O que realmente importa, em termos históricos, é que as Antigas Rotas da Seda, assim como Xinjiang, talvez sejam a suprema encruzilhada de civilizações.
NA ROTA DA SEDA DO SUL – A seda é a matéria-prima de lendas. Literalmente. Inicialmente fabricada apenas na China, a seda, àquela época, era não apenas um artigo de luxo, mas também uma unidade monetária: um elemento de importância crucial das receitas do comércio e das exportações.
Em 105 A.C., a primeiríssima missão diplomática chinesa chegou à Pérsia, então dominada pelos partas, que também ocupavam Báctria, Assíria, Babilônia e partes da Índia. Durante os quatro séculos da dinastia Arsácida – contemporânea dos Han, na China – os partas eram, essencialmente, os intermediários do comércio transcontinental. Os chineses e os partas sentaram-se para discutir – o que mais seria – negócios.
O Império Romano enfrentou sérias dificuldades com os partas – entre a maciça derrota de Crassus em Carras, em 53 A.C. e a vitória de Septimus Severus, no ano de 202. Nesse meio tempo, a seda chegou a Roma. Chegou com estrondo.
A primeira vez que os soldados romanos viram seda foi na batalha de Carras. Conta a lenda que as bandeiras de seda usadas pelo exército parta, com sua beleza cintilante, fazendo forte barulho aos ventos ferozes, amedrontaram a cavalaria. Imaginem esse primeiro contato com a seda contribuindo para acelerar o declínio do Império Romano.
Bem, o que importa é que a seda perpetrou nada menos que uma revolução econômica. A República Romana, e em seguida o Império, tiveram que exportar ouro como se não houvesse amanhã para satisfazer seus sedosos desejos.
O domínio parta foi sucedido pela Pérsia Sassânida, que durou até meados do século VII – quando seu império se estendia da Ásia Central à Mesopotâmia. Por muito tempo, os sassânidas encarnaram o papel da grande potência situada entre a China e a Europa – até a conquista islâmica.
Imaginem, portanto, ao início da era cristã, peças de seda sendo transportadas por terra por todo o espectro da Rota da Seda. O que é fascinante é que Roma e a China nunca (itálicos meus) entraram em contato direto – apesar de todo o elenco de personagens (mercadores, aventureiros, falsos “embaixadores”) que tentaram.
Paralelamente, uma Rota Marítima também operava – já desde os tempos de Alexandre o Grande – e mais tarde se tornou a Rota das Especiarias. Foi assim que os chineses, os persas e os árabes chegaram à Índia.
Desde a dinastia Han, os chineses chegaram não apenas à Índia, mas também ao Vietnã, à Malásia e a Sumatra. Sumatra logo se tornou um entreposto marítimo importante, com a incessante chegada de navios árabes. Em uma escala mais de longa distância, foi a descoberta das regras das monções – no século I A.C. – que permitiu aos romanos chegarem às costas da Índia.
A seda, então, chegou a Roma por via terrestre e marítima, através de uma multidão de intermediários. Entretanto, Roma nunca soube nada sobre a origem da seda, nem foi além dos gregos em seu conhecimento sobre as distantes e misteriosas terras de Seres.
Fui até as encruzilhadas de Pamir
Após meados do século I, o Império Kushan, na verdade indo-cita, assume papel protagonista no sul da Ásia Central, naquilo que era então chamado de Turquestão Oriental. Os kushan, rivais dos partas no papel de mensageiros do comércio internacional, não apenas facilitaram a disseminação do Budismo, mas também da arte Gandara – greco-budista – (alguns originais ainda podem ser encontrados, a preços exorbitantes, em galerias de arte de Hong Kong e Bangkok).
Mesmo assim, daí em diante, as regras do jogo nunca mudaram substancialmente: os dois grandes polos da Rota da Seda – a Pérsia Sassânida e Bizâncio – engajaram-se em uma verdadeira e feroz guerra industrial tendo a seda como objeto. O segredo da manufatura da seda já havia vazado para o Sul da Ásia.
