Engenharia algorítmica cria “distritos mentais”, molda emoções, reorganiza o eleitorado em bolhas e ameaça a soberania democrática brasileira.
Este artigo revela como as plataformas digitais constroem “distritos eleitorais invisíveis” baseados em dados emocionais, traços psicológicos e padrões comportamentais, modulando a opinião pública com precisão cirúrgica. Um alerta urgente ao TSE, ao Congresso e à sociedade: a manipulação algorítmica já opera como crime eleitoral de novo tipo — capaz de decidir narrativas, comportamentos e resultados em 2026.
A eleição invisível
A eleição brasileira de 2026 já começou — e ela não está acontecendo no território físico, mas no território cognitivo. Enquanto o debate público olha para pesquisas, candidatos e alianças partidárias, a disputa real se desenrola em outra camada da realidade: a arquitetura invisível das plataformas digitais, onde algoritmos e capital privado constroem aquilo que chamo de gerrymandering digital. Trata-se de uma técnica sofisticada, capaz de reorganizar o eleitorado não por regiões geográficas, como no gerrymandering clássico, mas por regiões emocionais, grupos de comportamento, padrões de vulnerabilidade psicológica e tendências de engajamento afetivo. Em vez de redesenhar distritos no mapa, as plataformas redesenham o mapa mental do país.
O funcionamento é simples e brutal. Cada pessoa, ao interagir nas redes, deixa um rastro contínuo de sinais: medos, crenças, preferências, horários de maior fragilidade, temas que provocam raiva, conteúdos que geram prazer imediato, assuntos que disparam indignação moral. Esses sinais são processados por algoritmos que segmentam milhões de indivíduos em distritos cognitivos, grupos invisíveis definidos não pela rua onde moram, mas pelo perfil emocional que apresentam. Assim, uma pessoa que engaja com vídeos de violência urbana, notícias policialescas e conteúdos religiosos tende a ser colocada em um distrito mental do medo. Esse distrito recebe, de maneira sistemática, um fluxo contínuo de mensagens sobre “caos”, “invasões”, “corrupção das instituições”, “guerra cultural” e “necessidade de força”. O objetivo não é informá-la — é manter seu estado emocional ativado para direcionar sua percepção política.
Da mesma forma, uma mulher evangélica que consome conteúdos sobre maternidade, família e fé é automaticamente inserida em um distrito de indignação moral. Ela passa a receber narrativas cuidadosamente calibradas sobre “ameaças à família”, “doutrinação”, “destruição de valores” e “ataques à fé”. Não importa se tais ameaças não existem no mundo real; elas existem no seu mundo algorítmico, construído sob medida. Em ambos os casos, não é a realidade que molda o comportamento político — é o filtro emocional criado pelo algoritmo, ajustado por atores que pagam para direcionar, amplificar ou ocultar mensagens específicas.
Essa engenharia comportamental não acontece de forma aberta. Não há aviso, lei, auditoria ou escolha consciente. As pessoas simplesmente acreditam que estão “vendo as notícias”, quando, na verdade, estão recebendo uma versão personalizada da realidade, criada para maximizar vulnerabilidades cognitivas e produzir determinados efeitos políticos. Isso — e não as fake news isoladas — é o verdadeiro mecanismo de manipulação contemporâneo: a reorganização industrial da atenção, do afeto e da percepção coletiva.
Por isso afirmo: a maior eleição do Brasil não se vence apenas nas urnas — vence-se dentro da mente das pessoas, dias, meses e anos antes do voto. A democracia formal continua existindo, mas a disputa por ela foi deslocada para a camada invisível das plataformas, onde dinheiro, dados e algoritmos decidem quem vê o quê, quem acredita no quê e, no limite, quem vota em quem. O gerrymandering digital transforma cada emoção em território político, cada feed em distrito eleitoral e cada sujeito em alvo de uma operação psicológica contínua.
É essa eleição invisível — profunda, sistêmica e silenciosa — que precisamos revelar antes que seja tarde para 2026.
Do território físico ao território cognitivo
O gerrymandering nasceu como uma manobra cartográfica. Durante décadas, seu poder residiu na caneta que redesenhava fronteiras eleitorais nos Estados Unidos: arrastava-se uma linha para concentrar opositores em poucos distritos ou para diluí-los em muitos. A manipulação era física, gráfica, geométrica. A distorção democrática acontecia no papel. Mas o mundo mudou. As democracias do século XXI não são mais mediadas pelo território, e sim pela informação. E, como toda forma de poder, a técnica se adaptou.
A revolução digital deslocou o eixo da política. Em vez de perguntar onde as pessoas moram, as plataformas perguntam quem elas são — ou melhor, quem elas se tornam diante de determinados estímulos. Não interessa mais o bairro, a rua ou a zona eleitoral. Interessa o tipo de conteúdo que provoca raiva, o tipo de notícia que gera ansiedade, o tipo de imagem que aciona culpa, fé, ressentimento ou pertencimento. Com isso, a lógica do gerrymandering deixou de operar no espaço físico e passou a operar no espaço cognitivo. O mapa agora é interno. O território é emocional.
Essa transição é profunda e tem raízes materiais claras. No capitalismo digital, não é o voto isolado que importa, mas a capacidade de modular comportamentos em escala e ao longo do tempo. Cada curtida, cada vídeo assistido até o fim, cada mensagem encaminhada, cada pausa diante de um conteúdo serve como dado para construir um retrato psicológico. Esse retrato, por sua vez, determina o grupo mental ao qual a pessoa será destinada. A troca é simples: sai o distrito geográfico, entra o distrito comportamental. Sai o mapa político, entra o mapa afetivo.
A grande mutação é que, ao contrário do território físico, o território cognitivo é maleável, reconstruído diariamente pela interação. O algoritmo não redesenha fronteiras uma vez por década, como nos mapas eleitorais tradicionais; ele redesenha fronteiras infinitas vezes por minuto. As “bordas” dos distritos cognitivos são frágeis, fluidas, autoajustáveis e quase sempre invisíveis para quem está dentro delas. Uma mesma pessoa pode existir simultaneamente em vários microterritórios mentais, cada um estruturado para determinado tipo de influência política. Não se trata mais de controlar a região onde alguém vota, mas de controlar as condições emocionais pelas quais essa pessoa toma decisões.
Essa mudança representa uma ruptura histórica. O gerrymandering clássico reorganizava o eleitorado para manipular resultados. O gerrymandering digital reorganiza o próprio sujeito. Não desloca apenas grupos; desloca percepções. Não altera apenas fronteiras; altera percepções da realidade. E isso, na lógica do materialismo histórico-dialético, significa que a disputa deixou de ser sobre território e passou a ser sobre consciência. A luta de classes atravessa agora a infraestrutura tecnológica que media a vida cotidiana, moldando a base cognitiva da política antes mesmo que o sujeito perceba que está sendo disputado.
Em síntese, a geografia deixou de ser o mapa. A mente se tornou o novo terreno eleitoral. E, enquanto o país continua olhando para urnas, campanhas, pesquisas e comícios, a verdadeira batalha já está acontecendo em outra camada da realidade: aquela em que algoritmos redesenham, silenciosamente, a topografia mental da sociedade.
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Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/gerrymandering-digital-como-as-redes-manipulam-eleicoes-no-brasil