Do Planalto a Washington, das redes sociais aos quartéis: como o bolsonarismo internacionalizou o ataque à democracia brasileira.
Ao longo da história republicana do Brasil, o golpismo sempre foi um recurso recorrente das oligarquias políticas, militares e econômicas diante de processos que ameaçavam sua hegemonia. A Proclamação da República em 1889, o Estado Novo em 1937, o golpe civil-empresarial-militar de 1964 e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 — cada um, a seu modo, representou a suspensão ou o esvaziamento da soberania popular sob diferentes pretextos de ordem, legalidade ou “salvação nacional”. Em um contexto global, tais fenômenos autoritários se conectam a dinâmicas internacionais de crise do neoliberalismo, da ascensão das extremas direitas e da erosão deliberada de instituições democráticas. Nesse sentido, o ataque de 8 de janeiro de 2023 não é um evento isolado, mas a continuidade de uma lógica de ruptura institucional que atravessa o tempo, agora atualizada por meio da articulação transnacional e da guerra informacional.
A tentativa de golpe de Estado ocorrida naquele 8 de janeiro, quando manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília, representa um dos mais graves ataques à ordem constitucional brasileira desde a redemocratização. Longe de ser um episódio espontâneo, o levante foi resultado de um processo deliberado, articulado por diferentes esferas do poder político, militar e religioso fundamentalista, com apoio direto de figuras públicas e financiamento ilegal de empresários. A radicalização do bolsonarismo, sua narrativa de deslegitimação do sistema eleitoral e os apelos explícitos à ruptura institucional não foram acidentais: integraram um projeto autoritário que já se insinuava desde a eleição de 2018.
Investigações conduzidas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Polícia Federal revelaram indícios de que a tentativa de golpe não se resumiu à ação de civis descontentes, mas contou com apoio logístico, ideológico e estratégico de setores ultraconservadores das Forças Armadas, havendo suspeitas de omissão deliberada na desmobilização dos acampamentos golpistas. Figuras como o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o então comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, são investigados por possível conivência ou tolerância diante da escalada autoritária.
Documentos e testemunhos indicam que houve reuniões preparatórias com participação de militares da ativa e da reserva para discutir um “estado de sítio” forjado. A chamada minuta do golpe, apreendida na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, revelava o grau de planejamento envolvido — com previsão de intervenção direta no Tribunal Superior Eleitoral, prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal e anulação das eleições de 2022. A ideia de um estado de sítio forjado ecoava a narrativa bolsonarista que, de forma fraudulenta, distorcia o papel das Forças Armadas definido na Constituição Federal, frequentemente invocando de maneira equivocada o artigo 142 da carta constitucional. Tudo isso, de acordo com investigações, ocorreu com o conhecimento e sob estímulo do então presidente da República, Jair Bolsonaro.
A figura do ex-presidente é central nesse enredo. Seu silêncio diante da derrota nas urnas, sua permanência nos Estados Unidos no período crítico da transição de governo, e suas declarações anteriores — que reiteradamente colocavam em dúvida a segurança das urnas eletrônicas — demonstram que o ex-presidente agiu como instigador e, em última instância, como comandante simbólico do levante. O vídeo divulgado por ele dias após os ataques, em que voltava a questionar a lisura do processo eleitoral, foi interpretado como uma tentativa de acobertar sua responsabilidade direta por meio de ambiguidade retórica.
Como afirmam os estudiosos do autoritarismo, o silêncio calculado também é uma forma de ação. A cientista política argentina Pilar Calveiro entende que o silêncio é um dispositivo de poder — e, no caso brasileiro, foi usado para incitar sem se comprometer juridicamente, para sugerir sem ordenar de forma explícita. Trata-se de uma estratégia típica de lideranças autoritárias, que governam por meio da ambiguidade e da ameaça latente.
Um aspecto especialmente grave da crise institucional brasileira é sua dimensão transnacional. O ex-mandatário e seus filhos estabeleceram laços estreitos com a extrema-direita global, em especial com o ex-presidente norte-americano Donald Trump. O alinhamento entre os dois líderes vai além da retórica: ambos compartilham estratégias, aliados e uma mesma visão de mundo conspiratória e antidemocrática. A atuação do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, a partir dos Estados Unidos, como verdadeiro embaixador informal do golpismo brasileiro, é emblemática dessa conexão.