Essa guerra comercial ficou ainda mais complicada com o violento ataque das tribos turcas por toda a Ásia Central, e com o surgimento de um reino comercial em Sogdiana, tendo Samarcanda ao centro.
Em meados do século VII, a dinastia Tang recuperou o controle sobre partes da Rota da Seda dominadas pelos reinos da bacia Tarim. Esse era um imperativo absoluto para os negócios, porque as rotas das caravanas que atravessavam esses reinos circundavam e evitavam, ao norte e ao sul, o temível deserto de Taklamakan, o que acontece ainda hoje.
A China Tang queria o controle absoluto ao longo de todo o percurso, pelo menos até as montanhas Pamir onde, na lendária torre de pedra incansavelmente descrita por aventureiros, mas nunca localizada com 100% de certeza, caravanas citas, partas e persas se encontravam com caravanas chinesas para comprar as preciosas sedas e vários outros artigos.
Essa torre de pedra, mencionada por grandes geógrafos como Ptolomeu é, na verdade, o Forte Tashkurgan, nas montanhas de Pamir: ultraestratégico, tendo a Rota da Seda a seus pés e, hoje, uma atração turística popular e muito próxima à rodovia Karakoram.
A torre de pedra é um marco simbólico entre o mundo chinês e o restante da Eurásia: a oeste fica o mundo indo-iraniano.
Percorri de alto a baixo a Rodovia Pamir, no Tajiquistão, antes de o covid interromper tudo. Desta vez, nossa minicaravana atravessou as terras do Pamir ao longo e em torno da rodovia Karakoram, a caminho da fronteira China-Paquistão, hoje um ponto alto do território do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), uma importante plataforma da Iniciativa Cinturão e Rota.
Nos tempos da Antiga Rota da Seda, os Pamires permitiam o acesso ao oásis de Kashgar. Os Pamires atam um gigantesco laço montanhoso entre o extremo oeste dos Himalaias e o Hindu Kush e as encostas sul do Tian Shan.
Essa sempre foi a principal encruzilhada entre o comércio triangular que unia o norte da Índia, o leste da Ásia Central – com a China por perto – e o oeste da Ásia Central, com as estepes por perto.
A China se encontra com o Islã: um grande “e se?” histórico
A seda, tendo um forte valor como unidade de capitalização e comércio, desempenhava um papel muito maior que seu uso propriamente dito. Em Bizâncio, a seda era objeto de monopólio. Tudo era estritamente regulamentado: profissões, ateliês estatais onde as mulheres trabalhavam e a alfândega. O estado protegia o monopólio por meio de uma severa burocracia.
Enquanto isso, a Rota Marítima prosperava de forma explosiva. Uma potência marítima e budista, Srivijaya, controlava o sempre crucial estreito de Malaca na ilha de Sumatra. É nessa configuração que o Islã entra no Grande Quadro.
Tanto quanto a História determinava que Roma e China nunca se encontrariam de forma direta ao longo da Rota da Seda, ela também determinou que haveria uma nítida separação entre o Islã e a China. Tentem imaginar como seria se a China, em meados do século VIII, tivesse se tornado uma terra islâmica.
A batalha de Talas, em 751 – no que hoje é o Quirguistão – jogou a China contra os árabes. E seu resultado acabou de vez com qualquer desejo chinês de conquistar a Ásia Central. Hoje, com a Nova Rota da Seda/ICR, a história é bem outra. Os investimentos e o comércio chineses se projetam poderosamente por todo o Heartland e mais além.
Em inícios do século VIII, o principal ator era o General Qutayba ibn Muslim, da dinastia Umayyad. Ele, primeiro, conquistou Bucara e Samarcanda; atravessou o vale Fergana; as montanhas Tian Shan; e quase chegou a Kashgar. O governador chinês à época, sentindo que talvez Qutayba estivesse prestes a tomar terras chinesas, enviou a ele um saco cheio de terra, algumas moedas e quatro príncipes como reféns. Ele calculou que, dessa forma, o conquistador árabe não perderia face e deixaria em paz o Reino do Meio.
