O jornalismo mostra as peças de um quebra-cabeças sem se preocupar com o fato de estarem embaralhadas.
Esta matéria é uma crítica contundente ao jornalismo, apontando a enorme diferença de que desfruta da historiografia. O jornalismo é memorialismo, ou seja, não se preocupa com o que já se escreveu a respeito deste ou daquele assunto. A historiografia, ao contrário, baseia-se numa revisão bibliográfica, daí vai para uma pesquisa que se destina a adicionar informações capazes de enriquecer o que se sabe. O jornalismo parte sempre do zero, mesmo que o assunto já tenha sido largamente abordado em suas próprias páginas, digitais ou não. Nos anos 1990, dei três entrevistas para o Fantástico e uma para o Jornal Nacional. Em todas eu era apresentado novamente e isso tem uma explicação, o espectador, provavelmente, não viu as entrevistas anteriores, o que impede de dar continuidade aos assuntos. Essa continuidade, essa concatenação são tarefas para os historiadores que se valem do jornalismo como fonte, ora primária, ora secundária. Onde está a crítica?
Ao tratar tudo como inédito – e o ineditismo é o foco do jornalismo – os assuntos não se aprofundam. Eles ficam muito próximos de superficiais, quase rasos. Para piorar, recorre-se aos “especialistas”. Quarenta anos atrás, ouvi de uma querida amiga jornalista chilena, Irene Helmke: “Os jornalistas não precisam conhecer o assunto, precisam conhecer quem entenda deles”. Quem garante que o “especialista” tenha a resposta para aquele ponto específico? A resposta pode estar na mente de quem seja capaz de transferir conhecimento sem necessariamente ser um “especialista”. O relato a seguir exemplifica bem o problema.
Em 1994, um cliente pretendia montar uma usina para extração do óleo de coco. Foi visitar uma fábrica na Índia e trouxe suas impressões na cabeça. Conversando no nosso escritório, ele disse que o processo começava quebrando o coco, tendo a água escorrida para um recipiente, onde se iniciaria o processo de esterilização e engarrafamento, que é assunto para outra matéria. O segundo passo é uma prensagem para separar a fibra da polpa, extraindo-se o óleo. O terceiro passo é passar por uma moenda de rosca com a função de filtro-prensa, que tira o leite de coco, restando o bagaço que, depois de seco, é vendido como coco ralado. Apontamos uma fábrica de equipamento para fabricar tijolos, telhas e outros itens de cerâmica vermelha. O cliente perguntou o que tinha a ver cerâmica com coco, ao que respondemos que o processo era muito semelhante, pois o barro precisava ser destorroado, prensado, moído e seco para tornar-se uma boa matéria-prima para a cerâmica. Restava adequar o equipamento encomendado às restrições da Anvisa, mas o processo era o mesmo. Não éramos especialistas em cocos, muito menos em cerâmica, mas a formação generalista permitiu concatenar as coisas com fontes tão díspares.
Ao partir sempre do zero, o jornalismo mostra as peças de um quebra-cabeças sem se preocupar com o fato de estarem embaralhadas. É possível que essa mazela do jornalismo seja mitigada? Creio que sim. Bastaria que quem fosse entrevistar acessasse o que já se fez no mesmo veículo sobre o mesmo assunto. Isso permitiria que os assuntos fossem aprofundados sem que o espectador se visse obrigado a acessar ele próprio as matérias anteriores. No mínimo, o entrevistador seria municiado com informações capazes de elevar o nível da entrevista, com um resultado muito mais proveitoso para o espectador. Em outras palavras, o entrevistador precisa ter a capacidade de juntar as peças tal que, de um quebra-cabeças, faça-se uma imagem do assunto que se pretende tratar. Ele seria mais ou menos como quem não entende de coco nem de cerâmica, mas é capaz de deduzir que, respeitando as devidas limitações, os processos sejam parelhos e intercambiáveis.
Foto: Conjur/divulgação
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-jornalismo-o-coco-a-ceramica-e-os-quebra-cabecas