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Nojo: a chacina instrumentalizada

Ordem assinada em janeiro de 2025 amplia o poder dos Estados Unidos para agir contra grupos da América Latina sob o pretexto do combate ao narcotráfico.

No primeiro dia de seu segundo mandato (20 de janeiro de 2025), Trump emitiu a Executive Order (Decreto Executivo) 14157, que “designa cartéis e outras organizações como organizações terroristas estrangeiras e terroristas globais especialmente designados.”

Segundo essa Executive Order, os cartéis têm se engajado em uma campanha de violência e terror em todo o Hemisfério Ocidental, que não apenas desestabilizou países de grande importância para nossos interesses nacionais, mas também inundou os Estados Unidos com drogas letais, criminosos violentos e gangues cruéis. Os cartéis controlam, por meio de uma campanha de assassinatos, terror, estupro e força bruta, quase todo o tráfico ilegal que atravessa a fronteira sul dos Estados Unidos. Em certas partes do México, eles funcionam como entidades quase governamentais, controlando praticamente todos os aspectos da sociedade. As atividades dos cartéis ameaçam a segurança do povo americano, a segurança dos Estados Unidos e a estabilidade da ordem internacional no Hemisfério Ocidental. Suas atividades, proximidade e incursões em território americano representam um risco inaceitável à segurança nacional dos Estados Unidos.

Ainda segundo essa Executive Order, (a) No prazo de 14 dias a partir da data desta ordem, o Secretário de Estado deverá tomar todas as medidas apropriadas, em consulta com o Secretário do Tesouro, o Procurador-Geral, o Secretário de Segurança Interna e o Diretor de Inteligência Nacional, para fazer uma recomendação sobre a designação de qualquer cartel ou outra organização descrita na seção 1 desta ordem como Organização Terrorista Estrangeira, em conformidade com o Título 8 do Código dos Estados Unidos, Seção 1189, e/ou Terrorista Global Especialmente Designado, em conformidade com o Título 50 do Código dos Estados Unidos, Seção 1702, e a Ordem Executiva 13224. (b) No prazo de 14 dias a partir da data desta ordem, o Procurador-Geral e o Secretário de Segurança Interna deverão tomar todas as medidas apropriadas, em consulta com o Secretário de Estado, para fazer os preparativos operacionais relativos à implementação de qualquer decisão que eu tome de invocar a Lei de Inimigos Estrangeiros, Título 50 do Código dos Estados Unidos. 21 e seguintes, em relação à existência de qualquer invasão qualificada ou incursão predatória contra o território dos Estados Unidos por um agente qualificado, e para preparar as instalações necessárias para agilizar a remoção daqueles que possam ser designados sob esta ordem.

Em outras palavras, essa Executive Order permite ao governo dos EUA:

  1. Designar qualquer grupo de traficantes como Organização Terrorista Estrangeira
  2. Intervir, mesmo que extra territorialmente, para neutralizá-la, com base na Lei de Inimigos Estrangeiros (Alien Act). Tal decisão cabe ao Presidente, prescindindo da aprovação do Congresso, só necessária no caso de uma declaração oficial de guerra.

Que essa Executive Order tenha sido emitida já no primeiro dia do atual governo Trump me parece algo revelador.

Em primeiro lugar, todos sabem que Trump passou a campanha toda satanizando a América Latina e seus imigrantes, que, segundo ele, levam violência, crimes e mortes aos EUA. Essas pessoas, segundo Trump, comiam até os pets dos estadunidenses.

Ainda segundo Trump, os carteis da América Latina seriam os responsáveis pelo consumo de drogas ilícitas nos EUA. A “epidemia dos opioides”, desencadeada, na verdade, por grandes companhias farmacêuticas dos EUA, não teria nenhuma relação com o problema.

Assim, um primeiro objetivo dessa Executive Order é o de apresentar, a um eleitorado sedento de sangue, uma “solução” populista, “fácil”, violenta e, sobretudo, ilusória, para um problema complexo, que deveria envolver cooperação pacífica entre Estados soberanos.

Mas me parece que a Executive Order também tem objetivo geopolítico.

A classificação de traficantes como “terroristas”, já incorporada pela direita brasileira e latino-americana, aliadas vassalas do trumpismo, permite “justificar” intervenções dos EUA em países cujos governos sejam considerados “hostis” a Trump e à sua nova Doutrina Monroe.

É o que já está acontecendo na Venezuela e na Colômbia, com espetaculosas execuções extrajudiciais, terroristas por natureza, de tripulantes de pequenas lanchas, as quais, obviamente, não têm nem autonomia nem capacidade de carga para compor um fluxo de drogas significativo para os EUA.

Tanto Maduro quanto Gustavo Petro já foram classificados como grandes e perigosos narcoterroristas. Portanto, podem ser eliminados, sem problemas. E seus governos podem depostos por métodos violentos, se necessário for. O precedente de Noriega sempre deve ser lembrado.

A direita brasileira, tal como já sugeriu o senador Flávio Bolsonaro, faz a mesma aposta contra o nosso país, justamente no momento em que Brasil e EUA buscam recompor suas bicentenárias relações bilaterais, e o governo Lula procura reverter as sanções econômicas impostas injustamente contra a nossa economia.

Obviamente, a chacina estúpida e inútil promovida pelo governador Castro no Rio de Janeiro tem objetivos políticos e geopolíticos.

No campo interno, intenta criar um fato para angariar apoio político junto a um eleitorado predominantemente conservador. Ao mesmo tempo, procura apresentar o governo federal como o grande responsável pela situação de descontrole que ele mesmo criou.

No campo externo, o massacre visa apresentar a visão de um país dominado por “terroristas”, cujo governo central é incapaz de contê-los.

Daí a pressão para caracterizar o Comando Vermelho e outros grupos como perigosos terroristas e, desse modo, invocar a necessidade de que o governo dos EUA intervenha aqui também.

Milei já está engajado nessa estratégia e mandou fechar a fronteira com o Brasil, como se o Comando Vermelho estivesse pronto para fugir do Rio e se instalar em Buenos Aires, trocando o samba pelo tango. Patético.

Está se gestando, assim, uma onda de Terrorismo de Estado, em nome do combate a “terroristas”, visando atingir os governos progressistas da nossa região e suas democracias.

Nada disso vai resolver o problema da Segurança Pública, que demanda inteligência, principalmente inteligência financeira, para começar a ser equacionado. Mas resolve o problema político da direita em defensiva.

É sempre bom lembrar que o conceito de terrorismo nasceu fundamentalmente de uma prática de Estado. Com efeito, foi durante o período negro da Revolução Francesa que surgiu o Terror, que arrebatou mentes iludidas pelas promessas de “virtude e justiça” e fez rolar milhares de cabeças. Robespierre, em sua defesa desse período, dizia que o Terror nada mais é que a lei, ou justiça, aplicada de forma rápida, severa e inflexível.

Tinha razão Robespierre. A depender da lei, a Lei é o próprio Terror. Essa Executive Order de Trump, por exemplo, é um claro instrumento de terror estatal.

Enquanto isso, como dizia João Bosco, lá o corpo estendido no chãoCorpo negro, pobre e com a alma cheia do chumbo do medo, do ódio, do abandono e da desesperança.

Corpos descartáveis e anônimos, sem rostos, sem história, sem humanidade, sem propósito.

A história da eterna Senzala, agora instrumentalizada para servir aos seus criadores.

Nojo.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/nojo-a-chacina-instrumentalizada