Por incrível que possa parecer, esse acerto durou meio século. Até a batalha de Talas. Compare-se isso a Poitiers, em 732 – um século após a morte do Profeta Maomé. Certamente que é possível interpretar conjuntamente Talas e Poitiers, uma vez que esses dois marcos mostram que o Islã estava prestes a estender seu domínio por toda a Eurásia (a península europeia inclusive), criando um império político-militar que ia de Roma a Chang’na, a atual Xian.
Bem, isso não aconteceu. Mesmo assim, é um dos mais extraordinários “e se?” de toda a História.
A importância da batalha de Talas – virtualmente ignorada no Ocidente, exceto em rarefeitos círculos acadêmicos, é imensa. Entre outras questões, ela impôs uma nova circulação de técnicas. Os árabes levaram consigo artesãos, especialistas em sericultura (criação de bicho-da-seda) mas também fabricantes de papel. Os ateliês, a princípio, instalaram-se em Samarcanda. Mais tarde, eles se expandiram para Bagdá e para todo o Califado.
Então, lado a lado com a Rota da Seda, vimos o nascimento de uma movimentadíssima Rota do Papel.
Desertos, montanhas, oásis – e nenhum “trabalho escravo”
Rodar pelas estradas que cruzam Xinjiang filmando um documentário, depois de ter percorrido a Rota da Seda original de Xian ao corredor de Gansu, foi uma incomparável viagem no tempo histórico – uma vez que pudemos rastrear em detalhes séculos do tumulto que sacudiu a Ásia Central até o declínio, no século IX, de algumas das culturas locais pré-islâmicas. É emocionante nos reconectarmos com os principais atores: uigures, chineses Han, sogdianos, indianos, nômades, árabes, tibetanos, tajiques quirguizes – e mongóis.
Os grupos nômades que se autoproclamaram herdeiros do feroz Xiongnu vieram do noroeste da Mongólia e das montanhas Altai. Eles incorporaram diversos nômades antigos do oeste da Ásia Central durante o século IV, transformando drasticamente a paisagem política e étnica.
Os Xiongnu, intermitentemente, saqueavam partes do norte da China – e, às vezes eram atraídos para a prática de comércio de fato, propondo-se a pagar tributos ou, simplesmente, sendo subornados para não lançarem ataques. Na verdade, os Xiongnu tinham um ramo estabelecido na China e, por pelo menos dois séculos, permaneceram separados dos anteriores: eles acabaram por tomar Samarcanda no ano de 350. Mais tarde, foram os turcos que, mais uma vez, vieram da Mongólia (não contem a Erdogan, ele não sabe disso), unificando a estepe no século VI, muito antes da chegada do Islã.
É possível afirmar que o maior imperativo da Rota da Seda é o contraste/dicotomia entre o deserto e o oásis.
Desertos como o Taklamakan e o Gobi, além de vários outros, bem como as estepes e montanhas áridas estão entre as regiões mais proibitivas do planeta: essas são as características essenciais de territórios que totalizam cerca de seis milhões de quilômetros quadrados.
O que é muito raro na Ásia Central são terras cultivadas (embora possamos ver uma sucessão de plantações de algodão) ou boas pastagens (que vemos no corredor de Gansu, e mesmo nas terras do Pamir próximas ao poderoso Muztagh Ata). Mesmo assim, desertos e montanhas estão no coração de tudo.
Alguns oásis, é claro, são mais iguais que outros. Khotan é o oásis mais importante da Rota da Seda do Sul – não muito distante do imenso e desértico planalto tibetano. Essa terra é fabulosa para a agricultura mas, principalmente, por cortesia de um cone aluvial, para pedras preciosas, em especial o jade, que há dois mil anos vem sendo fornecido para todas as dinastias chinesas. Khotan falava uma língua iraniana – próxima à dos antigos nômades sacas e citas, os donos das estepes.
O reino de Khotan era um feroz rival dos oásis mais a oeste, Yarkand e Kashgar. Apenas intermitentemente ele esteve sob controle chinês. E talvez tenha sido conquistado pelos kushans no século II. A influência indiana era onipresente – como ainda se vê nos padrões de vestimentas e na comida do Mercado da Noite. No século III, o Budismo já exercia uma forte influência – como mostram os mais antigos testemunhos na bacia do Tarim.
