Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 12 anos lutando pelos jornalistas

Jornal sem jornalismo: plataformas usam IA para burlar direitos autorais de veículos de imprensa

Plataformas adotam inteligência artificial para captar, resumir e redistribuir em grande escala textos que não produziram.

Em meio ao vácuo legal em torno do desenvolvimento da inteligência artificial (IA) e suas aplicações, veículos de imprensa têm seu conteúdo apropriado por plataformas que usam a nova tecnologia para capturar, resumir e redistribuir material jornalístico sem autorização dos produtores nem remuneração.

No Brasil, embora ainda não haja regulação específica para a IA — um projeto tramita no Congresso —, juristas apontam que a Lei de Direitos Autorais e o Código Civil permitem responsabilizar quem lucra com essa prática, que cresce em vários países. Nos EUA, veículos como The New York Times e Forbes processam big techs pelo uso indevido de reportagens em sistemas generativos.

Além do uso de conteúdo protegido para o treinamento de sistemas de IA generativa, como o ChatGPT e o Gemini, o desafio aos direitos de produtores de conteúdo se ampliou com sites e plataformas que usam a tecnologia para processar conteúdo da imprensa profissional e lucrar com a redistribuição.

Sistemas captam textos publicados por veículos tradicionais, resumem ou reescrevem para distribuir em feeds personalizados, prometendo uma suposta precisão sintética sob o pretexto de conferir “praticidade” ao leitor por meio de uma assinatura.

Cresce também o número de supostos sites de notícias que fazem raspagem automatizada de conteúdo na internet e republicam textos na íntegra, muitas vezes usando indevidamente marcas de veículos tradicionais, como O GLOBO.

Páginas como Portal Tela e Diário do Povo, por exemplo, vêm reproduzindo reportagens exclusivas de veículos tradicionais com uma suposta atribuição no rodapé, por vezes com logotipo ou link, mas sem qualquer negociação ou autorização formal do produtor do conteúdo. Todo o processo é automatizado, e a adaptação e reprodução do conteúdo em seus canais se dá em questão de segundos após a publicação original.

— A reprodução de trechos ou do conteúdo com microalterações dependeria de uma autorização, de acordo com o que a gente tem na nossa lei de direitos autorais. Isso não poderia estar sendo feito, porque eles criam algo como se fosse um novo conteúdo, sem uma indicação clara de fontes ou menção às matérias originárias — define Luciana Minada, advogada especialista em propriedade intelectual, sócia do Kasznar Leonardos.

Essas plataformas usam técnicas digitais para a captação automatizada de conteúdo como o scraping, em que robôs varrem sites em busca de textos e metadados, pelo uso de feeds RSS públicos ou por acesso indireto a APIs. Coletam de forma contínua e em larga escala manchetes, subtítulos e trechos de reportagens, geralmente sem autorização.

Na etapa seguinte, o material é processado por grandes modelos de linguagem (LMMs), que são os “cérebros” por trás de IAs como ChatGPT e Gemini, que reescrevem os títulos e resumem os textos em poucos parágrafos. São removidos elementos que identificam o veículo original ou o jornalista autor, e também são eliminados adjetivos e análises. O resultado final muitas vezes é um conteúdo “higienizado”, simplificado, com aparência de neutralidade, mas sem qualquer apuração original.

Luiz Friggi, professor de Direito Empresarial na Universidade Presbiteriana Mackenzie e sócio do escritório Simões Pires, avalia que o propósito das plataformas é econômico e, por isso, vê desrespeito à Lei de Direitos Autorais:

— Os fatos são ocorrências do cotidiano, mas a forma como a comunicação é realizada não. Jornalistas profissionais costumam ter um estilo próprio, uma forma particular de se expressar, assim como determinados veículos têm seu perfil. Isso tem proteção. Estamos falando de violação de direito autoral, ainda que haja digestão desse conteúdo por IA, resumo, seleção de trechos.

Essa prática vem se expandindo em paralelo ao avanço acelerado da IA e ignora sistematicamente, por exemplo, mecanismos de proteção como o protocolo “robots.txt”, um padrão amplamente aceito na internet e por editoras que permite a sites bloquear rastreadores automatizados.

Uma investigação da revista americana Wired revelou que a plataforma Perplexity driblou esse protocolo para reproduzir matérias da revista Forbes sem crédito ou solicitação de uso. Segundo a startup de licenciamento TollBit, vários agentes de IA estão adotando o mesmo comportamento, ignorando um sistema que, embora sem força legal, era respeitado há décadas.

Jornal sem jornalismo

Outro exemplo dessas operações no Brasil é o Notjournal, que usa uma interface sóbria para oferecer “notícias sem ruído”. A plataforma, no entanto, é alimentada com o conteúdo gerado por repórteres profissionais reorganizado por IA. O resultado é distribuído por meio de uma lista de transmissão no WhatsApp com o link para a publicação original.

O serviço viralizou em nichos de tecnologia e economia. Sem esconder a origem do conteúdo, o Notjournal exibe logotipos de veículos tradicionais brasileiros para sinalizar credibilidade, mesmo sem manter qualquer relação formal e comercial com eles. Cobra R$ 19,90 por mês pela versão básica de seu serviço e R$ 299 por um voltado para profissionais do setor financeiro.

— Isso é muito grave porque a automação permite que, de uma forma clandestina, seja possível ultrapassar barreiras de paywall (que reservam a assinantes dos veículos jornalísticos o acesso a conteúdos exclusivos). A partir disso, há a invasão e replique desses conteúdos, como se fosse produção própria, praticamente sem intervenção humana e a um custo baixíssimo — diz Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), acrescentando que a entidade tem conhecimento de dezenas de casos, incluindo sites segmentados por temas, como futebol e economia.

Rech acrescenta:

— São parasitas que capturam esse conteúdo e tentam se beneficiar dele, o que é claramente ilegal. Chegam a mudar nome e hospedagem para continuarem com essa atividade, que é claramente clandestina.

Procurados, Diário do Povo e Portal Tela não retornaram. O Notjournal disse que facilita “o acesso a conteúdos relevantes”.

“Nossa solução não apenas respeita veículos profissionais, contribui com eles. Quando citamos conteúdo produzido por terceiros, damos os devidos créditos e direcionamos nossos assinantes — via terminal web e WhatsApp — diretamente para links oficiais das matérias”.

Foto: Pixabay

FONTE: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2025/07/07/trump-anuncia-tarifa-de-25-pontos-percentuais-sobre-produtos-importados-do-japo-e-da-coreia-do-sul.ghtml