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Juros imorais

O dilema do Copom em um Brasil que cresce apesar do Banco Central.

O Brasil voltou a crescer, e isso é inegável. A economia resiste, o emprego formal se expande, as exportações permanecem fortes e a renda média começa a se recuperar após anos de compressão. Mesmo assim, o Banco Central insiste em manter a taxa Selic em patamar recorde, como se o país ainda vivesse o fantasma de uma inflação fora de controle. A contradição é gritante: enquanto o mundo entra em fase de afrouxamento monetário — liderado pelos Estados Unidos — o Brasil continua refém de uma ortodoxia que beneficia o capital financeiro e penaliza a economia real.

A virada monetária global e o dilema brasileiro

O mês de novembro começa com um sinal claro de mudança no humor monetário internacional. Depois de mais de dois anos de aperto agressivo, o Federal Reserve (Fed) finalmente reduziu a taxa básica de juros dos Estados Unidos em 0,25 ponto percentual, para a faixa entre 3,75% e 4,00%. O gesto, modesto em magnitude, é simbólico em significado: marca o início de um novo ciclo, em que o combate à inflação começa a ceder espaço à preocupação com a desaceleração econômica e o enfraquecimento do mercado de trabalho norte-americano.

Jerome Powell reconheceu, em coletiva, que o mercado de trabalho “perdeu tração” e que o consumo das famílias mostra sinais de fadiga. Ao mesmo tempo, fez questão de sublinhar que o Fed ainda caminha em meio a uma “névoa de dados”, indicando que o ciclo de cortes será cauteloso e dependente de novas evidências. O recado é duplo: o aperto terminou, mas a normalização será lenta.

Essa mudança nos Estados Unidos tem reflexos imediatos sobre os emergentes. Com juros mais baixos no centro do sistema, o diferencial de taxas tende a diminuir, abrindo espaço para políticas monetárias menos restritivas em países que vinham mantendo juros altos para proteger suas moedas e conter a inflação. O Brasil é um caso emblemático.

Por aqui, o Comitê de Política Monetária (Copom) se prepara para uma nova reunião em um contexto de incerteza crescente. A inflação brasileira se aproxima do teto da meta, e boa parte dos analistas considera improvável que se mantenha o objetivo original de convergência ao centro da meta ainda em 2026. O desafio é duplo: de um lado, preservar a credibilidade de um regime de metas tensionado por choques externos e internos; de outro, responder a um ambiente global de juros em queda, que exige calibragem fina para não comprometer o câmbio nem travar a retomada da atividade.

Desde o último encontro, quando manteve a Selic em 15% ao ano, o Banco Central (BACEN) vem sinalizando que pretende prolongar o período de juros elevados “por tempo suficiente” para consolidar a desinflação. Mas, com a economia brasileira crescendo pouco, a renda real ainda comprimida e o custo de capital se tornando um freio ao investimento, cresce entre economistas e setores produtivos a convicção de que a hora de começar a reduzir chegou.

A decisão do Fed adiciona um novo elemento a esse debate. Se o maior banco central do mundo iniciou o caminho de volta, seria irracional que o Brasil permanecesse imóvel diante de uma inflação que, embora resistente, já não mostra a força de meses atrás. A questão que se coloca para o Copom é se o momento de inflexão chegou — ou se a ortodoxia prevalecerá, adiando mais uma vez a convergência entre política monetária e realidade econômica.

O peso dos juros e a lógica dos rentistas

O Brasil vive um paradoxo que desafia a razão econômica: uma taxa básica de 15% ao ano, que consome quase R$ 1 trilhão anuais apenas em pagamentos de juros da dívida pública, sem que isso tenha produzido ganhos visíveis de estabilidade. É uma conta que corrói o orçamento, reprime o investimento produtivo e perpetua a concentração de renda em favor de uma minoria.

O argumento de que juros altos são necessários para conter a inflação já se transformou em um mantra repetido com automatismo e exaustivamente pelo BACEN e pela mídia. Na prática, o que se observa é um sistema financeiro que se alimenta da própria paralisia da economia. Cada ponto percentual mantido acima do necessário representa bilhões de reais transferidos do setor produtivo — que investe, gera emprego e paga impostos — para o setor rentista, que vive do rendimento de títulos públicos indexados à Selic.