A Rota da Seda, na verdade Rotas, é, obviamente, a Rota Budista. Em Dunhuang, no corredor de Gansu, o Budismo já era popular no século III: um famoso monge local, Dharmaraksa, foi discípulo de um mestre indiano. As populações budistas de Dunhuang eram uma mistura de chineses, indianos e centro-asiáticos – testemunhando, mais uma vez, a incessante interpenetração de culturas.
A metáfora shakespeareana “o mundo é um palco” se aplica por completo à história da Rota da Seda: todos os atores de todos os cantos do Heartland desempenhavam, em termos históricos, diversos papéis, às vezes simultaneamente – uma apoteose das “trocas de povo a povo”, expressão cunhada por Xi Jinping. Esse é o espírito das Antigas e das Novas Rotas da Seda.
Demos a sorte de estarmos na estrada bem na data do 70º aniversário da criação da Região Autônoma Uigur de Xinjiang.
Entre as muitas conquistas do socialismo com características chinesas em Xinjiang, em termos de desenvolvimento sustentável, a domesticação do Taklamakan – ou “mar da morte” – é um exemplo único.
Atravessamos o Taklamakan da Rota da Seda do Norte, em Aksu, até a Rota da Seda do Sul, próxima a Keriya: e pudemos testemunhar tudo aquilo, desde a impecável rodovia ladeada por uma fileira de bambuzais compondo o “cubo mágico da China”, para manter a areia longe da pista – até parte do cinturão verde para bloqueio da areia de 3.046 quilômetros, usando plantas como o álamo do deserto e o salgueiro vermelho.
O Taklamakan sempre foi a Central das Tempestades do Deserto – um tremendo desafio para os oásis. O terreno ao redor dos oásis é barra-pesada: desertos, montanhas áridas, as terras estéreis do Gobi, solo pobre, vegetação esparsa, pouca chuva, alta evaporação, ar seco.
Bem, o que vemos hoje começou antes da campanha do Rumo ao Oeste, lançada em 1999: desde 1997, uma série de agências centrais e estaduais, empresas estatais federais e 14 províncias e municipalidades chinesas enviaram verbas maciças e pessoal treinado para desenvolver Xinjiang da maneira correta.
Compare-se tudo isso à pesquisa original divulgada em uma conferência acadêmica sobre Xinjiang, recentemente organizada pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong – meus vizinhos quando eu morava no Porto Fragrante. Essa pesquisa mostrava que o MI6 britânico, desde a década de 1990, vinha instrumentalizando uma minoria de uigures como parte de uma maciça campanha de Relações Públicas com o objetivo explícito de desmembrar a China em três partes.
Isso evoluiu para as acusações de “genocídio” engendradas pela CIA nos últimos anos, e é claro, as supostas massas submetidas a “trabalho forçado” que mal conseguiam sobreviver nos campos de concentração-reeducação. Em nossas extensas viagens, tendo uigures como guias, estávamos determinados a encontrar trabalho escravo nas plantações de algodão situadas ao longo da Rota da Seda do Norte, ou no meio do Taklamakan. Bem, sinto muito: nada disso existe.
A propaganda, entretanto, foi de importância essencial para arregimentar hordas de uigures para o ISIS, inclusive um considerável contingente que foi para o Idlibistão e agora perambula livremente entre a Síria e a fronteira turca. Eles não ousariam voltar para Xinjiang e enfrentar o serviço de inteligência chinês.
Esqueçam a propaganda dos bárbaros. O que realmente importa, em termos históricos, é que as Antigas Rotas da Seda, assim como Xinjiang, talvez sejam a suprema encruzilhada de civilizações, sendo, juntamente com a Ásia Central, o coração (pulsante) do Heartland. E agora, mais uma vez, eles talvez estão de volta como protagonistas, no coração da História.
Tradução de Patricia Zimbres
Foto: Agência Xinhua
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-mundo-e-um-palco-por-toda-a-antiga-rota-da-seda
 
															