Reportagens recentes publicadas por veículos da mídia hegemônica revelaram que o parlamentar manteve reuniões com parlamentares republicanos como Cory Mills e Maria Elvira Salazar, além de influenciadores da ultradireita norte-americana. O objetivo dessas articulações era atacar o Judiciário brasileiro, particularmente o ministro Alexandre de Moraes, por meio da difusão de desinformação e da tentativa alegada de aplicação da Lei Magnitsky — dispositivo legal dos EUA destinado a sancionar violadores de direitos humanos em outras jurisdições. A proposta foi encampada por representantes do trumpismo, numa ofensiva geopolítica que não apenas visa enfraquecer a democracia brasileira, mas também reverter o avanço do Brasil no cenário global, especialmente no âmbito dos BRICS.
Essa tentativa de ingerência externa evidencia uma nova etapa do autoritarismo: a guerra jurídica e diplomática. Como afirma a escritora canadense Naomi Klein, regimes autoritários modernos não precisam mais de tanques nas ruas — basta capturar as narrativas, instrumentalizar as instituições e deslegitimar os opositores. Nesse contexto, as plataformas digitais tornaram-se um dos principais vetores de ataque à democracia. WhatsApp, Telegram, YouTube, Facebook, Twitter e outras redes foram instrumentalizadas para disseminar fake news, teorias da conspiração, convocações golpistas e discursos de ódio. A guerra híbrida, articulada entre figuras como Trump e Bolsonaro, faz uso estratégico da desinformação em larga escala, minando a confiança nas instituições e mobilizando massas em nome de um suposto “patriotismo” reacionário.
Ao reabilitar símbolos da ditadura militar — como o AI-5, o fechamento do Congresso e a glorificação da tortura —, o bolsonarismo atuou como vetor de uma nostalgia autoritária perversa. Essa apologia do regime passado foi transformada em projeto de governo, e sua continuidade pós-eleitoral assumiu formas institucionais e paramilitares. As investigações sobre o 8 de janeiro revelam a presença de ex-militares, agentes de segurança, membros de igrejas evangélicas fundamentalistas e empresários da extrema-direita. Trata-se de uma coalizão complexa e perigosa, que opera tanto na desinformação digital quanto no financiamento ilegal da subversão.
A socióloga argentina Elizabeth Jelin, em sua obra fundamental Los trabajos de la memoria, sustenta que “o esquecimento é sempre político”, e que nenhuma democracia pode ser consolidada sem o enfrentamento dos crimes do passado. No caso brasileiro, o fracasso da justiça de transição, a anistia mal resolvida e a ausência de responsabilização de militares e civis envolvidos na ditadura criaram o terreno fértil para a repetição do autoritarismo sob novas roupagens. Mais do que uma ausência do passado, trata-se de uma presença não elaborada da violência estatal em nossos dias. O autoritarismo institucionalizado, não enfrentado após a redemocratização, se perpetua nas práticas de segurança pública, na tutela militar sobre a política e na cultura do silêncio conivente.
O 8 de janeiro não foi um desvio isolado; encontrou terreno fértil numa democracia que nunca rompeu plenamente com seus algozes e na impunidade do passado. Diante desse cenário, a responsabilização penal, política e histórica dos envolvidos no levante golpista é urgente. Isso inclui não apenas os executores imediatos, mas também seus financiadores, articuladores e mentores intelectuais. Como afirma Eugenio Raúl Zaffaroni, “a democracia não pode ser neutra diante de sua própria destruição”. Em consonância com a cientista política estadunidense Wendy Brown, a democracia só se mantém viva quando resiste à ascensão de seus algozes, combatendo a captura neoliberal que transforma o espaço público em arena mercantil e esvazia a soberania popular. A sobrevivência democrática exige barrar a hegemonia desses projetos nas instituições.
O STF, a Procuradoria-Geral da República e o Congresso Nacional têm diante de si uma oportunidade histórica: impedir que a impunidade se torne mais uma vez o elo entre passado e futuro. A punição dos golpistas deve ser firme, proporcional e pedagógica — não como revanche, mas como reafirmação dos limites institucionais. Como alertava a filósofa alemã, de origem judaica, Hannah Arendt, a banalidade do mal começa quando crimes deixam de ser nomeados e punidos.
A justiça contra os golpistas do 8 de janeiro não representa revanchismo, mas um compromisso ético com a democracia. O silêncio diante das violações passadas já cobrou caro durante a transição inacabada. Agora, temos a chance de não repetir os mesmos erros. A história mostra que a impunidade convida à repetição de violações.
A reconstrução de um Brasil democrático exige mais do que eleições periódicas. Exige memória ativa, responsabilização efetiva e enfrentamento dos poderes paralelos que desafiam a soberania do povo. O bolsonarismo não é apenas um fenômeno político — é um projeto de dominação que articula militares, religiosos, empresários e forças estrangeiras. Enfrentá-lo é condição para que a democracia deixe de ser apenas uma promessa adiada.
Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/golpismo-globalizado-quando-o-ataque-vem-de-dentro-e-de-fora