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O Brasil precisa de uma revolução ferroviária e a China pode ajudar

Brasil e China já deveriam ter avançado para uma etapa superior em sua parceria estratégica.

Em 2000, a China ainda vivia o seu ano do dragão, e a corrente de comércio entre Brasil e China somava US$ 2,3 bilhões. Esse valor correspondia a 0,35% do PIB brasileiro naquele ano. Para efeito de comparação, a corrente de comércio (que é a soma de exportação mais importação) entre Brasil e o bloco formado por Estados Unidos e União Europeia foi de US$ 53,2 bilhões em 2000, correspondendo a 8,12% do PIB brasileiro.

Em 2024, novamente um ano do dragão na China, a situação mudou dramaticamente.

A corrente de comércio entre Brasil e China havia aumentado quase 7.000% (sete mil por cento) sobre 2000, e chegava a US$ 158 bilhões, ou 7,2% do PIB brasileiro.

A corrente de comércio entre Brasil e a dupla Estados Unidos e União Europeia atingiu, em 2024, um total de US$ 176 bilhões, ou 8% do PIB brasileiro.

Quando consideramos apenas as exportações do Brasil para a China, o valor chegou a US$ 94,4 bilhões em 2024, o que é superior aos US$ 88,6 bilhões obtidos com exportações somadas para EUA e União Europeia.

Entretanto, seria um erro colossal – embora infelizmente um erro que contamina grande parte das análises de brasileiros sobre a China – olhar para esses números com a frieza de um estatístico sem alma.

Por trás desses números, há o trabalho duro de milhões e milhões de brasileiros e chineses, que ganham seu sustento, direta e indiretamente, através do comércio com seus parceiros do outro lado do mundo.

Seria outro erro simplificar esse comércio, olhando apenas para os produtos.

Para exportar uma tonelada de minério de ferro, petróleo, carnes ou soja, é preciso o trabalho de geólogos, biólogos, veterinários, agrônomos e motoristas de caminhão, além da infraestrutura necessária, como estradas, ferrovias e portos.

Há disparidades tecnológicas brutais no comércio entre Brasil e China, que poderão ser reduzidas com o tempo, caso haja vontade política e interesse estratégico de ambos os lados, mas não se pode negar que a profunda complementaridade entre as duas grandes economias tem algumas características interessantes do ponto de vista geopolítico.

Uma delas é que a China possui – e tudo indica que ainda terá por muito tempo – um enorme déficit estrutural em sua economia alimentar. A China precisa importar comida, em grandes quantidades, para que seus 1,4 bilhão de habitantes possam se nutrir a um custo baixo.

Vejamos o caso da soja, um grão particularmente importante por sua alta concentração de proteína, muito superior à de outros grãos.

Segundo o departamento de agricultura dos EUA (USDA), órgão do governo americano que monitora a oferta e demanda dos principais produtos agrícolas no mundo, a China tem hoje (2024/25) um consumo doméstico anual de 121 milhões de toneladas de soja em grãos, e produz menos de 20 milhões de toneladas (2).

Ainda segundo o USDA, a produtividade da soja chinesa tem ficado em torno de 2 toneladas por hectare, muito abaixo das 3,5 toneladas por hectare da soja brasileira, e 3,41 toneladas por hectare da soja americana (4).

Isso significa que mais de 80% da soja consumida na China precisa ser importada. E basicamente apenas três países têm área plantada e capacidade de produção para suprir a demanda chinesa: Brasil, Estados Unidos e, em escala bem menor, Argentina.

A China tem aproximadamente 10,4 milhões de hectares plantados com soja, segundo os últimos dados oficiais, contra 47,4 milhões no Brasil (3) e 34,8 milhões de ha nos Estados Unidos.

A produção total de soja na China, para a safra 2025, é de 19,6 milhões de toneladas. Brasil e EUA devem produzir este ano, respectivamente, 166 milhões e 118,8 milhões de toneladas.

A Argentina, terceiro maior fornecedor de soja para a China, tem 17,8 milhões de hectares plantados de soja e deve produzir este ano um total de 52 milhões de toneladas, segundo o USDA.

Com o aumento das tensões geopolíticas, cujas incertezas se intensificam com a chegada de Trump, a China tem optado por aumentar ainda mais a participação da soja brasileira em suas importações totais.

A participação da soja americana nas importações totais de soja pela China caiu para 18% em 2024, contra 40% em 2016, enquanto a participação do Brasil cresceu de 46% em 2016 para 74% em 2024, de acordo com dados da alfândega chinesa.

Mas há outro componente talvez mais importante que a questão geopolítica: a soja brasileira está se tornando cada vez mais competitiva em relação a seu congênere americano.

Segundo reportagem da Reuters do final de janeiro de 2025, a soja do Brasil estava sendo comprada pela China, incluindo comissões comerciais e frete, a US$ 420 por tonelada, contra US$ 451 do produto dos EUA (1).

