Associação Brasileira dos Jornalistas

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O CREPÚSCULO DO MITO

O que começa a ruir não é o destino de um ex-presidente — mas um projeto que se alimenta do ódio, da mentira e da violência.

A prisão preventiva de Jair Bolsonaro neste 22 de novembro de 2025 — ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes após a violação da tornozeleira eletrônica — não representa apenas o desfecho jurídico de uma longa sequência de atentados ao Estado Democrático de Direito. É também um marco simbólico: o estertor de um ciclo autoritário, que tentou subjugar o Brasil ao obscurantismo, à mentira institucionalizada e à necropolítica. Mais que um fato isolado, trata-se de um sinal histórico: os fantasmas do autoritarismo, ainda que ruidosos, estão sendo empurrados de volta para as sombras da História.

Ao longo dos últimos anos, o bolsonarismo — mais que uma expressão da extrema-direita — se consolidou como um projeto de destruição civilizatória. Em sua essência, não havia um plano de governo, mas uma estratégia de desmonte. Como bem descreveu o filósofo Vladimir Safatle, em entrevista à Revista Cult, “o bolsonarismo não precisa apresentar políticas públicas porque ele opera na destruição como linguagem”. E essa linguagem, marcada pela violência simbólica e física, encontrou terreno fértil na frustração social, na crise da representação política e no ressentimento cultivado por décadas de desigualdade estrutural.

O legado de Bolsonaro é, por todos os ângulos, uma tragédia multifacetada. Nenhuma área escapou incólume. A pandemia da COVID-19 mostrou o que o bolsonarismo tem de mais cruel: mais de 700 mil mortos, muitos dos quais poderiam ter sido salvos se houvesse uma coordenação minimamente responsável de políticas públicas. Em vez disso, assistimos à promoção de medicamentos ineficazes, ao desestímulo à vacinação e ao escárnio diante da dor. O jurista e professor Oscar Vilhena Vieira escreveu, na Revista Piauí, que “o bolsonarismo é uma experiência de governo em que a indiferença se torna política de Estado”. E essa indiferença matou.

Mas não foi só a saúde pública. Povos indígenas, especialmente os Yanomami, foram abandonados à fome, à malária e à violência do garimpo ilegal, numa política deliberada de extermínio silencioso. A militarização da política, somada ao fundamentalismo religioso, criou uma máquina de poder baseada no medo, na homofobia, no racismo e na misoginia — tudo isso travestido de moral cristã. Não por acaso, Bolsonaro fez de pastores radicais e oficiais das Forças Armadas seus pilares de sustentação ideológica.

O culto às armas, o desprezo pela educação, os ataques sistemáticos à cultura e à imprensa, o negacionismo ambiental e a aliança subserviente com o trumpismo e o extremismo de direita internacional foram peças desse mesmo quebra-cabeça autoritário. A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi apenas a consequência lógica de um projeto que sempre viu na democracia um obstáculo, nunca um valor.

Do ponto de vista sociológico, o bolsonarismo não é uma aberração: é a manifestação aguda de um Brasil profundo, ainda assombrado pela herança escravocrata, pela desigualdade abissal e por elites que sempre temeram a inclusão social como ameaça a seus privilégios. É um movimento reacionário, como o fascismo europeu dos anos 1930, que se alimenta do ressentimento e do pânico moral diante da emancipação dos “outros” — sejam eles negros, mulheres, LGBTQIA+, indígenas, nordestinos ou pobres em geral.

A filósofa Judith Butler, em artigo para o New York Times, afirmou que “o autoritarismo moderno prospera na negação da interdependência humana”. O bolsonarismo foi, nesse sentido, uma pedagogia da crueldade: ensinou o Brasil a desprezar a empatia, a tratar a dor alheia como irrelevante e a glorificar a ignorância como forma de resistência.

A prisão de Bolsonaro, mesmo que não encerre o fenômeno político que o sustenta, tem um valor simbólico inegável. Ela mostra que nenhuma figura está acima da lei — e que o Brasil ainda tem instituições capazes de reagir à tentativa de subversão da ordem democrática. A reação da extrema-direita, convocando vigílias e propagando teorias conspiratórias, é previsível: trata-se da última trincheira de um movimento que perde tração, mas não perdeu sua capacidade de causar dano.

O bolsonarismo ainda viverá — como espectro, como narrativa vitimista, como mobilização identitária de extrema-direita. Mas sua derrota eleitoral, o avanço das investigações e agora a prisão do seu principal líder representam freios importantes. Mais do que punir, é preciso construir: retomar o pacto civilizatório, fortalecer a democracia participativa, investir em educação crítica, combater o racismo estrutural, proteger o meio ambiente e afirmar, todos os dias, que direitos humanos não são concessões — são a base de qualquer sociedade que se queira digna.

A história ensina que o autoritarismo não morre com seus líderes, mas se dissolve quando perde legitimidade. Por isso, mais que comemorar a prisão de Bolsonaro, cabe-nos olhar adiante. A reconstrução democrática do Brasil depende de mais que justiça: exige coragem moral, vontade política e compromisso com os valores que o bolsonarismo tentou soterrar.

É hora de desmontar não só as estruturas materiais desse projeto autoritário, mas também suas raízes simbólicas. Como escreveu o sociólogo Jessé Souza, “a elite brasileira se mantém no poder ao transformar desigualdade em mérito e opressão em ordem natural”. O bolsonarismo foi apenas a versão mais explícita dessa lógica perversa.

O que começa a ruir agora não é só o destino pessoal de um ex-presidente — é a máscara de um projeto que, por quatro anos, se alimentou do ódio, da mentira e da violência. Que esse momento marque o início de uma nova etapa: uma repactuação democrática fundada na justiça social, na pluralidade e na dignidade humana.

FONTE: https://semanaon.com.br/coluna/o-crepusculo-do-mito/