Professor emérito da UFRJ avalia que a nova ordem mundial se organiza em torno de um eixo tripolar e aponta o fracasso das utopias ocidentais do século XX.
Em entrevista exclusiva ao Brasil 247, o professor emérito da UFRJ José Luís Fiori analisa os desdobramentos da 24ª Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai e do desfile militar em Pequim, destacando que a nova configuração geopolítica não aponta para uma ordem multipolar, mas sim tripolar. Fiori afirma que a desordem atual vem principalmente do Ocidente, denuncia a falência das utopias liberais e cosmopolitas e aponta que a China, ao lado de Rússia, Índia e outros países da Eurásia, se apresenta como eixo estabilizador diante do declínio norte-americano e europeu.
Por Leonardo Attuch, do Brasil 247
Brasil 247 – Professor, o senhor descreve que a 24ª Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai e o desfile militar em Pequim simbolizaram a consolidação de uma nova ordem multipolar. Como o senhor enxerga esse momento histórico e que implicações ele tem para a geopolítica global?
Fiori – Na verdade, o que está se desenhando no horizonte é uma “ordem tripolar” e não multipolar. E o que estamos atravessando neste momento é uma grande “desordem multipolar”. Um processo de desintegração e caos, que se acelerou depois que o mundo se deu conta de que Donald Trump e os EUA não têm mais o poder que Trump supunha ter quando reassumiu a presidência americana. Mas o que ficou claro depois da última Cúpula da OCX, de 31 de agosto, e do desfile militar de Pequim, em 3 de setembro, é que esta desordem e desintegração vêm sobretudo do Ocidente e não do Oriente, onde existe um bloco de países que se oferecem como âncora estabilizadora do sistema internacional.
E isto é a mais pura verdade, porque essa desordem e este caos têm tudo a ver com o fracasso das duas últimas utopias ocidentais do século XX, consagradas pela vitória ocidental da década de 1990: a utopia da globalização econômica e de uma ordem liberal-cosmopolita; e a utopia da unificação e pacificação da Europa, que foi a origem e o palco de quase todas as grandes guerras que sangraram a humanidade nos últimos cinco séculos. A “globalização econômica” está sob ataque dos próprios EUA; e o projeto de unificação da Europa está em pleno processo de desintegração. A guerra voltou ao coração do Velho Continente, e hoje a União Europeia só se mantém unida graças ao seu ódio e seu desejo de revanche contra a Rússia. No mesmo momento em que até a ideia da “excepcionalidade moral” do Ocidente está vindo abaixo, depois de dois anos de apoio direto ou de cumplicidade com o genocídio israelense da população palestina na Faixa de Gaza.
Brasil 247 – A exibição de armamentos avançados pela China, como o míssil nuclear Dongfeng 5, foi um dos pontos centrais do desfile. Na sua visão, trata-se de uma estratégia militar essencialmente defensiva, voltada à proteção da soberania, ou há também um caráter ofensivo nesse posicionamento?
Fiori – As duas coisas são inseparáveis: a defesa e o ataque, a segurança e a guerra. Maquiavel dizia que a obrigação de todo príncipe é preparar-se para a guerra, e Hobbes, o filósofo inglês, dizia que o tempo das guerras inclui também o tempo da preparação para o conflito direto. Através da história moderna, o mais comum foi que os Estados se referissem às suas armas e às suas guerras como armas e guerras defensivas. Até porque todos consideram que suas guerras são “justas” e, portanto, atos de defesa contra ameaças e ataques externos. Donald Trump sentiu a necessidade de mudar recentemente o nome de seu Departamento de Defesa norte-americano, passando a chamá-lo de “Departamento de Guerra”. Mas isto é uma exceção e uma clara tentativa de demonstrar força e disposição de luta num momento de declínio, através de mudanças nominais absolutamente irrelevantes.
Brasil 247 – O senhor destacou a aproximação entre China, Rússia e Índia, além da presença de Kim Jong-Un ao lado de Xi Jinping e Vladimir Putin. Esse gesto simbólico indica a formação de um bloco militar e político alternativo ao Ocidente?
Fiori – Não. Indica apenas a existência de uma convergência defensiva das principais potências atômicas da Eurásia, frente aos inúmeros projetos e anúncios de expansão da OTAN na direção da Ásia. Não existe ali nenhum compromisso de defesa mútua, como no caso da OTAN, mas não há dúvida de que, se os EUA ou alguma das potências do Atlântico Norte tomar a iniciativa de atacar algum destes países, belicamente no Leste da Ásia e no Pacífico Sul, como aconteceu no século XIX, na China, e no século XX, na Coreia e no Vietnã, se encontrará com um bloco militar asiático atômico, coeso e muito difícil, quase impossível, de ser vencido.
Brasil 247 – O Brasil tem buscado se projetar como potência pacífica e defensora do multilateralismo. Diante desse novo cenário, o senhor acredita que o Brasil deveria ampliar sua cooperação militar e estratégica com a China e seus aliados?
Fiori – Acho que deveria diversificar sua cooperação militar e estratégica com vários outros países, incluindo a própria China. Mas também acho que este será um processo lento e difícil. Depois da Segunda Guerra e, em particular, depois do Acordo Militar assinado pelo Brasil com os EUA em 1952, as Forças Armadas brasileiras optaram por uma relação de total dependência militar em relação aos EUA. Dependência em todos os sentidos: na compra, utilização, manutenção e reposição de equipamento militar, na formação de seus oficiais e no alinhamento ideológico automático ao lado dos EUA e das posições defendidas pela OTAN. Uma relação de vassalagem que se reproduz quase autonomamente, por fora do próprio governo brasileiro, e que se estendeu nos últimos anos em relação a Israel. Criando uma situação inteiramente esdrúxula, em que o Brasil é hoje dependente de sistemas e tecnologias de informação, inteligência e rastreio, e até de manipulação de dados estatais, controlados por um Estado que considera o presidente brasileiro persona non grata e que, por sua vez, é governado por um primeiro-ministro acusado pelo governo brasileiro e julgado no Tribunal Internacional de Haia como “criminoso de guerra” e “genocida”.
Brasil 247 – Xi Jinping propôs uma nova governança mundial baseada em respeito à soberania, direito internacional e multilateralismo renovado. Como o senhor avalia essa proposta em comparação com a ordem internacional liderada pelos Estados Unidos e pela Europa nas últimas décadas?
Fiori – O que mais me chama atenção na proposta de governança mundial apresentada pelo presidente chinês, nessa última reunião da OCX e no dia da comemoração da vitória chinesa contra o Japão na II Guerra Mundial, foi o fato de que os chineses estejam reivindicando – em última instância – uma reabertura das negociações de Yalta, Potsdam e São Francisco, junto com a proposta de manutenção de vários dos valores e instituições criadas ou sacramentadas naquele momento. Como é o caso da ONU, por exemplo, que está sendo torpedeada e esvaziada neste momento, sob ataque direto dos EUA. Mas que a China propõe que seja reorganizada, com uma redefinição da representação e do peso do “resto do mundo” em relação às cinco ou seis potências do Atlântico Norte que se habituaram a mandar no mundo nos últimos 200 ou 300 anos.
Assim mesmo, chama a atenção também que esta proposta chinesa não contenha nenhum tom beligerante ou revanchista. Pelo contrário, é um convite ao Ocidente para que se sente à mesa e redesenhe a geopolítica mundial, em pé de igualdade com a Eurásia.
Foto: Reprodução (Youtube)
FONTE: https://www.brasil247.com/ideias/o-caos-vem-do-ocidente-nao-da-china-diz-jose-luis-fiori