brilha sobre o pó; nenhuma paz floresce sobre ruínas.

O problema não está na busca pela paz, mas na leveza irresponsável com que certos compromissos são assumidos. A diplomacia não é palco de improvisos.

A confiança nas palavras — e, mais ainda, nos documentos assinados — é a argamassa invisível que sustenta qualquer acordo internacional duradouro. Quando um líder anuncia promessas espetaculosas e logo as desmente, não destrói apenas sua imagem, mas a credibilidade da nação que representa.

Governos previsíveis constroem confiança; governos erráticos cultivam desordem. Propor soluções mágicas, sem amarras institucionais, é acender fósforos sobre um barril de tensões acumuladas.

O que aprendi ao longo dos anos sobre relações internacionais me faz afirmar: a diplomacia, erguida sobre séculos de prudência, não se curva à lógica do marketing político.

Chanceleres e diplomatas sabem que cada gesto é um parágrafo na História — ou um rodapé perdido nas páginas do esquecimento.

A diferença está entre quem compreende o peso do que assina e quem apenas ensaia performances para as câmeras. Por isso, por trás da esperança do cessar-fogo de hoje, permanece o risco de sua própria dissolução amanhã.

A paz não nasce de discursos coreografados, mas de compromissos verificáveis, sérios e persistentes.

Dito isso, o acordo de 13 de outubro pode, sim, ser um marco histórico. Mas, se for apenas mais uma cena do teatro das promessas, será engolido pelo vendaval da História — e o mundo, cansado, voltará a preferir o conforto ficcional de “E o Vento Levou”, de 1939.

Se isso acontecer, não será apenas a palavra de Trump que se desvaloriza.

Será, mais uma vez, a própria ideia de paz que perderá parte essencial de seu significado mais profundo.

Torçamos para que não. A ver.

FOTO: RS/Fotos Públicas

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/fizeram-um-deserto-e-chamaram-lhe-paz-tacito-escreveu-dois-milenios-antes-de-gaza