O fator geopolítico da soja –assim como de outros produtos exportados pelo Brasil, como petróleo, minérios e carnes – se explica pela segurança estratégica que ela proporciona a ambos os países, reduzindo a dependência do Brasil e da China dos chiliques imperiais de Washington.

Exatamente por essa razão, todavia, Brasil e China já deveriam ter avançado para uma etapa superior em sua parceria estratégica. Como não tenho muitas informações sobre a diplomacia chinesa, e como sou brasileiro, me atenho às críticas à lentidão ou mesmo inação do governo brasileiro em aproveitar as oportunidades que estão quicando à sua frente.

A principal dessas oportunidades é a questão do transporte sobre trilhos, que para o Brasil se tornou mais do que uma necessidade, mas um verdadeiro imperativo para o seu desenvolvimento.

Aliás, não apenas para seu desenvolvimento, mas até mesmo para evitar a deterioração do bem-estar da população brasileira. Sem uma modernização audaciosa, diria até mesmo revolucionária, da nossa matriz de transportes, o Brasil não vai conseguir combater a inflação (pois o custo de frete tenderá a aumentar), não conterá a violência (pois as forças de segurança precisam de mobilidade), não desenvolverá o turismo (que ficará cada vez mais caro e desconfortável, em virtude de congestionamentos em rodovias e aeroportos).

Que outro país, senão a China, poderia ajudar o Brasil a teorizar, planejar, executar e manter uma grande rede nacional de transporte sobre trilhos, com trens de alta velocidade conectando as principais capitais, e vastos sistemas de metrô e VLT servindo as regiões metropolitanas?

Isso não é trivial. O governo Lula está avançando muito mais do que qualquer gestão anterior na construção de algumas linhas ferroviárias estratégicas, em especial os eixos norte-sul e leste-oeste, mas estou falando aqui de um grande projeto ferroviário verdadeiramente capilarizado, ligando todas as cidades importantes brasileiras, que não se limite ao transporte de mercadoria e que sobretudo esteja afinado com as tecnologias mais avançadas para o setor. Claro que vai ajudar a trazer por ferrovia a soja do Mato Grosso até algum porto no Atlântico, ou ainda melhor, até o Pacífico. Mas um projeto ferroviário preocupado em reposicionar geopoliticamente o Brasil precisa ser feito com trens de alta velocidade, para mercadorias e, sobretudo, passageiros!

Para o Brasil, seria a solução de muitos problemas. Além dos já mencionados, e mais óbvios, como redução de congestionamentos nas metrópoles, queda no custo dos transportes aéreos (que teriam um competidor para viagens interestaduais), incentivo ao turismo, haveria outros extremamente estratégicos.

A construção de linhas férreas daria um grande incentivo à siderurgia nacional, que não ficaria mais dependente do mercado americano, super tarifado por Trump. Um trem de alta velocidade, hoje em dia, necessita de uma rede elétrica altamente estável e tecnológica, de maneira que também haveria incentivos a este setor. Tudo isso sem falar na enorme geração de empregos de qualidade, para engenheiros, técnicos, além de dezenas de profissões envolvidas no desenvolvimento de ferrovias modernas.

Todo o processo de desenvolvimento chinês, desde o fim da dinastia Qing em 1911, seguiu pelo menos um sonho fundamental de Sun Yat-sen: conectar todo o país por meio de ferrovias. Esse ideal começou a se concretizar de forma mais efetiva apenas após a revolução comunista de 1949.

Hoje a China é a grande nação ferroviária do mundo, em todos os aspectos: velocidade, conforto, extensão, capilaridade. A tecnologia ferroviária continua sendo um grande motor do desenvolvimento chinês, inclusive o científico, visto que a necessidade de fazer trens mais velozes e mais seguros, e construir esses trens também mais rapidamente e a custo menor, exige enorme investimento em pesquisa, em todos os campos, incluindo inteligência artificial.

O Brasil deveria aproveitar os gigantescos laços comerciais que ligam os dois países para importar a experiência ferroviária chinesa, até mesmo para reduzir a disparidade tecnológica (e urbanística) que vem deixando o Brasil para trás em relação ao gigante asiático.

Notas

(1) https://www.reuters.com/markets/commodities/chinese-buyers-switch-cheaper-brazilian-soybeans-ahead-trump-return-2025-01-17/

(2) https://apps.fas.usda.gov/newgainapi/api/Report/DownloadReportByFileName?fileName=Oilseeds%20and%20Products%20Annual_Beijing_China%20-%20People%27s%20Republic%20of_CH2024-0042.pdf

(3) https://www.conab.gov.br/component/k2/item/download/56970_c78e099c9b8442e62a5344f1a3cca7e5

(4) https://ipad.fas.usda.gov/countrysummary/Default.aspx?id=US&-crop=Soybean

Foto: VLI/Divulgação

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-brasil-precisa-de-uma-revolucao-ferroviaria-e-a-china-pode-ajudar