Em 2024, o Brasil desembolsou cerca de R$ 998 bilhões apenas em juros da dívida pública, segundo o Tesouro Nacional — o equivalente a 8% do PIB. O estoque da dívida federal já supera R$ 7,5 trilhões, e aproximadamente 75% dessa dívida está concentrada em mãos de instituições financeiras, fundos de investimento e fundos de previdência. Em abril de 2025, as instituições financeiras detinham 30% dos títulos, os fundos de investimento 22%, e a previdência 24%, segundo dados oficiais. Ou seja, o sistema financeiro e o capital institucional são os grandes beneficiários de uma política que transfere renda pública diretamente para o topo da pirâmide.

A alta de juros não combate os fatores estruturais da inflação — energia, alimentos, câmbio, gargalos logísticos — mas drena recursos do Estado e do setor privado, tornando o crescimento um projeto sempre adiado. O juro de um trilhão é o imposto invisível da desigualdade, cobrado de quem produz e de quem consome, e pago a quem já é proprietário da riqueza financeira.

Há, ainda, o componente político: a manutenção de juros exorbitantes funciona como um mecanismo de chantagem sobre o governo e sobre a sociedade. Cada vez que se discute a redução da Selic, surge a ameaça da “fuga de capitais”, da “perda de credibilidade” e da “inflação descontrolada” — ameaças que, curiosamente, jamais se materializam com a mesma intensidade com que são anunciadas. O Banco Central, ao se mostrar insensível à realidade fiscal e social, acaba se convertendo não em guardião da estabilidade, mas em vetor da estagnação.

Enquanto isso, o setor produtivo agoniza. As pequenas e médias empresas operam com custos de crédito insuportáveis; as grandes corporações postergam investimentos por falta de horizonte; o crédito imobiliário desacelera; o consumo das famílias estagna. A economia real é sacrificada para preservar uma suposta “credibilidade monetária” cujo principal beneficiário é o mercado financeiro.

Nenhum país se desenvolveu com taxas reais acima de dois dígitos. O exemplo dos Estados Unidos, agora em processo de redução, reforça que a ortodoxia perdeu sentido no mundo pós-pandemia. A política monetária brasileira permanece prisioneira de uma mentalidade do século passado — aquela que acredita que o sofrimento da maioria é o preço natural da tranquilidade dos rentistas.

O que fará o Copom?

Diante desse cenário, a próxima reunião do Copom será um teste de racionalidade econômica e de sensibilidade social. Há três caminhos possíveis.

O primeiro é a manutenção da taxa, opção mais provável se prevalecer o conservadorismo que hoje domina o Comitê. O argumento será o de que é preciso “consolidar a desinflação” e evitar “riscos ao câmbio”. Na prática, será a escolha da inércia — um adiamento custoso e improdutivo.

O segundo caminho é a sinalização de um corte futuro, sem reduzi-lo de imediato. Seria o reconhecimento de que o ciclo de aperto se esgotou e de que o Copom precisa ajustar sua bússola à nova paisagem internacional. Essa saída permitiria preservar a imagem de prudência, ao mesmo tempo em que abriria espaço para uma inflexão gradual.

O terceiro, o mais ousado e coerente com a realidade, seria iniciar desde já o ciclo de queda, ainda que com um corte simbólico de 0,25 ponto percentual, por exemplo. Tal gesto teria enorme poder político e econômico, sinalizando que o Banco Central reconhece o custo social e fiscal dos juros e se dispõe a realinhar a política monetária ao imperativo do crescimento.

O Copom, porém, tem se mostrado refratário à ousadia. Sua comunicação segue dominada por uma retórica de “ancoragem de expectativas” que ignora o fato de que a própria âncora já arrasta o país para o fundo. Enquanto o mundo se move para o relaxamento monetário, o Brasil corre o risco de permanecer imobilizado em um dogma: o da taxa alta como remédio universal.

Se a decisão que virá mantiver a Selic em 15%, o recado será claro: o Banco Central optará por proteger o rentismo em detrimento do desenvolvimento. Se, ao contrário, reconhecer que juros a este nível são imorais e autodestrutivos, abrirá uma nova fase, em que o crescimento e o emprego voltam a ser prioridade de uma política econômica a serviço do país, e não dos credores.

Foto / Antonio Cruz/Agência Brasil

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/juros-imorais